8.03.2018
BRASIL - TRAÇOS GERAIS DA ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA, SOCIAL, ECONÔMICA E FINANCEIRA DA COLÔNIA
1. A administração e o cargo público
2. O espectro político e administrativo da metrópole e da colônia
3. As classes: transformações c conflitos
1. A administração e o cargo público
Fazenda, guerra e justiça são as funções dos reis, no século XVI, funções que se expandem E se enleiam no controle e aproveitamento da vida econômica. Uma constelação de cargos, já separada a administração pública da casa real, realiza as tarefas públicas, com as nomeações e delegações de autoridade. Separação, na verdade, tênue, em que o valido da corte se transmuta em funcionário ou soldado, num processo de nobilitação, que abrange o letrado e o homem de armas. O patrimônio do soberano se converte, gradativa-mente, no Estado, gerido por um estamento, cada vez mais burocrático. No agente público — o agente com investidura e regimento e o agente por delegação — pulsa a centralização, só ela capaz de mobilizar recursos e executar a política comercial. O funcionário é o outro eu do rei, um outro eu muitas vezes extraviado da fonte de seu poder. Um cronista do início do século XVII já define, em termos de doutrina, a projeção do soberano no seu agente: ''os amigos do rei, seus viso-reis e governadores e mais ministros hão de ser outro ele, hão de administrar, governar e despender como o mesmo rei o fizera, que isto e ser verdadeiro amigo; mas quando a cousa vai por outro rumo, que o governador e ministro não pretende mais que governar para si e para os seus, então não sinto eu mor imigo do rei que este, porque poderá ele dizer polo tal governador. — Este que aqui está é outro si, ou outro para si. Em toda a parte isto tem lugar'.1 O cargo, como no sistema patrimonial, não é mais um negócio a explorar, um pequeno reino a ordenhar, uma miga a aproveitar. O senhor de tudo, das atribuições e das incumbências, é o rei — o funcionário será apenas a sombra real. Mas a sombra, se o sol está longe, excede a figura: "A sombra, quando o sol está no zênite, é muito pequenina, e toda se vos mete debaixo dos pés; mas quando o sol está no oriente ou no ocaso, essa mesma sombra se estende tão imensamente, que mal cabe dentro dos horizontes. Assim nem mais nem menos os que pretendem e alcançam os governos ultramarinos. Lá onde o sol está no zênite, não só se metem estas sombras debaixo dos pés do príncipe, senão também dos de seus ministros. Mas quando chegam àquelas Índias, onde nasce o sol, ou a estas, onde se põe, crescem tanto as mesmas sombras, que excedem muito a medida dos mesmos reis de que são imagens".2 Neste trânsito do agente patrimonial para o funcionário burocrático, apesar dos minudentes regimentos régios, a competência das sombras ou imagens do soberano se alarga nas omissões dos regulamentos e, sobretudo, na intensidade do governo. A luz do absolutismo infundia ao mando caráter despótico, seja na área dos funcionários de carreira, oriundos da corte, não raro filhos de suas intrigas, ou nos delegados locais, investidos de funções públicas, num momento em que o súdito deveria, como obrigação primeira, obedecer às ordens e incumbências do rei. A objetividade, a impessoalidade das relações entre súdito e autoridade, com os vínculos racionais de competências limitadas e controles hierárquicos, será obra do futuro; do distante e incerto futuro. Agora, o sistema é o de manda quem pode e obedece quem tem juízo, aberto o acesso ao apelo retificador do rei somente aos poderosos. O funcionário é a sombra do rei, e o rei tudo pode: o Estado pré-liberal não admite a fortaleza dos direitos individuais, armados contra o despotismo e o arbítrio.
Infeliz, Doroteu, de quem habita
Conquistas do teu dono tão remotas!
Aqui o povo geme e os Seus gemidos
Não podem, Doroteu, chegar ao trono.
E se chegam, sucede quase sempre
O mesmo que sucede nas tormentas,
Aonde o leve barco se soçobra
Aonde a grande nau resiste ao vento.3
O funcionário recebe retribuição monetária, o agente desfruta de vantagens indiretas, com títulos e patentes, que compensam a gratuidade formal. Os ordenados dos funcionários pouco crescem no curso dos anos numa despesa global fixa, apesar do número crescente de pessoal, com o aumento das tenças e dos juros nas despesas públicas, o que sugere a expansão da nobreza e do comércio, controlada a burocracia numa rede de governo, que gravita em torno do rei e de sua aristocracia.4 Essa degradação dos vencimentos explicará as inúmeras denúncias de corrupção, aliada à violência, instrumento esta, para garrotear os súditos, sobretudo se as distâncias e o tempo os desamparam da vigilância superior. Os vícios que a colônia revela nos funcionários portugueses se escondem na contradição entre os regimentos, leis e provisões e a conduta jurídica, com o torcimento e as evasivas do texto em favor do apetite c da avareza. O padre Antônio Vieira volve sua lança oratória contra dois abusos do sistema, com a crítica à rapinagem burocrática e à drenagem de recursos para a metrópole: "Perde-se o Brasil, Senhor (digamo-lo em uma palavra), porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, vêm cá buscar nossos bens. [...] El-Rei manda-os tomar Pernambuco, e eles contentam-se com o tomar [...] Este tomar o alheio, ou seja o do Rei ou o dos povos, é a origem da doença; e as várias artes e modos e instrumentos de tomar são os sintomas, que, sendo de sua natureza muito perigosa, a fazem por momentos mais mortal. E senão, pergunto, para que as causas dos sintomas se conheçam melhor: — Toma nesta terra o ministro da justiçar — Sim, toma. — Toma o ministro da fazenda? — Sim, toma. — Toma o ministro da milícia? — Sim, toma. — Toma o ministro do Estado? — Sim, toma. E como tantos sintomas lhe sobrevêm ao pobre enfermo, e todos acometem à cabeça e ao coração, que são as partes mais vitais, e todos são atrativos e contrativos do dinheiro, que é o nervo dos exércitos e das repúblicas, rica tomado todo o corpo e tolhido de pés e mãos, sem haver mão esquerda que castigue, nem mão direita que premie; e faltando a justiça punitiva para expelir os humores nocivos e a distributiva para alentar e alimentar o sujeito, sangrando-o por outra parte os tributos em todas as veias, milagre é que não tenha expirado". No indignado sermão, pregado em meados do século XVII, a denúncia atinge plano mais profundo, ao tocar a chaga da venalidade, vinculando-a ao controle fiscal e comercial do reino: "Desfazia-se o povo em tributos, em imposições e mais imposições, em donativos e mais donativos, em esmolas e mais esmolas (que até à humildade deste nome se sujeitava a necessidade ou se abatia a cobiça), e no cabo nada aproveitava, nada luzia, nada aparecia. Porque? — Porque o dinheiro não passava das mãos por onde passava. Muito deu em seu tempo Pernambuco; muito deu e dá hoje a Bahia, e nada se logra; porque o que se tira do Brasil, tira-se do Brasil; o Brasil o dá, Portugal o leva". Uma imagem dá a veemente medida do bombeamento de riquezas para a metrópole, por meios legais e por meios ocultos: "Como terem tão pouco do Céu os ministros que isto fazem, temo-los retratados nas nuvens. Aparece uma nuvem no meio daquela Bahia, lança uma manga no mar, vai sorvendo por oculto segredo da natureza grande quantidade de água, e depois que o está bem carregada, dá-lhe o vento, e vai chover daqui a trinta, daqui a cinqüenta léguas. Pois, nuvem ingrata, nuvem injusta, se na Bahia tomaste essa água, se na Bahia te encheste, porque não choves também na Bahia? se a tiraste de nós, porque a não despendes conosco? Se a roubaste a nossos mares, porque a não restituis a nossos campos? Tais como isto são muitas vezes os ministros que vêm ao Brasil — e à fortuna geral das partes ultramarinas. Partem de Portugal estas nuvens, passam as calmas da linha, onde se diz que também refervem as consciências, e em chegando, verbi gratia, a esta Bahia, não fazem mais que chupar, adquirir, ajuntar, encher-se (por meios ocultos, mas sabidos), e ao cabo de três ou quatro anos, em vez de fertilizarem a nossa terra com a água que era nossa, abrem as asas ao vento, e vão chover a Lisboa, esperdiçar a Madri. Por isso nada lhe luz ao Brasil, por mais que dê, nada lhe monta e nada lhe aproveita, por mais que faça, por mais que se desfaça. E o mal mais para sentir de todos é que a água que por lá chovem e esperdiçam as nuvens não é tirada da abundância do mar, como noutro tempo, senão das lágrimas do miserável e dos suores do pobre, que não sei como atura já tanto a constância e fidelidade destes vassalos".5
O brado moralizador tem uma nota singular, não conhecida de Diogo do Couto e do autor da Arte de furtar. O golpe contra a burocracia, ao tempo que fere a corrupção, vibra a corda nacionalista, do embrionário nacionalismo do Brasil. O protesto terá fundamento na repulsa da burguesia comercial, à qual Vieira estava ligado, e nos interesses brasileiros, já conscientes da exploração metropolitana. Em todos os botes a denúncia quer mostrar o domínio do funcionário, sombra do rei, infiel aos fins ideais do soberano, mas coerente com o patrimonialismo que este encarna e dirige. Há mais, porém. O burocrata, já desenvolvido do embrião estamental do cortesão, furta e drena o suor do povo porque a seu cargo estão presos os interesses materiais da colônia e do reino. O súdito não é apenas o contribuinte, mas a vítima do empresário que arrenda os tributos, a vítima dos monopólios e das atividades da metrópole. Dessa conexão estava afastado apenas o padre, em princípio meramente recebedor de subsídios. Ao contrário do mundo holandês e inglês, a rede, a teia de controles, concessões c vínculos avilta a burguesia e a reduz à função subsidiária e dependente do Estado. O exercício do comércio prende-se, em termos gerais, a um contrato público, que gera os contratadores, por sua vez desdobrados em subcontratadores, sempre sob o braço cobiçoso da administração pública. Nesse regime, não se concentram em poucas mãos as fortunas, nem se emancipam as atividades mercantis dos regulamentos, sempre minuciosos e casuísticos. A burguesia, domesticada e agrilhoada, vinga-se do funcionário, sussurrando ou bradando contra a corrupção. O funcionário, de seu lado, acostado ao fidalgo, desdenha o comerciante no seu parasitismo e no seu aproveitamento do trabalho alheio para enriquecer. Os soldados ou os burocratas que se volvem ao comercio continuam a ostentar, para poupar-se à degradação, seus velhos títulos.6 As duas categorias, com as tensões e os encontros de interesses, marcam a cúpula social com muitas faces ambivalentes e contraditórias.
A função pública congrega, reúne e domina a economia. Ela é o "instrumento regalista da classe dominante", formando um "patriciado administrativo".7 Por meio dele, amolda-se o complexo metropolitano e se homogeneiza o mundo americano. Nas suas duas expressões — o funcionário de origem cortesã e o agente local recrutado pelo rei — fixa-se a transação entre a centralização governamental e as correntes desintegradoras dos núcleos locais e provinciais. Um problema de domínio se resolve num problema de conciliação, formulada do alto: "a conciliação entre a unidade do governo e a tendência regionalista e desintegradora, oriunda da extrema latitude de base geográfica, em que assenta a população".8 A Independência, o Império e a República sentirão, a cada passo e em todos os episódios, o latente ou o aberto contraste das duas pontas do dilema. A unidade do governo, traduzida e realizada numa camada social, será a rocha sobre a qual se erguerá a unidade nacional, em luta contra a vocação regional e autonomista das forças locais. No fundo do drama não estão apenas os funcionários leais ao rei pela hierarquia, senão os funcionários que não sabem que atuam sob a vontade do rei, que os doma, disciplina e lhes infunde o cunho de colaboradores submissos. Vilhena, no começo do século XIX, sabia melhor do que os historiadores futuros que, mesmo os paulistas — membros da categoria dos conquistadores —, apesar da fama de "facínoras, rebeldes ao soberano, e insubordinados às leis", são "todos vassalos da Coroa portuguesa os que nesta dilatadíssima região têm dado as mais evidentes provas de fidelidade, zelo, e obediência ao seu Soberano, quem mais tem exposto as vidas em benefício da pátria, em utilidade da capital, e da nação".9 A força integradora, que arrasta, na cauda, todas as energias e todas as rebeldias, será a camada dos fiéis agentes do rei e dos funcionários. Esse círculo de privilégios e honras confere mando, superioridade e fidalguia.
O cargo público em sentido amplo, a comissão do rei, transforma o titular em portador de autoridade. Confere-lhe a marca de nobreza, por um fenômeno de interpenetração inversa de valores. Como o emprego público era, ainda no século XVI, atributo do nobre de sangue ou do cortesão criado nas dobras do manto real, o exercício do cargo infunde o acatamento aristocrático aos súditos. Para a investidura em muitas funções públicas era condição essencial que o candidato fosse "homem fidalgo, de limpo sangue" (Ordenações Filipinas, L. I, tít. I), ou de "boa linhagem" (idem, tít. II). Nas Câmaras se exigia igual qualificação para a escolha dos vereadores entre os "homens bons" — embora, na realidade, esses caracteres fossem muitas vezes ignorados. Os "homens bons" compreendiam, num alargamento contínuo, além dos nobres de linhagem, os senhores de terras e engenhos, a burocracia civil e militar, com a contínua agregação de burgueses comerciantes. Os Livros da Nobreza, guardados pelas Câmaras, sofriam registros novos e inscrições progressivas, sem, contudo, eliminara categoria aristocrática. Não tardaria muito e a venda dos empregos elevaria aos cimos da nobreza a burguesia enriquecida, para indignação e pasmo das velhas linhagens. O severo Critilo, representante da nobreza letrada, ou nobre porque letrada, retrata bem os valores dominantes, na repulsa às ascensões plebéias aos postos de governo.
Conheço, finalmente, a outros muitos
Que foram almocreves e tendeiros,
Que foram alfaiates e fizeram,
Puxando a dente o couro, bem sapatos.
Agora, doce amigo, não te rias
De veres que estes são aqueles grandes
Que. em presença do chefe, encostar podem
Os queixos nos bastões da fina cana.
Os postos, Doroteu, aqui se vendem,
E, como as outras drogas que se compram,
Devem daqueles ser, que mais os pagam.
E também, Doroteu, contra a polícia
Franquearem-se as portas, a que subam
Aos distintos empregos, as pessoas
Que vêm de humildes troncos. Os tendeiros.
Mal se vêem capitães, são já fidalgos;
Seus néscios descendentes já não querem
Conservar as tavernas, que lhes deram
Os primeiros sapatos e os primeiros
Capotes com capuz de grosso pano.
Que império, Doroteu, que império pode
Um povo sustentar, que só se forma
De nobres sem ofícios?10
A burguesia, nesse sistema, não subjuga e aniquila a nobreza, senão que a esta se incorpora, aderindo à sua consciência social. A íntima tensão, tecida de zombarias e desdéns, se afrouxa com o curso das gerações, no afidalgamento postiço da ascensão social. A via que atrai todas as classes e as mergulha no estamento é o cargo público, instrumento de amálgama e controle das conquistas por parte do soberano.
2. O espectro político e administrativo da metrópole e da colônia
Um esquema vertical na administração pública colonial pode ser traçado, na ordem descendente: o rei, o governador-geral (vice-rei), os capitães (capitanias) e as autoridades municipais. A simplicidade da linha engana e dissimula a complexa, confusa e tumultuaria realidade. Sufoca o rei seu gabinete de muitos auxiliares, casas, conselhos e mesas. O governador-geral, chefe político e militar, está flanqueado do ouvidor-geral e do provedor-mor, que cuidam da justiça e da fazenda, os capitães-generais e governadores e os capitães-mores das capitanias se embaraçam de uma pequena corte, freqüentemente dissolvida nas juntas, os municípios, com seus vereadores e juizes, perdem-se no exercício de atribuições mal delimitadas. A dispersão em todos os graus se agrava com o vínculo frouxamente hierárquico: todos se dirigem ao rei e ao seu círculo de dependentes, atropelando os graus intermediários de comando. Duas fontes de fluidez do governo: os órgãos colegiados e a hierarquia sem rigidez. O quadro metropolitano da administração como que se extravia e se perde, delira e vaga no mundo caótico, geograficamente caótico, da extensão misteriosa da América. Os juristas e burocratas portugueses, pobres de inspiração criadora — ao contrário dos escolásticos espanhóis, enredados na subtileza de especulações pouco práticas, e dos colonizadores ingleses, desvinculados da teoria rígida — transplantam mais do que adaptam, exportam mais do que constroem. Flexibilidade colonizadora e hierática fixação de pensamento — esta a característica da armadura colonial, imposta ao flutuante, mutável e rebelde mundo atlântico. Vinho novo lançado em odres velhos, mas vinho sem capacidade para fermentar e romper os vasilhames tecidos por muitos séculos. O arbítrio, a desobediência, a rebeldia das autoridades coloniais, ao lado da violência, terão um papel criador, ajustando o vinho novo aos odres antigos, não raro desfigurados, deformados pelas pressões locais.
Na cúpula da organização política e administrativa situa-se o rei, com os poderes supremos de comando, conquistados na fixação do território e nos acontecimentos revolucionários do século XIV. Mas não há aí um rei absoluto e solitário nas suas decisões; ao seu lado se articula, limitando-lhe o arbítrio, uma armadura ministerial e, o que é mais importante, uma construção colegiada, com o órgão máximo à sua ilharga, estruturado, por ele presidido: o Conselho del Rei ou Conselho de Estado. O apêndice ministerial, com suas funções de auxílio e execução, vincula-se ao comando monocrático, nas origens patrimoniais do servo que obedece e cumpre. A ordem monocrática sofre, com os órgãos colegiados, limitação drástica, retardando as decisões, orientando-as e distorcendo-as, ao sabor das suas deliberações. Dentro deles a nobreza — a nobreza dos cargos militares e civis — e a burguesia comercial se completam, com a supremacia aristocrática, acaso controlando e anulando a tendência do soberano de se aliar ao mercador, mercador ele próprio. Sociedade aristocrática, fixada no estamento, em luta surda e tenaz contra a mercancia, que, incapaz de se tornar independente, adere aos valores da nobreza, aos seus costumes e à sua ética. A única facção inassimilável ao absorvente comando nobiliárquico estamental, com o núcleo no cristão-novo e nos manipuladores do dinheiro e do crédito, sofre, durante mais de dois séculos, duro, enérgico e persistente combate, por meio da Inquisição. Não a nobreza territorial, de consistência feudal, como pareceu a um escritor11, dirige a caça ao judeu — mais a caça ao mercador do que ao judeu —, mas a nobreza dos cargos, da corte, temerosa e ameaçada da perda de suas posições. Somente a conversão ao catolicismo, num grau que signifique a total adesão à ideologia social dominante, poupa o cristão-novo à punição, punição que alcançou, em casos inúmeros, o comerciante abastado e o traficante de dinheiro.
O embuçado autor da Arte de furtar, nos primeiros anos do Portugal restaurado, assinala a presença de doze tribunais, dedicados aos cinco atributos de governo que Aristóteles reputava necessários à República: fazenda, paz, guerra, provimento e justiça. "Para o primeiro da Fazenda pública e particular, temos dous: hum se chama também da Fazenda, e outro he o Juizo do Cível com sua Relação, para onde se apela, e agrava. Para o segundo da Paz temos cinco, três deles para o sagrado, e são o Santo Ofício, o do Ordinário, e o da Conciencia; e dous para o profano, que são a Mesa do Paço, e a Casa da Suplicação. Para o terceiro da Guerra temos dous; hum que se chama também da Guerra, e outro Ultramarino. Para o quarto do Provimento temos outros dous; hum he o da Camera, e outro o dos Estados. E para o quinto da Justiça temos outros dous, que já ficão tocados, e são a Mesa do Paço, e a Relação. E para melhor dizer, todos os Tribunais tirão a hum ponto de se administrar justiça às partes. E finalmente sobre todos hum, que os comprehende todos, e he o do Estado."12 O profundo crítico da sociedade portuguesa distingue entre conselho c execução, dependente esta de outras autoridades, subordinadas à autoridade régia, advertindo que os consulentes devem executar os alvitres deliberados. O autor, ele próprio filho da nobreza funcionária, insiste na utilidade dos órgãos colegiados, zombando do consultor que traduz a vontade do rei, segundo o vicioso princípio de que onde o príncipe é poeta todos fazem trovas. Questão grave será a do número dos conselheiros e das fontes de recrutamento, distribuídas entre nobres, letrados e teólogos, isto é, entre a aristocracia militar, o funcionário nobilitado e o clero, sem atenção ao mercador, relegado a participar de órgãos locais, em direto contato com as medidas econômicas de exportação e importação. "Os Conselheiros devem ser muitos sobre cada matéria, porque huns alcanção, e suprem o a que não chegam os outros; mas não sejão tantos, que se confundão, e perturbem as resoluçoens; quatro até cinco bastão. Outra questão he, se devem os Conselheiros ser letrados, se idiotas; isto é, de capa, e espada? Huns dizem, que os letrados, com o muito, que sabem, duvidão em tudo, e nada resolvem; e que os idiotas com a experiência sem cspeculaçoens dão logo no que convém. Outros tem para si, que as letras dão luz a tudo, e que a ignorância está sujeita a erros: e eu digo, que não seja tudo letrados, nem tudo idiotas: haja letrados Teólogos, e Juristas, para que não se cometão erros: e haja idiotas, que com sua astúcia, sagacidade, e experiência descubrão as couzas, e dêm expediente a tudo."13 Por meio dos letrados e juristas a burguesia se insinua nos conselhos, burguesia, entretanto, pela origem e não pela conduta, absorvida, cunhada pelo estamento de funcionários, que tritura os próprios nobres de terras.
Esse enxame de tribunais ou conselhos suscita problemas pouco debatidos pelos sociólogos e historiadores. Há que determinar, no sistema monocrático português, armado, nas suas origens, na identificação do rei ao chefe da guerra, o grau em que o enfraquece o colegialismo. Na mesma perspectiva, a dependência dos órgãos colegiados ao soberano, relação dificilmente discernível e mensurável, dará algumas indicações sobre o trato público entre a metrópole e a colônia. Em princípio, os colégios — tribunais, mesas e conselhos — atuam dentro da competência traçada pelo rei, em seu nome e sob sua aprovação. Eles se situam na fronteira, na areia movediça do tipo patrimonial de domínio para o burocrático, numa estrutura estamental. O limite oposto ao governo monocrático se arrima nos privilégios — privilégios da fidalguia, tradicional e legalmente mantidos, dos letrados e do clero. Esta particularidade confere aos órgãos coletivos, às magistraturas não ministeriais, um caráter misto, flutuante, entre as funções de prévio conselho à execução e a execução mediante o compromisso dos membros do colégio, seja por meio do pacto ou imposição negociada. A colegialidade consultiva invade, em certos casos, a própria esfera da execução, com maior ou menor autoridade, de acordo com a densidade dos privilégios dos conselheiros. Nada há de democrático, ou de pré-democrático, nesse tipo de organização. Ao contrário, a colegialidade é exatamente o modo de evitar que o soberano, apoiado no seu aparelho monocrático, se acoste nos elementos não privilegiados, para estender seus poderes. Ganha a administração menor rapidez de decisões, fria c muitas vezes dura impessoalidade, afastado o senhor supremo da devoção emotiva do povo, controlado por uma rede de impedimentos e tardanças, capazes de filtrar as pressões do estamento.14 A colegialidade, que se estrutura e expande nos séculos XVI e XVII, revela um passo do ajustamento da doutrina saída da Revolução de Avis com o incremento do império ultramarino, na retomada e fixação dos caracteres estamentais, contemporâneos à nova fisionomia monárquica, no afidalgamento dos servidores públicos e seu engaste na atividade política.
O grau de dependência dos órgãos colegiados ao rei está condicionado, repita-se, aos privilégios de seus componentes. O Tribunal do Santo Ofício, embora desvinculado da Santa Sé e preso à corte, pouco obedece ao rei, que não pode evitar que seus amigos e protegidos expiem longas prisões ou o suplício extremo, entregues às garras da feroz Inquisição.15 Ocorre que o clero, com suas tradicionais incolumidades, não se sente dependente do soberano, no grau em que este logra domesticar a nobreza e da maneira como cria, a sua ilharga, os letrados. Para os conselhos políticos e judiciários, maior será a força da autoridade real, que se sobrepõe às resistências dos colégios.
As conquistas e colônias dão ênfase aos órgãos colegiados, preocupados os soberanos em coordenar e centralizar a administração e os negócios ultramarinos. Os tribunais, conselhos e casas subordinam-se, frouxa ou rigidamente, ao comando dos ministros régios. Os interesses comerciais e fiscais inspiram a organização dos estabelecimentos formados ao lado da atividade diretamente desenvolvida pelo Estado, sistema próximo das modernas autarquias. O padrão dos novos estabelecimentos será o colegialismo, já introduzido em Portugal, pelas razões históricas apontadas. Dom Fernando, às vésperas da Revolução de Avis, criou os vedores da fazenda, ministros encarregados das finanças, no lugar dos ouvidores da portaria. No reinado de dom Manuel, os vedores da fazenda passaram a ser em número de três (1516) , com a incumbência de gerir coletivamente os negócios do Reino, Índia e África. Mais tarde, ao lado do subministro, o Secretário d'el Rei, o cargo de maior relevo do reino, cria dom Sebastião o Secretário dos Despachos e Coisas da Índia ou Secretário da Índia. Dessas autoridades, de categoria ministerial, dependem as Casas: Casa da Guiné (1480), Casa da Guiné e Mina e Casa da Mina e Trautos da Guiné e Casa da índia, ganhando esta, no curso de poucos anos, o principal lugar. A Casa da Índia desempenha o papel de bolsa, com a aquisição e venda dos produtos africanos c asiáticos, acumulando as funções de alfândega, com o encargo de "superintender nas feitorias portuguesas espalhadas pelo mundo, fornecendo-lhes os artigos necessários ao seu comércio e matricular as tripulações dos navios, pagando-lhes os soldos em dinheiro, especiarias, 'liberdades' de comércio e até em escravos".16 Este órgão, que não participa do caráter colegiado, goza de relativa autonomia, circunstância que induz seu desprendimento do comando ministerial. As atribuições administrativas da Casa da Índia — não a instituição que só veio a ser extinta em 1823, incorporada à Alfândega de Lisboa —, por uma série de vicissitudes, transformações e reformas, se fixam no Conselho Ultramarino (1643) chocado em dois precursores filipinos, ao tempo da união das coroas: o Conselho da Fazenda (1591) e o Conselho da Índia (1604).17 Esse órgão exercerá o principal papel na coordenação e centralização da política portuguesa no Brasil, absorvendo, com expedientes conciliatórios, o trato dos negócios da fazenda, entregues anteriormente ao Conselho da Fazenda. Não cuida, entretanto, de todos os assuntos da colônia, confiados, em matéria de justiça, ao aparelhamento judiciário local, com os recursos às Relações instaladas no Brasil e nos tribunais superiores do Reino. Grande será também o papel da Mesa de Consciência e Ordem, cuja presença nos negócios ultramarinos se explica na concessão que a Ordem de Cristo, unida depois à Coroa, recebe dos dízimos para cuidar do culto divino e das igrejas. O Regimento de 1608 atribui-lhe "as cousas espirituais que os prelados das ilhas e das partes da Índia e da Guiné" submetessem ao rei, com respeito ao culto e à conversão do gentio.
Dom João IV, ao assumir o trono restaurado, manteve as leis editadas durante a união. Auxiliado por um único secretário de Estado, desdobrou a pasta em duas, cumprindo ao Conselho Ultramarino levar o expediente, conforme o assunto, a um ou outro ministro, até que, em 1736, supervisiona-o o recém-criado e nomeado secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. (Já então três eram os ministros: 1 — dos negócios interiores do reino; 2 — dos estrangeiros e guerra; e 3 — da marinha e ultramar. Só no fim do século cria-se o Ministério da Fazenda, que preside o Conselho da Fazenda e o Real Erário.) Pelo Conselho passam, a partir de sua criação, todos os assuntos ultramarinos que devem ser resolvidos pelo rei. Consulta-o o soberano, permitido aos interessados iniciar o processo por petição a ele dirigida. Compõem-no, inicialmente, em número que depois se alarga, três conselheiros, sendo dois fidalgos, homens de guerra, "Conselheiros de capa c espada", e um jurista, "Conselheiro letrado". Para harmonizar as disputas entre o Conselho Ultramarino e o Conselho da Fazenda (colégio dos três vedores), assentou-se que presidiria o primeiro, acumulando os cargos, o membro que exercesse a vedoria da Índia. O órgão não se conformava com a doutrina, tão cara ao estadista da Arte de furtar, da separação entre o conselho e a execução: queria, usurpando as atribuições do Conselho da Fazenda, decidir e ordenar todos os assuntos de ultramar. Pretende ser o melhor alvitre de governo que as decisões se executem pela mesma entidade que as aconselha, argumentando com o rei: "de ordinário sucede diferirem os Conselhos no Parecer, seguindo-se daqui frieza e dilação, quando um se executa o que ao outro lhe parece".18 Aceita mal o Conselho, de outro lado, a sua ausência de jurisdição em matéria eclesiástica, confiada à Mesa de Consciência e Ordens, As atribuições do poderoso colegiado abrangem, salvo as exceções explícitas e legais, "todas as matérias e negócios, de qualquer qualidade que forem" do ultramar, com a administração fazendária, carga de navios, apercebimentos militares, patentes e despachos dos vice-reis, governadores e capitães, bem como os requerimentos de mercês dos que prestaram serviços nas colônias e conquistas. (Reg., caps. 2, 5, 6 e 12.) A política meramente comercial da aventura da Ásia sucede, graças ao novo organismo, uma orientação coordenada e centralizada, definidas as linhas que asseguram a integridade territorial à colônia e a unidade de dependência econômica. Nele doutrinou, para grande proveito do Brasil, Alexandre de Gusmão. Não ficou imune às queixas acerca de sua morosidade, nem às acusações de corrupção. As autoridades ultramarinas e as partes dirigiam-se, com a tardança das soluções, ao rei, que, em regra, poupava-se e se furtava a resolver, diretamente, os assuntos regimentalmente confiados ao colegiado.
Nesse feixe de conselhos — sob o comando do conselho do rei —, a direção régia e ministerial vê sua autoridade dilacerar-se, com o esfriamento do tempo de ação. Os assuntos brasileiros, meticulosamente medidos e previstos, com as decisões tardas, ficam a cargo, desta sorte, de outros funcionários e agentes, nas medidas urgentes. Interfere, entre a metrópole e a colônia oficial, larga parcela de arbítrio do setor privado, que, desta sorte, usurpa funções públicas. Este um efeito inesperado do colegialismo: ao limitar, em proveito de uma categoria social, a autoridade real e ministerial, abre uma faixa de governo aos particulares e aos distantes e abandonados oficiais da Coroa. Daí não se originou, todavia, um campo de self-government local, ou do exercício de liberdades municipais. Cria-se um governo, ao contrário, sem lei e sem obediência, à margem do controle, inculcando ao setor público a discrição, a violência, o desrespeito ao direito. Privatismo e arbítrio se confundem numa conduta de burla à autoridade, perdida esta na ineficiência. Este descompasso cobrirá, por muitos séculos, o exercício privado de funções públicas e o exercício público de atribuições não legais. O déspota colonial e o potentado privado têm aí suas origens, origens que o tempo consolidará.
A administração metropolitana se conjuga à colônia, no seu elo principal, com o governador-geral (vice-rei desde 1640, título que se tornou definitivo e de uso corrente somente depois de 1720). O governador-geral dispõe de poderes escritos de grande profundidade e alcance, embora não logre subjugar as capitanias e os focos de autoridade local, as câmaras, em comando vertical e completo. A transferência definitiva do governo-geral para o sul, com sede no Rio de Janeiro (1763), completa um ciclo de domínio, muitas vezes contestado, desde as resistências iniciais de Duarte Coelho até às rebeldias frustradas dos poderes locais, com base nos municípios e nas capitanias. O Regimento de Tomé de Sousa (1548), estatuto básico da condução política colonial, moderniza-se em 1677 (Regimento de 23 de janeiro)19, guardadas as linhas básicas do primeiro até a transmigração da corte e a instalação do Reino Unido (1815). Dentro dos amplos poderes delegados pelo rei — o vice-rei está no lugar do rei —, cabem atribuições do teor seguinte: "todo o poder e alçada sobre todos os generais, mestres de campo, capitães de fortaleza, pessoas que nela estiverem e que forem àquele Estado [do Brasil] e sobre todos os fidalgos e quaisquer outros meus súditos de qualquer qualidade, estado ou condição que sejam, do qual [poder] em todos os casos, assim crimes como cíveis, até morte natural inclusive, poderá usar inteiramente; e dar-se-á execução às suas ordens e mandados, sem delas haver mais apelação nem agravo e sem excetuar pessoa alguma em que o dito poder e alçada se não entenda".20 Bem verdade que tais poderes se suavizam com a Junta Geral — o órgão colegiado de maior relevo na colônia —, presidida pelo governador e composta das mais altas autoridades da justiça, fazenda, clero. Outro freio viria das capitanias e das câmaras, certo que a autoridade, sempre que se alonga em delegações, perde substância, bem como se, do alto, a retardam os conselhos metropolitanos. As funções do vice-rei, de caráter militar na sua expressão essencial, penetram em todos os setores, regulando a administração e a economia, nos seus mínimos detalhes. A imensa autoridade do governador-geral (vice-rei) não subordina hierarquicamente os capitães-generais e governadores das capitanias (capitães-mores ou apenas governadores das subalternas). O vice-rei acumula o governo da capitania-sede (Bahia e, desde 1763, Rio de Janeiro) com os encargos de supervisão geral, no comando coordenador e centralizador da colônia (do Estado do Brasil, algum tempo separado do Estado do Maranhão). Os privilégios inerentes ao cargo público no sistema patrimonial estamental, sem o racionalismo da estrutura burocrática, impedem o controle de revisão e de substituição de autoridade, em graus. Daí os conflitos, as disputas de atribuições, as resistências de funcionários que se dirigem diretamente ao Conselho Ultramarino, com proteções poderosas de pessoas da corte, encostados no setor ministerial do governo. O Regimento de 23 de janeiro de 1677 tentou pôr cobro a essas dúvidas, peremptoriamente nos propósitos, mas sem completo êxito na realidade. "Hei por bem" — declara o cap.39.° — "que por evitar as dúvidas que até agora houve entre o Geral do Estado, e o de Pernambuco, e Rio de Janeiro sobre a independência, que pretendiam ter do Governador-Geral, declarar que os ditos governadores são subordinados ao Governador-Geral, e que hão de obedecer a todas as ordens que ele lhes mandar, pondo-lhe o cumpra-se, e executando-as assim as que lhe forem dirigidas a eles, como aos mais Ministros da Justiça, Guerra, ou Fazenda, e para que o tenham entendido lhe mandei passar cartas que o dito Governador leva em sua companhia para lhe remeter com sua ordem, e lhes mandará registrar nos Livros de minha Fazenda, e Câmaras, de que lhe enviarão Certidões para me dar conta de como assim se executou." A autoridade do governador-geral não penetra, todavia, em todo o território, reservados certos espaços, sobretudo o do ouro e dos diamantes, à direta nomeação e controle régios.
O terceiro elo da administração colonial, depois do vice-rei e do capitão-general e governador, se forma em torno do município (v. cap. V, 2). Será a vila a base da pirâmide de poder, na ordem vertical que parte do rei — vila administrada pela Câmara, ou Senado da Câmara. As Ordenações Afonsinas, Manuelinas e as Filipinas regulam essa unidade de governo, nascida de preocupações fiscais do soberano, com o estímulo de motivos militares e de defesa, sempre alheias ao espírito autonomista do self-government anglo-saxão. Muitas lendas, forjadas pela história moderna e pela doutrina liberal, de recente nascimento, embelezam a história, infiéis ao peculiar estilo da monarquia portuguesa. As rebeldias, as usurpações, as violências das câmaras, raras vezes empolgadas pelos potentados rurais, constituem episódios romantizados, de duvidosa autenticidade. Na verdade, salvo um fugaz momento de estímulo régio de um século, estímulo que não busca a autonomia mas subordinação, por meio do compromisso, o município se submete ao papel de braço administrativo da centralização monárquica. A própria categoria de vila, habilitada a possuir a câmara, depende da vontade régia, mesmo quando a palavra do soberano se limita a reconhecer um fato. A presença do chefe da monarquia se faz sentir na nomeação do presidente — se importante o município — na pessoa de um letrado, o juiz de fora (desde 1696 no Brasil). Desnecessária essa autoridade, ocupa o seu lugar o juiz ordinário. Fora desta e outras ilhas régias, que dominam a autonomia local, acentuando a função auxiliar da câmara ao ordenamento geral, prevalece o princípio da eletividade: eleitos eram os juizes ordinários, os três vereadores (em algumas vilas, quatro), o procurador, o tesoureiro e o escrivão, cada um com as estritas atribuições que lhe conferem as Ordenações. A Câmara se compõe dos juizes ordinários e dos vereadores — os outros funcionários, eletivos ou nomeados, incumbem-se de funções pré-traçadas, sob o comando da vereança ou vereação, sem que se possa discernir, nas atribuições das autoridades, funções separadas, no tocante à administração, justiça e legislativo, ou com respeito à esfera superior das capitanias.
A eleição da câmara assegura — afora os fluidos e indefinidos ajuntamentos populares, ou as juntas locais — o vínculo entre o povo e a administração pública, toda interiormente voltada para o rei. O povo que elege e delibera, na tensão permanente e subterrânea entre sociedade e governo, restringe-se legalmente e sofre severa limitação nas suas expansões. O colégio eleitoral se compõe dos "homens bons e povo, chamado a Conselho" (Ord. Filip., Livro I, tít. LXVII), o que supõe corpo restrito de eleitores, na verdade reduzido aos homens bons. Esta expressão, de incerto significado, usado em sentido diverso nas leis21, tem longas origens. "O vocábulo homens-bons (boni-homines), que tratando das classes não nobres, é aplicado em especial a todos herdadores (indivíduos não nobres que possuem hereditariamente a propriedade livre), como a mais autorizada entre elas, encontrar-se-á em certos monumentos, principalmente em atos judiciais, qualificando os indivíduos mais respeitáveis das classes nobres e privilegiadas." (Alexandre Herculano.) Os homens bons e as pessoas do povo que podiam votar, eram pelos corregedores ou juizes a quem incumbia presidir as eleições, qualificados em cadernos, onde se escreviam os seus nomes com todas as individuações necessárias para verificar-se a idoneidade, exigidas pelas leis, forais e costumes." (Alv. de 12 de novembro de 1611.) Não eram qualificados os mecânicos operários, degredados, judeus e outros que pertenciam à classe dos peões. (Prov. de 8 de maio de 1705.)22 Exige-se, em princípio, a naturalidade ou a fixação na terra, proibida, nos primeiros séculos, a eleição de comerciantes, privilégio só conquistado com a ascensão dessa classe social. As Ordenações Filipinas apontam, na restrição do corpo eleitoral e dos eleitos, o "respeito às condições e costumes de cada hum, para que a terra seja melhor governada" (Livro 1, tít. LXVII). Os "homens bons" não se caracterizam pela fidalguia ou limpeza de sangue, qualidades necessárias para certos cargos ou funções.23 A limitação do corpo eleitoral, herdada cegamente das leis portuguesas, na passiva linhagem das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, nada tem a ver com o predomínio do sangue branco como se sugeriu24, embora resulte em instrumento de submissão do escravo e das classes inferiores. Na verdade, o escopo íntimo da superioridade institucional do homem bom será o mesmo que inspira os conselhos portugueses: inscrever os proprietários e burocratas em domicílio na terra, bem como seus descendentes, nos "Livros da Nobreza", articulando-os, desta sorte, na máquina política e administrativa do império. Incorporam-se, por meio da aristocracia por semelhança, as camadas novas de população, enobrecidas pelos costumes, consumo e estilo de vida. O complicado sistema eleitoral destila novas levas, autorizadas pela confiança local, ao estamento, cada vez mais burocrático na sua densidade. As confirmações — dos juizes pelo desembargo do Paço — agregam ao peso eletivo a vontade da organização administrativa (Ord. Filip., Livro 1, tít. LXVII), caráter também acentuado com as nomeações e demissões impostas pelo governador, quando este não determina às câmaras que façam ou providenciem certas obras locais. O povo não delibera e, quando delibera, restrito a uma parcela pouco numerosa, se embaraça, na ação, dentro das redes do sistema político geral.
Na aparência, amplas eram as atribuições das câmaras. Em passagem muitas vezes repetida e não menos repelida, João Francisco Lisboa, escrevendo sobre o período anterior à centralização dos meados do século XVII, arrola suas largas funções: "taxavam o preço ao jornal dos índios, e mais trabalhadores livres em geral, aos artefatos dos ofícios mecânicos, à carne, sal, farinha, aguardente, ao pano e fio de algodão, aos medicamentos, e ainda às próprias manufaturas do reino. Regulavam o curso e valor da moeda da terra, proviam tributos, deliberavam sobre entradas, descimentos, missões, a paz e a guerra com os índios, e sobre a criação de arraiais e povoações. Prendiam e punham a ferros funcionários e particulares, faziam alianças entre si, chamavam finalmente à sua presença, e chegavam até a nomear e suspender governadores e capitães. Esta vasta jurisdição exercitavam na só por si nos casos de somenos importância; nos mais graves, porém, convocavam as chamadas juntas gerais, nas quais se deliberava à pluralidade de votos da nobreza, milícia e clero".25 Um raciocínio se desenvolve, à margem dos fatos: o poder político, nesse período, estaria entregue aos homens bons, confundidos com os proprietários, com exclusão da vontade da Coroa. Em verdade, como acentuado (cap. V, 2), houve um momento em que a metrópole confiou a colonização ao morador e ao senhor de engenho, em compromisso de que logo se arrependeu, temerosa das conseqüências autonomistas e descentralizadoras. Foi um momento fugaz, breve. Os interesses mercantis, a cobiça holandesa, o zelo pelo estatuto colonial deram o sinal de recuo. Os extensos poderes e atribuições das câmaras, de outro lado, não induzem usurpação de competência régia ou a onipotência local: dos séculos XVI a XIX tudo — a economia, as finanças, a administração, a liberdade — está regulado, material e miudamente, pelo poder público, do qual os conselhos serão um ramo, ramo seco ou ramo vivo, conforme as circunstâncias. As atribuições amplas não são, como enganadoramente se crê, próprias das câmaras brasileiras, mas inerentes à administração, metropolitana e ultramarina. As Ordenações Filipinas, apenas folheadas, no Livro I, oferecem a prova das largas interferências na vida do homem colonial, em todos os seus atos, gestos c iniciativas. Pondere-se, ainda, que as atribuições locais e do governo-geral não se delimitam fixamente, como confusas são as atividades em todos os setores judiciários ou administrativos. Os juizes e oficiais fiscalizam o comércio, cuidam da justiça, expedem ordens, em controle não apenas exterior e formal como nos tempos atuais, mas em vigilância íntima e profunda.
As câmaras se convertem, depois de curto viço enganador, em simples executoras das ordens superiores. De "cabeça do povo" descem, passo a passo, a passivo instrumento dos todo-poderosos vice-reis, capitães-generais e capitães-mores. A introdução dos juizes de fora já havia aviltado a autoridade do juiz ordinário, filho da eleição popular. Na Bahia a intervenção chegou ao achincalhe: os vereadores foram designados pelo rei. As câmaras caíram à categoria de departamentos administrativos da capitania, meros cumpridores de determinações superiores. Um terço de suas rendas flui para o soberano, aplicado o restante em obras públicas, soldos, aposentadorias, ordenados e festividades. O marquês de Lavradio, no último quartel do século XVIII, declara, sem rebuço e sem nenhuma dissimulação, seu poder sobre a câmara do Rio de Janeiro: "Como as leis de S.M. têm nobilitado os comerciantes, destes escolhi para Vereadores, nomeando-lhes sempre por companheiros um dos melhores da terra, e por este modo consegui pôr as ruas da cidade como V. Ex.a tem visto, fazerem-se mais duas fontes públicas, muitas pontas, consertarem-se os caminhos, juntar e entulharem-se infinitos pântanos, que havia na cidade, origem de infinitas moléstias".26 Uma testemunha do tempo assinala três causas da desordem que domina o Senado da Câmara da Bahia: a falta de autoridade do juiz de fora, embaraçado pela politicalha dos vereadores; a ascendência do Supremo Tribunal da Relação, que furta a câmara de sua jurisdição privativa; e as portarias dos governadores, que se assenhoreiam das regalias do conselho, "pondo-o em estado de não poder deliberar cousa alguma de ponderação, e que possa ter validade, sem que seja munida com uma portaria".27 A descrição de João Francisco Lisboa, colhida de um efêmero momento da colônia, não traça um fiel retrato do município brasileiro, nos primeiros séculos de sua formação. O estudo das fontes a desacredita: as câmaras nunca passaram de corporações administrativas, sem a fantasiosa prerrogativa de colaborar na vontade da política colonial.28 A lei de organização municipal de 1.° de outubro de 1828, ao assegurar a tutela do governo provincial e geral sobre as câmaras, fixando-lhes o caráter puramente administrativo, reconheceu uma realidade tradicional, apesar do renascimento primaveril nos dias da Independência.
O quadro administrativo da colônia se completa com a presença de quatro figuras, que acentuam e reforçam a autoridade metropolitana: o juiz, o cobrador de tributos e rendas, o militar e o padre.
A autoridade suprema da justiça, contemporânea da fundação do governo-geral, é o ouvidor-geral. O ouvidor decide os casos crimes, até morte para escravos, gentios, peões cristãos livres. Sua competência não abrange pessoas de maior qualidade nem alcança o clero. O corregedor da corte julga os recursos de suas sentenças. A indefinição entre as atividades judiciárias e administrativas faz intervir nos julgamentos o governador-geral. As capitanias se dividem, mais tarde, em comarcas, cada uma delas provida de um ouvidor, superintendido por um corregedor, em regra o próprio ouvidor. Nas categorias territoriais inferiores, decidem os juizes de fora, letrados versados em direito romano e ciosos da ascendência do rei sobre todos os negócios, subordinados a eles os juizes ordinários, leigos, presos à eqüidade, ao direito costumeiro e aos forais. Abaixo deles há ainda os juizes de vintenas, para as aldeias e termos, em alçada restrita. A vara traduz e simboliza a autoridade, em sinal de poder e jurisdição. Investida de jurisdição administrativa, a justiça se perde nos meandros da vida social e econômica da colônia, apesar da aparente clareza das funções traçadas pelas Ordenações. Apressou-se a Coroa em criar a primeira Relação — tribunal de recursos do Brasil — com percalços que só foram removidos em 1652, acrescida de outra, para as capitanias do sul, em 1751. Uma cadeia de alçadas e recursos levava a justiça colonial a se perder nas aldeias e a se esgalhar até Lisboa, na Casa de Suplicação, no Desembargo do Paço e na Mesa de Consciência e Ordens. Ai de quem caísse nas mãos dessa justiça tarda, incompetente, cruel, amparada nas duras leis do tempo. "Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido. 29 Com a máquina judiciária entram em cena os advogados, dos quais um documento colonial se queixa pelo "tanto trocar, tanto mentir, tanta trapaça, que as novas delas não fazem senão acarretar bacharéis à pobre província".30 A primeira manifestação hostil contra o bacharelismo toca o ponto vulnerável da administração colonial; o advogado, o letrado por excelência do ordenamento jurídico da metrópole, será o mais fiel agente da rede centralizadora. Verdade que não seriam numerosos os bacharéis, absorvidos todos no reino, voltada a acusação mais contra a justiça emperrada e a administração tarda. Os magistrados, na grande maioria, são leigos, com os cargos herdados ou obtidos no enxoval da noiva.31
A fazenda merece um capítulo especial (VI, 4), visto que em torno dela se projetam a economia e a sociedade coloniais. A organização administrativa, em linhas sumárias, mostra um corpo agregado à centralização régia, fixado em todos os níveis de governo, com o escoadouro comum dirigido à metrópole. O Conselho da Fazenda, na corte, em conflito ou em harmonia com o Conselho Ultramarino, dirige e controla a administração fazendária no Brasil, num período em que o tributo consome já a quarta parte da produção colonial.32 Com o governo-geral (1549), criou-se o cargo de provedor-mor, que deveria unificar, racionalizar e escriturar a administração fiscal, com a instalação de alfândegas e agências de cobrança. O propósito frustrou-se, com a intervenção subseqüente da metrópole em todos os negócios, num sistema em que os tributos representam mais uma apropriação de renda para certos grupos do que a cobertura de necessidades públicas. "Para gerir o Real Erário nas capitanias do Brasil, arrecadar tributos e efetuar despesas, há uma série de órgãos paralelos com funções mais ou menos especializadas. Eles não se subordinam uns aos outros, nem ao governador, no sentido em que hoje entendemos a hierarquia administrativa."33 A Junta da Fazenda (Real Junta da Arrecadação da Real Fazenda, Tribunal da Junta da Real Fazenda, etc.) situa-se junto ao governador e é por este presidida, com as funções judiciárias e administrativas de dirimir contendas, traçar as normas gerais de cobrança e fiscalizar as entidades e repartições inferiores. As arrecadações especiais criam órgãos próprios, extravagantes à disciplina geral, num casuísmo que os vincula a Lisboa, apesar da presidência nominal do governador: Junta da Arrecadação do Subsídio Voluntário; as Alfândegas; Tribunal da Provedoria da Fazenda; Juízo da Conservadoria, etc, numa mistura de atividades hoje incompreensível. Cobram tributos também as câmaras, com a reserva de uma parcela ao rei. O ouro, o diamante, o tabaco, o açúcar suscitam, por sua vez, outros organismos, todos zelosos dos quintos, monopólios, terças partes, emolumentos, contratos, tributos, em interferência direta, miúda, desconfiada sobre a economia. Daí irradia uma multidão de funcionários, atraindo os reinóis ociosos: deputados das juntas, intendentes, tesoureiros, oficiais, escrivães, meirinhos. O leite ordenhado da colônia chegava diluído e aguado aos reais beiços, com provável déficit antes da explosão açucareira e aurífera.34
A administração, a justiça, o controle fazendário assentam, em última análise, sobre a paz interna e a defesa, voltada esta contra o indígena e as agressões externas. A instituição das forças armadas na colônia revela o modo de integrar o povoador nos desígnios e nas atividades da Coroa. O particular, por esse meio, transforma-se em agente real, em delegado de objetivos públicos, situando-se a um passo do funcionário. A organização militar precede à descoberta, estrutura-se com a monarquia no curso dos séculos e funde-se com a história da colônia. Ela terá um papel de defesa e um papel social, aglutinando populações e elevando os seus elementos na escala de prestígio. A terra se consolida nas mãos do português por via da força armada — é a conquista. Mas a terra se torna interiormente portuguesa também mercê da integração no quadro das funções e das honras militares — é o prolongamento da metrópole na colônia. Este o elo mais profundo, mais duradouro, mais estável da integração ultramarina, ponto que, na verdade, funde — algumas vezes frouxamente — a camada dominante de Portugal com a ascendente e afidalgada categoria dos dominadores coloniais. Entre uma e outra corrente haverá diferenças e particularidades, dissensões e rivalidades, mas, sobre as tendências desagregadoras, prevalecerá o comum tropismo da constituição de uma nobreza comum. A mais ardente expressão dessa obra de convívio e de amálgama será o conquistador, com a face nativa do bandeirante e a alma vinculada aos mandamentos que o rei lhe insufla, num processo contínuo de cunhar e amoldar forças americanas com o selo português, monárquico e público.
O foral de Duarte Coelho (24 de setembro de 1534) e o Regimento de Tomé de Sousa (17 de dezembro de 1548) fixam as linhas do sistema militar que haveria de imperar na colônia. Nos dois documentos os moradores e povoadores sofrem a obrigação de servir em tempo de guerra, militarmente. O primeiro governador-geral recebe, pronto e articulado, um plano de defesa e de combate, com a circunstância, ao tempo nova, de basear-se em forças profissionais, os seiscentos soldados, exagerados para mil homens de peleja por frei Vicente do Salvador.35 Havia, na sede do governo, uma fortaleza, que começaria de um valo, madeira ou taipal. De outro lado, reforçando a militarização dos moradores um duplo sistema proveria a defesa: a) os engenhos de açúcar teriam "cada um em sua terra uma torre ou casa forte da feição e grandura que lhe declarardes nas cartas, e será a que vos parecer, segundo o lugar em que estiverem, que bastarem para segurança do dito engenho e povoadores de seu limite"; b) para apoio das fortalezas e povoações, os capitães das capitanias, os senhores de engenho e os moradores deveriam estar munidos de artilharia e armas ofensivas e defensivas. A estrutura estava lançada, por três séculos: as fortalezas, guarnecidas de soldados profissionais, e as tropas territoriais, as companhias de ordenança, mais tarde confundidas e, afinal, discriminadas das milícias. As duas vertentes da força armada têm aí seu ponto de institucionalização na colônia, perdidas as origens em Portugal. O ramo burocrático (primeira linha, regular) e o ramo territorial (segunda linha, auxiliar) comunicavam-se, com transferências de uma carreira a outra. Separam-se pelo espírito e pela fidelidade a causas opostas, no curso dos anos, a partir do último século colonial.
Um membro da Academia Brasílica dos Renascidos situa a reorganização do exército no reinado de dom Afonso V (1438-81), o primeiro soberano a usar o título de "Rei de Portugal e dos Algarves de aquém e além-mar", obra que culmina com o Regimento de 1 570, promulgado por dom Sebastião.36 A este sistema talvez aludisse Camões ao advertir, ironicamente, que
A disciplina militar prestante
Não se aprende, senhor, na fantasia,
Sonhando, imaginando ou estudando
Senão vendo, tratando e pelejando.
(Os Lusíadas, CX, CLIII)
Até então — a dar crédito ao acadêmico colonial — as unidades, distribuídas em partes desiguais, as "hostes ou bandeiras" "pelejavam quase tumultuosamente", sem a "regra científica" depois consagrada.37 Na expedição de dom Francisco de Almeida à Índia, recrutados sob os novos moldes, seguem "mil e quinhentos homens de armas, todos gente limpa", engajados por três anos, com soldo estipulado em dinheiro e pimenta, gente que se soma aos humildes soldados de Afonso de Albuquerque que se fixariam à terra com as doações de glebas e os casamentos locais.38 Ainda no século XVII perdura a confusão acerca dos soldos e vantagens, quer quanto às quantias, estipuladas de modo arbitrário, quer quanto às fontes de pagamento. Desde que as forças regulares — afora os homens das fortalezas — se instalam no Brasil, a partir de 1625, empenhadas na retomada de Salvador aos holandeses, não se tinha meio certo de retribuição. Somente dom João IV mandou acudir a despesa das receitas dos vinhos, aguardente, etc.39 A providência não impede, entretanto, os atrasos de pagamento, nem as revoltas dos soldados famintos. Em Minas Gerais, os dragões — tropa de primeira linha — recebem seu soldo dos dízimos reais, cujo contrato vincula expressamente o resultado da cobrança ao destino da despesa.40 O soldado de linha torna-se, dessa sorte, um profissional, um burocrata.
A nova estrutura militar, ao profissionalizar o soldado, libera o rei da última dependência à nobreza, transformando o exército em organização permanente, não mais confundido com as mesnadas dos ricos homens. Na reserva dessa ala paga — e daí adviriam profundas conseqüências para o Brasil — forma-se um corpo de soldados não pagos, cujas origens estão nas milícias não nobres das localidades, mas com a diferença de obedecerem ao soberano, em linha reta, verticalmente. São as companhias de ordenança, com os oficiais escolhidos por eleição dos soldados, sistema depois substituído pela nomeação dos governadores, mediante homologação real por meio do Conselho Ultramarino. Entre ordenanças e milícias houve confusão de nomes, certo que, com o tempo, as milícias ocuparam a segunda linha e as ordenanças a terceira, esta de caráter local, sem obrigação de se empenharem com ações fora da sua sede. Ainda em 1612, o Livro que dá razão do Estado do Brasil, escrito por um militar em inspeção na colônia, distingue, ao lado das "companhias do presídio", com sua gente paga pela Fazenda de Sua Majestade e incumbida "da guarda da costa como na vigia do pau-brasil", as "companhias de ordenança", a cuja obrigação de servir se furtam apenas os homens de obrigação da corte, estudantes, nobres e privilegiados, oficiais públicos.41 A maior despesa pública da colônia, nessa época, flui aos "oficiais de guerra".42 O Regimento do Governo-Geral de 23 de janeiro de 1677 distingue as ordenanças (chamadas embora "gente miliciana") das milícias, com a diferença dos postos entre uma e outra categoria, ambos não retribuídos, salvo os sargentos-mores e ajudantes das últimas, que saem da tropa regular, arcando a câmara onde se situam com o soldo.43 No século XVIII, as milícias, já com o nome próprio, libertas da confusa sinonímia das ordenanças, ocupam o lugar de forças brasileiras, braço longo dos governadores, ao lado e sob o comando da tropa regular. Na quadra da Independência, a velada rivalidade entre a tropa de linha, portuguesa e leal à metrópole, e as milícias, de formação e origem nacionais, se transmuta em dissídio aberto. A divisão Auxiliadora do Rio de Janeiro e o exército de Madeira na Bahia serão o mais eficaz obstáculo à emancipação, enquanto os milicianos de São Paulo e Minas sairão de sua terra para socorrer o príncipe, como haviam feito, algum tempo antes, nas lutas do sul contra o espanhol.
Dessa labareda, sempre com funções separadas, sairá um novo exército e uma nova força auxiliar — o Exército e a Guarda Nacional, em cujo seio, em 1831, mergulharão as milícias e ordenanças. As ordenanças, embora existentes até 1831, perderam o relevo diante das milícias, responsáveis estas pela defesa contra o gentio, o bandeirismo, a epopéia pernambucana e as guerras do Rio Grande do Sul, associadas às tropas de linha ou delas desvinculadas. Em 1831, as guardas territoriais — a milícia e a ordenança — desaguaram, desaparecendo, na Guarda Nacional, inspirada, pelas idéias, no liberalismo da França e dos Estados Unidos, resultante, na realidade histórica, de uma velha maturação de mais de dois séculos. Fundada para se contrapor ao Exército, da grandeza do qual desconfiavam os homens da Regência, tornou-se a mão da centralizadora presença monárquica, tal como na sua moldura colonial, em perfeita continuidade.
A integração do colono à ordem metropolitana fez-se por meio da ordem militar. A conquista do interior, a paz dos engenhos, perturbada pelos gentios e pela rebeldia dos escravos, a caça ao trabalhador indígena e a busca do ouro realizam-se por via do prolongamento da ordem estamental, incorporada dos rudes paulistas e homens da terra. A patente das milícias correspondia a um título de nobreza, que irradiava poder e prestígio, cifrando-se nas promoções e graus de oficiais as prometidas mercês do rei aos paulistas que abrissem as minas escondidas nos sertões. A patente embranquece e nobilita: ela está no lugar da carta de bacharel, no Império. Na colônia, o próprio bacharel de Coimbra só se eleva com o título militar. Inácio José de Alvarenga Peixoto, formado e graduado em leis pela Universidade de Coimbra, requestou e obteve a patente de Coronel Comandante do Regimento de Cavalaria Auxiliar do Continente do Rio Verde, Comarca do Rio das Mortes. A carta de Coimbra pouco valia: os bordados de coronel realçam-na, engrandecem-na e lhe dão prestígio. O coronel-bacharel, realidade do mundo colonial, perde a identidade, no Império, com a separação do bacharel do militar, mesmo o paramilitar da Guarda Nacional. O corpo militar, nos seus graus de oficial, infundia nobreza, equiparada a milícia e depois a Guarda Nacional às tropas de linha para os efeitos de honras aristocráticas.44 Os filhos dos oficiais podiam ingressar na tropa de linha como cadetes, privilégio reservado à nobreza. A tropa auxiliar servia ao comando dos governadores, que a utilizavam para o despotismo, não raro, e para marcar a autoridade, muitas vezes transformada em autoritarismo. A organização militar constitui uma "casta privilegiada"45, com poderes para se esquivar à justiça, a ela confiada a tarefa de compelir os recalcitrantes ao pagamento de tributos, quintos e contribuições. A tropa regular e os auxiliares, segundo um documento da época, apenas encontram um oficial de justiça vestem suas fardas, retirando do caminho os funcionários da justiça.46 O governador de Minas Gerais — e, entre todos, o padrão será Cunha Meneses, o "Fanfarrão Minésio" das Cartas chilenas — forma batalhões e mais batalhões, elevando os corpos de treze para quarenta. A capitania via-se militarizada de alto a baixo, com 24.998 homens armados, com o pretexto de economizar soldos nos regimentos pagos, na verdade para engrandecer seu prestígio e dourar fidelidades, num momento — a hora do esgotamento das minas — em que estariam vivas, sob as decepções, as rebeldias. Esta obra, empreendida na véspera da conjuração mineira, revela o tino do político: brancos e pardos conquistavam patentes e honras, insuflado, com a tarda, o sentimento de obediência à autoridade. Além disso, as patentes — ao que murmura o ácido Critilo — enchiam os bolsos do governador e da sua pequena, postiça e autoritária corte. Verdade que Lisboa não aceitava o excesso, deixando de confirmar muitas patentes, com agravo ao despótico capitão-general. Chegou a Coroa a anular a criação de unidades. Nas instruções ao visconde de Barbacena (1788), lembrou a metrópole que a tropa regular — os dragões — era indispensável para exercer as funções de "guardas, registros, patrulhas, destacamentos, e diferentes outros serviços; e sobretudo para conter, e fazer respeitar as leis, e a autoridade do governo, ao grande concurso de gente de todas as qualidades, bons, maus, e péssimos além dos habitantes do país, que de todas as partes concorrem a ele levados da ambição do ouro, e para marchar enfim em tempo de guerra àquela parte do continente da América, em que este socorro se fizesse preciso".47 Estranhava, entretanto, a "desordenada irregularidade" da criação de corpos irregulares, recomendando sua redução de acordo com a utilidade, corrigido o abuso, existente em outras capitanias. Igual política seguia o capitão-geral com respeito às ordenanças, a cujo corpo pertence o Capanema das Cartas chilenas (Livro 9, 387), que teria largado boas placas para lograr de "capitão maior a vermelha farda". Este singular Capanema — Francisco José da Silva Capanema —, mercador elevado [legitimamente a oficial, homem com loja de fazenda, botica e taberna, inscreve na imponente casa recém-construída o letreiro: "quem dinheiro tiver fará o que quiser". Na representação à rainha que os povos de Pitangui contra ele fizeram (1799) apontam-no "como lobo faminto antepondo o aumento dos seus interesses aos de utilidade pública, vexa os pobres, oprime os desvalidos, e faz quanto pode fazer um monstro o mais indômito, o mais feroz".48 Usava a cadeia e o tronco contra seus concorrentes e inimigos, sem piedade, no uso de poderes que a patente lhe permitia. Milícias e ordenanças, o segundo e o terceiro graus da reserva, equiparam-se em autoridade, todas dependentes das ordens do governador, com desrespeito à magistratura e ao clero, representantes, à época, da estrutura civil. Contra a justiça erguem-se os "atrevidos soldados", que "riscam do rol dos delinqüentes" e dos autos o nome dos protegidos do chefe militar. A milícia, criada para guarda dos vassalos, torna-se "a mesma que nos priva do sossego" (Cartas chilenas, 9, 367). Com os olhos em Pernambuco, Koster caracterizou a administração do Brasil como militar: todos os homens, entre dezesseis e sessenta anos, deveriam pertencer às milícias ou as ordenanças, também lá preocupado o governador em aumentar os corpos da tropa.49
Os milicianos moldaram a sociedade do interior, assegurando-lhe, com seu vínculo ao rei, a disciplina, a obediência e o respeito à hierarquia. Além disso, revigoraram a tropa de linha, com a possível transferência para este corpo, como ocorreu com o marechal José de Abreu, o primeiro Mena Barreto e outros. O Rio Grande do Sul não seria brasileiro sem as milícias; o frágil Regimento de Dragões não impediria a pressão castelhana.50 As bandeiras são outro fruto das milícias, investidos seus chefes de honrosas patentes falando em nome do rei.51 O papel de integração, empreendido pelas milícias, entre a ordem pública e a turbulência social mereceu lúcida compreensão dos estadistas coloniais. O marquês de Lavradio, em 1799, assinala: "Estes povos em um país tão dilatado, tão abundante, tão rico, compondo-se a maior parte dos mesmos povos de gentes de pior educação, de um caráter, o mais libertino, como são negros, mulatos, cabras, mestiços, e outras gentes semelhantes, não sendo sujeitos mais que ao Governador e aos magistrados, sem serem primeiro separados c costumados a conhecerem mais junto assim outros superiores que gradualmente vão dando exemplo uns aos outros da obediência e respeito, que são depositários das leis e ordens do Soberano, fica sendo impossível o poder governar sem sossego e sujeição a uns povos semelhantes".52 Sem as milícias, o tumulto se instalaria nos sertões ermos, nas vilas e cidades. Verdade que, com elas, o mandonismo local ganhou corpo, limitado à precária vigilância superior dos dirigentes da capitania.
A nobilitação das milícias dava lugar às zombadas dos fidalgos e dos letrados incorporados à aristocracia. As prescrições antigas de limpo sangue, de avós de linhagem pura, de pele branca perdem o vigor: tendeiros e mulatos conquistam os postos, elevados os próprios negros, graças às proezas da guerra pernambucana, às mais altas dignidades. Vilhena arrola, entre os regimentos (antigos terços) das milícias: os Úteis, composto de comerciantes e seus caixeiros; o de Tropa Urbana, integrado de artífices, vendeiros, taberneiros e outros homens brancos; o Auxiliar de Artilharia, com os pardos e mulatos livres; e o dos Henriques, em homenagem a Henrique Dias, formado de pretos forros. Todos, com exceção do regimento dos pretos, são exercitados por um sargento-mor e um ajudante, saídos da tropa de linha, pagos pelo Senado da Câmara. 53 Fardam-se à sua custa, sem dispensar soldos e ajudas, requerendo os heróis de guerra ao soberano pensões e tenças, pelos serviços prestados, tal como outrora demonstrara Diogo do Couto no Soldado prático e como documentam os postos e privilégios concedidos aos guerreiros que libertaram Pernambuco. O mulato ganhava atestado de brancura com o posto: um capitão-mor era, mas já não é mulato. Atônito, o estrangeiro Koster pede uma explicação: "— Pois, Senhor, um Capitão-Mor pode ser mulato?"54 O ácido Critilo, letrado com fumos aristocráticos, não esconde seu espanto: o Fanfarrão Minésio (o governador Luís da Cunha Meneses, da capitania de Minas Gerais) militarizou a capitania, nomeando coronéis, tenentes-coronéis e oficiais, para conquistar afeições e lealdades, sem respeitar o sangue velho e a idade tenra. Ele "agarra tudo", "alista o povo inteiro":
E também, Doroteu, contra a polícia
Franquearam-se as portas, a que subam
Aos distintos empregos, as pessoas
Que vêm de humildes troncos. Os tendeiros,
Mal se vêem capitães, são já fidalgos;
Seus néscios descendentes já não querem
Conservar as tavernas, que lhes deram
Os primeiros sapatos e os primeiros
Capotes com capuz de grosso pano.
Que império, Doroteu, que império pode
Um povo sustentar, que só se forma
De nobres sem ofícios?55
Os negros, crioulos e mulatos conquistam os postos, com a indignada censura do branco. A crítica volta-se, porém, para o alvo certo: as patentes afidalgam, levam o mulato c o negro livre a desprezar o trabalho para se elevar, verticalmente, com o galão nobilitador. O vendeiro e o mercador abandonam a taberna e a mercearia para viver a lei da nobreza, ociosa e improdutiva. Daí sai o parasitismo, agarrado, para se sustentar, às honras militares. A autoridade civil — a queixa é de Critilo e de Vilhena, reforçada pelas palavras do marquês de Lavradio — se amesquinha, com o predomínio insolente da espora. A militarização do civil, integrado nas tropas auxiliares, realça a hierarquia e o paradigma social, fixados no corpo regular, na tropa de linha. "Não há" — geme Critilo — "não há distúrbio nesta terra / De que mão militar não seja autora."56 Vilhena não fala das "atrevidas fardas", mas lhes nota sua incivilidade, que não se dá ao trabalho de cortejar as autoridades civis.57 Dentro do arbítrio, a tropa acompanhava o exemplo de cima, ciosa de que dela e só dela, em ultima instância, dependia a autoridade, o respeito aos chefes, a obediência ao soberano. De toda parte, a elite colonial percebe o efeito nocivo de incorporar toda a população aos regimentos auxiliares ou de linha, engajamento que arrebata os valores sociais para outra esfera: a falsa, mas operante, aristocracia colonial. Um reino bem regido — reclama o autor das Cartas chilenas — não se forma só de soldados; "tem de tudo: tem milícia, lavoura e tem comércio".58 Os regimentos dos comerciantes e caixeiros seria melhor que não existissem "pelos inconvenientes que vêm ao comércio, coluna a mais forte, em que se sustenta esta importantíssima colônia; em razão das guardas, e exercícios, se perdem os caixeiros que seus patrões zelam, com muita razão mais do que se fossem donzelas, por lhes mostrar a experiência diária, que aquelas distrações, e liberdades lhes são em extremo prejudiciais, em uma cidade como a Bahia, onde a lassidão é modo de vida, e onde aparecem mil harpias para cada um Fineu. O serviço que eles fazem, quando montam guarda, melhor fora se não fizessem, porque tudo são desordens, tudo inquietação, e desaforos indignos do negro mais vil, e dissoluto".59 A crítica percute ainda no século XIX, quando a Guarda Nacional lembrará as velhas milícias e ordenanças: a patente, ao tempo que enriquece a galeria militar, desmente a doutrina bramânica, que tira dos braços de Brama os soldados, reservado o ventre para produzir comerciantes e agricultores.60 0 posto honorífico atrai todas as cobiças. O espetáculo de suas paradas varia de capitania a capitania: no Rio de Janeiro, os escravos carregam os mosquetes, os tambores e a bandeira dos oficiais, enquanto no Rio Grande do Sul, em guerra constante, apesar da farda rota e o equipamento ruim, o garbo impressiona o viajante.61
As tropas de linha, com o apêndice das milícias, desaguadouro dos conquistadores e aventureiros dos séculos XVI e XVII, formam a segura base e o penhor da obediência aos capitães-generais. O corpo regular de militares, saído dos homens de peleja de Tomé de Sousa, profissionaliza-se e se torna o exército permanente, organizado no fim do século XVIII, em termos de lealdade à metrópole. Para preencher seus claros inferiores, o recrutamento aterroriza o sertão e as vilas, em sistema que Portugal transmite à colônia. O gado humano é apanhado à força, dispensados depois os apadrinhados e os que usam as subtilezas da pecúnia.62 Somente os pobres e os desamparados não conseguem provar a incapacidade física: de quatrocentos homens apenas trinta acabam nas linhas, com o despovoamento das lavouras e a fuga das vilas.63 "É nessa ocasião que a tirania tem o seu esplendor, que o capricho e o arbítrio se aliam e que a mais injusta parcialidade prevalece, e se executa a mais intolerável opressão. O fato é que todo o país se arma, uns contra os outros, e todos os meios de surpreender cada um são usados pelo vizinho. [...] Vingança, violência, fraude, quebra de confiança, são estimuladas e, em lugar de sua supressão, recebem encorajamentos."64 O pavor ao serviço militar, a fuga ao dever de servir ao exército se prolongará até ao Império, quando as comissões de recrutamento eram expulsas, no interior, pelas mulheres. Dom Pedro II escusava-se de ampliar a tropa de linha, além da falta de recursos financeiros, pela "extrema repugnância dos brasileiros pelo serviço militar".65 O serviço militar, como profissão e atividade permanente, sem as patentes superiores, não afidalgava nem era meio de vida conveniente. O soldo e a farda sem galões de nada valiam: refugio de maus elementos, mulatos e camponeses pobres, desvalidos e trabalhadores urbanos. O olho guloso do comerciante fixa-se em outro ponto: na patente superior, que eleva, dignifica e enobrece, reservada ao comerciante, ao mulato cobiçoso de grandezas e ao áulico do governador.
A organização militar constitui a espinha dorsal da colônia, elemento de ordem e disciplina, auxiliar na garantia da cobrança dos tributos e dos privilégios reais. O caráter, a postura vertical, os padrões europeus de ética foram infundidos pelo padre, sobretudo pelo jesuíta. O missionário encontrou duas tarefas diante de si: a conquista espiritual do indígena c o domínio do branco, contendo o deslumbramento do português diante da presa sexual e da presa apta ao trabalho não pago. Obra, em conjunto, de integração de duas culturas, desde o início separados os valores superiores em duas direções, os do colono e os do diretor de consciências. No comando das orientações em dissídio, na cúpula do sistema está, sempre e ainda uma vez, o Estado, com uma circunstância especial: a história portuguesa conseguira, desde suas origens, vencer, vigiar, limitar o clero, mas jamais o absorvera como fizera com a nobreza. Comando, portanto, formal, tênue, cheio de desconfianças mútuas, em estrutura que se prolongará no Império e encontrará o desfecho na República com a separação do Estado da Igreja. No século XV, a Igreja, apesar das reminiscências césaro-papistas, está "profundamente dominada pelo Estado"66 Como habitualmente sucede, a submissão do padre — submissão relutante, inconformada e não liberta de desconfianças — decorreu da dependência financeira, entrosada no leal entendimento, composto na Idade Média, entre os desígnios papais e o dos reis de Portugal. A expansão marítima portuguesa fez-se sob as bênçãos papais, como uma cruzada moderna. As bulas reconhecem e aprovam os primeiros passos da conquista da monarquia portuguesa, consagrada com a bula Inter Coetera (1456), a base do padroado, entregues as terras novas à Ordem de Cristo. Com a incorporação da Ordem de Cristo à Coroa (dom Manuel), os "dízimos de Nosso Senhor Jesus Cristo" integraram-se nas rendas públicas, redistribuídas as despesas, às vezes em quantia superior à arrecadada, ao sustento do clero e suas empresas. O trato direto do rei com o papa, em negociações facilitadas pela velha lealdade e fidelidade da monarquia portuguesa, assegurou o controle da Igreja, com a redução do clero a um ramo da administração pública. "Em resumo,"— escreve Américo Jacobina Lacombe — "o padroado consistiu praticamente no controle das nomeações das autoridades eclesiásticas pelo Estado e na direção, por parte deste, das finanças da Igreja. Mas, na verdade, de tal maneira estava a administração eclesiástica entrosada na máquina administrativa do governo civil, que seria difícil ao vulgo ver nela não um departamento do Estado, mas um poder autônomo."67 Dentro dessas linhas se fixou a organização eclesiástica do Brasil na cúpula colonial: o primeiro bispo de Salvador (1554) , com seus oito sucessores, até que, em 1676, a diocese da Bahia se eleva à categoria de arquidiocese, reconhecido ao arcebispo, até a República, o caráter de metropolitano de toda a província eclesiástica. No fim da colônia o Brasil se estrutura desta forma: o arcebispado da Bahia, seis bispados (Rio, Pernambuco, Maranhão, Pará, Mariana e São Paulo) e duas prelazias (Goiás e Mato Grosso), circunscriações, estas, de transição para os bispados. Na cúpula do sistema, sediado na corte, a Mesa de Consciência e Ordens dirimia os conflitos e provia as matérias concernentes ao governo espiritual.
A Igreja exercia atribuições de ordem administrativa da maior relevância: os registros de nascimento, o casamento com todas as suas vicissitudes jurídicas, e a morte estavam a seu cargo. A assistência social da colônia não encontrava outro remédio senão na Igreja, entregue ao seu cuidado o ensino. O clero ordenava as relações domésticas, vigiando todas as suas particularidades, dele dependendo a vida social da colônia, com as ruidosas festividades nos pátios dos templos, onde as dispersas populações confraternizavam. Nos engenhos e fazendas os párocos, aliados à categoria dos proprietários, davam cunho ideológico às resistências contra o despotismo da pesada, dura e cruel administração colonial. Contrapunham-se aos padres burocratas, subvencionados pelas côngruas saídas dos cofres públicos. As despesas eclesiásticas, graças às quais foi possível a catequese, atingiam na fase inicial da colonização o maior vulto, somente superadas pelos gastos militares.68 O rei dotava as corporações religiosas, para o custeio de suas obras, com terras e escravos, além de dedicar-lhes rendas especiais. O pagamento aos padres sofria as mesmas dificuldades, retardamentos e incertezas que atingiam os demais funcionários civis e militares.
De todas as ordens religiosas, franciscanos, capuchinhos, beneditinos, carmelitas, oratorianos, responsáveis estes pela educação liberal de alguns homens públicos, nenhuma desempenhou, durante dois séculos (1549 a 1759), o papel dos jesuítas, junto aos indígenas e aos colonos. Nenhuma ordem, como esta, mais irredutível aos interesses econômicos dos colonos, nenhuma mais rebelde aos ditames da administração. Representou, na dissolução de costumes dos invasores brancos, a moral romana e européia, enrijecida pelo Concilio de Trento, no espírito da Contra-Reforma. Herdeira, pela inassimilação secular do clero, da voz dos profetas, defendeu uma causa, só eles coerentes num mundo subvertido pelo caos: a disciplina da sociedade a padrões religiosos. A Ordem, ao contrário das demais, vincula-se à mais estrita obediência ao papa, por meio de solene voto. A família e o Estado são desprezados, em benefício de missão mais alta e consagrada diretamente ao chefe da Igreja. Nessa submissão havia um dissídio íntimo e cheio de conseqüências latentes com o padroado. No trato com o indígena, sem respeito ao colono e a seus imediatos interesses, em desafio às autoridades do mundo, tudo levaria o jesuíta a uma organização teocrática. Obstou-lhe o passo — ao contrário da sociedade espanhola, embora também presa ao padroado — a rígida integração do Estado português, estruturado com base na supremacia do poder civil. Os bandeirantes e os colonos do norte defenderam o poder civil, compreendido o catolicismo dentro do Estado, identificado com a grei portuguesa. A organização política de Portugal nunca assentou, como a espanhola, sobre a Igreja, Igreja, contudo, limitada pelo padroado.69 O respeito devotado ao padre e ao clero, a obediência aos padrões religiosos, não impediram que a supremacia civil mantivesse suas prerrogativas de comando, alicerçadas numa secular luta. O que as ordens religiosas conseguiram, no Brasil, foi, no máximo, sobretudo pelo esforço dos jesuítas, a conservação da moldura religiosa da sociedade. Enquanto as outras ordens transigiram com a flutuante e dissolvente moral da terra, na qual os transmigrados seriam um bando desaçaimado de garanhões e de escravizadores e a indiada, matéria-prima do bordel dos sertões, os jesuítas, os "donzelões intransigentes"70, se mantiveram incólumes ao apelo da carne e à cobiça escravagista.
O domínio do indígena, sua integração à cultura européia, pareceu à autoridade metropolitana obra do missionário, com a catequese como o "prelúdio da submissão da raça inferior. Após o homem do Evangelho, com ele muitas vezes, aparecia o soldado, e em seguida o colono traficante. O episódio da conversão tinha por desfecho a fazenda agrícola, o engenho, a servidão doméstica".71 O colono queria o índio convertido em mão-de-obra barata, em escravo, escravo com os sentimentos humildes do bom cristão, modelado pelo missionário. A este desígnio obedecia o franciscano, menos rígido e menos intransigente que o jesuíta, num sistema de hibridismo cultural e de ascendência do branco.72 No primeiro contato com a terra virgem, também assim teria pensado o jesuíta, fundado nos processos persuasivos de catequese. A colonização acompanharia a catequese, feitos os índios cristãos e sujeitos ao branco.73 Não tardam a perceber o engano, fundado em duas hipóteses falsas: a mansidão do indígena e a moderação do colono. O colono quer braços e concubinas, o índio, arrancado de seus costumes, reage com ferocidade contra o branco, rebelde na sua cultura bravia. A solução híbrida não lhes parecerá outra coisa que a barbarização do branco e a degradação do vermelho. O isolamento do índio, entregue a si próprio, somente vinculado ao português por meio de alianças e com a divisão das tribos rivais para equilibrar seu poder, parecer-lhes-á traição ao imperativo missionário. O alvitre que lhes ocorre, em desvio aos dois sistemas, seria a segregação vigiada, da qual o aldeamento era uma modalidade. Para alcançar os sertões, para sair da praia e invadir o interior, desesperançados da persuasão pacífica, o caminho devia ser aberto a fogo, num plano onde está implícita a obediência do conquistador ao padre, cabendo a este legitimar o cativeiro. Nóbrega, em 1558, lança as bases de seu plano colonizador, no qual a espada impaciente, filha do brio português, teria o primeiro papel. "E são tão cruéis e bestiais," — observa o jesuíta — "que assim matam aos que nunca lhes fizeram mal, clérigos, frades, mulheres de tal parecer, que os brutos animais se contentariam delas e lhes não fariam mal. Mas são estes tão carniceiros de corpos humanos, que sem exceção de pessoas, a todos matam e comem, e nenhum benefício os inclina nem abstém de seus maus costumes, antes parece e se vê por experiência, que se ensoberbecem e fazem piores, com afagos e bom tratamento. [...] Este gentio é de qualidade que não se quer por bem, senão por temor e sujeição, como se tem experimentado e por isso se S.A. os quer ver todos convertidos mande-os sujeitar e deve fazer estender os cristãos pela terra adentro e repartir-lhes o serviço dos índios àqueles que os ajudaram a conquistar e senhorear, como se faz em outras partes de terras novas, e não sei como se sofre, a geração portuguesa que entre todas as nações é a mais temida e obedecida, estar por toda esta costa sofrendo e quase sujeitando-se ao mais vil e triste gentio do mundo." [...] "Sujeitando-se o gentio, cessarão muitas maneiras de haver escravos mal havidos e muitos escrúpulos, porque terão os homens escravos legítimos, tomados em guerra justa, e terão serviço e vassalagem dos índios e a terra se povoará e Nosso Senhor ganhará muitas almas e S.A. terá muita renda nesta terra, porque haverá muitas criações e muitos engenhos já que não haja muito ouro e prata." "Devia de haver" — acrescenta ao assentar a cúpula de seu plano colonizador e catequizador — "um protetor dos índios para os fazer castigar quando o houvessem mister c defender dos agravos que lhes fizessem. Este devia ser bem salariado, escolhido pelos Padres e aprovado polo Governador. Se o governador fosse zeloso bastaria ao presente."74 Os objetivos da obra missionária seriam evitar que o indígena comesse carne humana, se lançasse às suas guerras permanentes e corresse o sertão, sem pouso. Os índios se vestiriam e adotariam a monogamia, com o afastamento das crianças do mau exemplo paterno, embora muitos, apenas crescidos, voltem à magia do sertão, com o abandono da fé e dos preceitos cristãos. Os colonos, entretanto, não queriam cristãos, mas escravos, desejo que os padres não recusariam, com o negro, num acordo de tendências, advogado pelos jesuítas.75 Daí a contradição: o escravo índio estaria submetido a restrições, enquanto o escravo negro não tinha nenhum direito, salvo o da brandura cristã dos senhores. Desta sorte inaugura-se o mais profundo dissídio colonial, entre jesuítas e colonos, entre jesuítas e bandeirantes, entre jesuítas e câmaras municipais, entre jesuítas e as milícias, e, por fim, entre jesuítas e governo. A baixa extração dos colonos atribuíam os padres a indianização moral do português, instando com o rei para mandar ao Brasil homens de melhor origem. Por "melhor gente", por gente rica capaz de obter escravos importados, clamavam os padres76, vendo no aventureiro o povoador transitório, embriagado pela carne fácil e pelo trabalho alheio. Na região amazônica, como outrora nas terras vicentinas, onde as culturas pobres não permitiam o negro, a luta se fez contínua, até à expulsão dos jesuítas. Sem o índio não haveria produção, sem produção não haveria colonos e conquistadores, sem estes a fronteira se perderia. A legislação portuguesa, varrida de interesses contraditórios, tergiversou entre um pólo e outro, ao sabor das influências, ora poderosas dos jesuítas, ora incontrastáveis dos colonos.77 No fundo, os jesuítas se mantinham irredutíveis, apesar das concessões secundárias, numa doutrina, inaceitável para os colonos e para o rei: "a liberdade dos índios, com isenção da autoridade civil e sujeição incondicional aos missionários".78
As aldeias ficariam incólumes aos agentes régios e à corruptora influência do branco. Um gigante iluminou a cena da secular batalha, na voz do padre Antônio Vieira. Ele não se opunha à escravidão, mas queria escravidão sem o demônio de permeio — para os negros o reino dos céus redimiria o martírio, transformando-os, na vida futura, "posto que pretos, em anjos".79 O cativeiro deveria ser lícito, isto é, aprovado e regulamentado pelos jesuítas, admitida a tomada do índio em duas hipóteses: os resgatados das cordas de seus semelhantes e os conquistados em justa guerra. Os outros seriam aldeados ou repartidos pelos moradores, com serviço de seis meses ao ano, mediante salário, "Este povo, esta República, este Estado, não se pode sustentar sem índios. Quem nos há de ir buscar um pote de água ou um feixe de lenha? Quem nos há de fazer duas covas de mandioca? Hão de ir nossas mulheres? Hão de ir nossos filhos? — Primeiramente" — esclarecia o grande orador — "não são estes os apertos em que vos hei de pôr, como logo vereis; mas quando a necessidade e a consciência obriguem a tanto, digo que sim, e torno a dizer que sim: que vós, que vossas mulheres, que vossos filhos e que todos nós nos sustentássemos dos nossos braços; porque melhor é sustentar do suor próprio, que do sangue alheio. Ah fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torcerem, haviam de lançar sangue."80
Esta batalha, na parte que procura segregar e libertar o índio, perderam-na os jesuítas. O Estado português não permitia outro poder senão o de sua administração e de seus agentes, frustrado o plano de uma teocracia limitada ao sertão. Perderam-na também no ponto em que procuraram evitar o hibridismo, na indianização do branco, no desenfreado gosto por muitos braços escravos, no amor à submissão, às superstições, na conquista de muitas mulheres, com o puritano modelo de família. Mas a guerra eles a venceram, em profundidade e em amplitude histórica: o padrão europeu e católico de moral se transplantou na conquista portuguesa, padrão, na verdade, nem sempre obedecido na consciência, mas respeitado na conduta exterior. A cultura nativa deixou traços, reminiscências, resíduos: seu conteúdo ósseo se perdeu, substituída pela predominância portuguesa, infiltrada — apenas infiltrada — de águas subterrâneas, degradadas, espiritualmente degradadas. A conciliação das duas culturas seria impossível, como impossível a segregada permanência do indígena. Em todos os tempos, as culturas, quando se encontram, combatem, com o sacrifício de uma, num permanente processo de trituramento interior, com a sobra da nostalgia idealizada da civilização perdida e soterrada, longínqua e morta. Os desagregadores e persistentes sentimentos, os costumes indígenas e negros nada puderam contra o núcleo europeu de cultura, que a língua e a ética expressaram: os jesuítas "levantaram uma barreira à desintegração da herança cultural de que eram depositários e de que foram, na colônia, os mais autorizados representantes e os propagadores mais ardentes. As águas que colheram nas fontes da Igreja e nas tradições da Metrópole e que fizeram derivar das altas cumeadas de seus colégios, derramaram-se pelas duas vertentes — a das senzalas e a das aldeias de índios. Embora não tenham chegado com todo o seu esforço a neutralizar as influências que foram enormes, das duas culturas — indígena e, sobretudo africana, a mais próxima e penetrante, é certo que conseguiram contê-las bastante para que a unidade cultural não se dissolvesse ou quebrasse sob a pressão permanente de uma extraordinária diversidade de elementos heterogêneos".81 Esta obra teve um preço, que a cultura brasileira rigorosamente pagou. A espontaneidade da criação artística, a incorporação da ingenuidade literária na obra culta, o vínculo vivo entre povo c letrados ficaram comprometidos. O padre, desta sorte, embora impelido para uma constelação autônoma de valores, relutante a se subordinar à ordem civil, contribuiu para reforçar a tendência de concentrar, em poucas mãos e numa camada homogênea de comando, a direção da vida espiritual, autoritariamente fixada e congelada. Uma outra corrente, aberta à ciência experimental e engrossada pelo liberalismo, já nos dias da Independência, procurará desacreditar a austera fisionomia imposta de fora, fisionomia severa e, muitas vezes, cruel na sua rispidez. No fundo, quebrada a comunicação entre as forças primárias e a disciplina culta, haverá, por muito tempo, na superfície do mundo da cultura, troca de roupagens, com a importação de peças mais novas c mais vistosas. O alheamento do comando ao povo comandado — alheamento político e cultural — será definitivo, irrevogável, permanente. Mais forte do que a emancipação à autoridade civil e o tropismo à direção do pontífice revelou-se a integração na ordem da rede burocrática: o padre cedeu à prisão do padroado e à dependência econômica, funcionário também ele num universo de funcionários.
Uma imensa cadeia, formada aos pés do rei e alongada na colônia, penetra em todas as atividades. O plantio de cana, a extração de madeiras, a lavra das minas obedeciam aos interesses fiscais do Estado. A consciência do homem, sua palavra e suas expressões políticas estavam à mercê dos censores, censores informais ligados ao padre e ao funcionário. A burguesia se enobrece com a compra de cargos, o pardo se afidalga com o uniforme das forças paramilitares. O cargo domestica turbulências dispersas, imantando, na sua dignidade, a submissão ao soberano. O velho e tenaz patrimonialismo português desabrocha numa ordem estamental, cada vez mais burocrática no seu estilo e na sua dependência. O rei, por seus delegados e governadores, domina as vontades, as rebeldes e as dissimuladas: "neste Estado há uma só vontade" — escrevia o padre Antônio Vieira, em 1655 — "e um só entendimento e um só poder, que é o de quem governa".82 O poder é o poder — esta a fórmula ainda dominante no Segundo Reinado, na palavra sem adjetivos de um tribuno, o primeiro que falou em nome de uma ficção, o povo.
3. As classes: transformações e conflitos
A sociedade colonial não esgota sua caracterização com o quadro administrativo e o estado-maior de domínio, o estamento. Esta minoria comanda, disciplina e controla a economia e os núcleos humanos. Ela vive, mantém-se e se articula sobre uma estrutura de classes, que, ao tempo que influencia o estamento, dele recebe o influxo configurador, no campo político. O patrimonialismo, de onde brota a ordem estamental e burocrática, haure a seiva de uma especial contextura econômica, definida na expansão marítima e comercial de Portugal. A burguesia, limitada na sua vibração e vinculada nos seus propósitos ao rei, foi incapaz, incapaz secularmente, de se emancipar, tutelada de cima e do alto.
A classe é um fenômeno da economia e do mercado, sem que represente uma comunidade — embora a ação comunitária seja possível, provável e freqüente com base na situação comum e em interesses homogêneos. Ter ou não ter — obter lucros, possuir bens, ou desfrutar de ingressos econômicos em virtude de habilitação profissional — situam a classe, positiva ou negativamente qualificada. O ter e o não ter, a capacidade de lucro ou salário refere-se ao mercado, aos valores que se podem fixar em termos econômicos, redutíveis, em expressão última, ao dinheiro.83 As classes, nas suas conexões com o domínio, o comando e a política, ganham ascendência com a sociedade burguesa, com a Revolução Industrial. Num período pré-capitalista — de capitalismo comercial ou de capitalismo politicamente orientado —, elas se acomodam c subordinam ao quadro diretor, de caráter estamental. Suas pretensões de se apropriar das decisões do Estado ou do seu mecanismo se perdem na mediação de outras categorias, fortes para a ação imediata somente com o predomínio da sociedade industrial. As formas sociais e jurídicas assumem caráter constitutivo na estrutura global, estabilizando as manifestações econômicas, freando o domínio das classes.84 Essa posição subalterna das classes caracteriza o período colonial, com o prolongamento até os dias recentes, sem que o industrialismo atual rompesse o quadro; industrialismo, na verdade, estatalmente evocado, incentivado e fomentado. Numa sociedade desta sorte pré-capitalisticamente sobrevivente, apesar de suas contínuas modernizações, a emancipação das classes nunca ocorreu. Ao contrário, a ascensão social se desvia, no topo da pirâmide, num processo desorientador, com o ingresso no estamento. A ambição do rico comerciante, do opulento proprietário não será possuir mais bens, senão o afidalgamento, com o engaste na camada do estado-maior de domínio político.
O processo de decantação tipológica indicará as classes que ocupam o tabuleiro social num plano teórico: a classe proprietária, a classe lucrativa e a classe média. A classe proprietária se define pelas
diferenças de bens, que determinam a situação dos membros. O setor positivamente privilegiado se compõe de senhores de rendas — rendas colhidas em imóveis, escravos, barcos, valores e créditos. No pólo contrário, gemem os objetos da propriedade (escravos), déclassés, devedores, pobres. A classe lucrativa (especulativa) encontra seu caráter nas probabilidades de valorização de bens e serviços no mercado —comerciantes, armadores, industriais, empresários agrícolas, banqueiros e financistas, e, mediante certas circunstâncias, profissionais liberais de grande e qualificada clientela, mais orientadores econômicos, associados aos primeiros, do que dependentes de honorários. Os trabalhadores, qualificados, semiqualificados e braçais, se agrupam no extremo negativamente privilegiado. A chamada classe média recolhe as camadas intermediárias dos grupos de proprietários e especuladores e mais setores de expressão própria: a pequena burguesia antiga e a nova classe média dos empregados com status quase autônomo (white collar). Na classe proprietária predomina a tendência à estabilidade social, enquanto a classe lucrativa se beneficia das mudanças sociais.85 Pelo estilo de vida, a classe proprietária e certos setores da classe média são os que mais se aproximam do estamento. Não obstante, no sistema global português-brasileiro o estamento assenta, viça e se desenvolve sobre a classe lucrativa, com os impedimentos e limitações que a condicionam, voltando-a para o capitalismo comercial e o capitalismo politicamente orientado, que se desenvolveu à ilharga da velha monarquia de Avis.
A tradicional visão da sociedade da colônia dos dois primeiros séculos reduz as classes a duas, senão a uma, em seus dois pólos extremos: o proprietário rural, com engenhos e fazendas, contraposto à massa dos trabalhadores do campo, escravos e semilivres.86 O proprietário rural, com a economia assentada na sesmaria latifundiária, ganharia status aristocrático, em simbiose com a nobreza de linhagem. Mais um passo: o "aristocrata" comandaria a vida política local, controlando e calando muitas vezes a supremacia administrativa reinol. Volvidos dois séculos, o comércio, com as concentrações urbanas, se levantaria, em aliança com o rei, para nova mudança nas peças do xadrez. A tese sofre da projeção das sombras feudais, esteticamente entrevistas na colônia, adensada pelo trânsito da ordem econômica na estrutura política, sem respeito à armadura fixada em muitos séculos da monarquia lusa. A aparência jura em favor do esquema, aparência colhida nos cronistas e viajantes do período colonial. Fernão Cardim descreve, no primeiro século, salivando de gulodice, "os grandes banquetes de extraordinárias iguarias" que lhe foram oferecidos nas fazendas e engenhos: "em Pernambuco se acha mais vaidade que em Portugal".87 Cem anos depois, Antonil doura o quadro com o fumo aristocrático: "O ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. E se for, qual deve ser, homem de cabedal e governo, bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho, quanto proporcionalmente se
estimam os títulos entre os fidalgos do Reino".88 Os lavradores, os oficiais e os escravos dependem do senhor de engenho. Igualmente, já no século XIX, Tollenare e Koster sentiram, no interior da zona
açucareira, a supremacia do senhor de engenho, supremacia esbanjadora, envolta em luxúria e muitas vezes cruel.
Esta perspectiva, todavia, projeta-se apenas internamente, desdenhosa da administração e dos empórios comerciais, penetrando na realidade rural. Será uma visão, para o tempo, viciada pela troca de datas: ela alcança o Brasil, não como colônia e economia dependente, mas como metrópole. São olhos — pode-se dizer sem quebra do respeito que merecem historiadores e sociólogos —, são olhos provincianos, perturbados pelo latifúndio e pelo município. Sem aprofundar as linhas de suas observações, bem percebeu Capistrano de Abreu as duas faces da vida econômica colonial, a face internacional e interoceânica, e a face interna89, mal advertido que o comércio por via metropolitana dá a vida, a luz e o calor à fazenda de plantação.
Um veio esquecido leva a subverter o esquema tradicional, com o discernimento de vínculos e ligações que conduzem à metrópole, à sua secular estrutura econômica e social. Aberta a economia açucareira na colônia, depois que, no mundo, o açúcar deixa de ser especiaria para se converter em mercadoria do comércio em grande escala, os historiadores escamoteiam da cena os negociantes, financiadores de dinheiro e de escravos, afastando-os da face da vida brasileira. O predomínio mercantil da atividade metropolitana como que some na aventura da Índia, sem deixar vestígios. João de Barros já revela, entretanto, o miolo da própria expedição de Cabral, denunciando a presença dos donos e armadores de navios, comerciantes e nobres, envoltos na cobiça. "Os capitães dos outros navios eram Diogo Barbosa, criado de dom Álvaro, irmão do duque de Bragança, pelo navio ser seu, e Francisco de Movais, criado de el-rei, e o outro era Fernão Vinet, florentim de nação, pelo navio em que ele ia ser de Bartolomeu Marcioni [Marchioni], também florentim, o qual era morador em Lisboa, e o mais principal em substância de fazenda que ela naquele tempo tinha feito.
"Ca ordenou el-rei, para que os homens deste reino, cujo negócio era comércio, tivessem em que poder tratar, dar-lhe licença que armassem naus para estas partes, delas e certos partidos e outros a frete, o qual modo de trazer a especiaria a frete ainda hoje se usa. E, porque as pessoas a que el-rei concedia esta mercê, tinham por condição de seus contratos, que eles haviam de apresentar os capitães das naus ou navios, que armassem, os quais el-rei confirmava, muitas vezes apresentavam pessoas mais suficientes para o negócio da viagem e carga que haviam de fazer, do que eram nobres por sangue."90 No mesmo sistema, o pau-brasil foi entregue, por contrato, a um poderoso comerciante. Daí por diante, a paisagem dos canaviais e dos engenhos obscureceu as cordas que movem os escravos e as máquinas. Quem os recorda, entretanto, são os próprios viajantes e cronistas dos primeiros séculos, já em plena euforia açucareira. A terra doada, as sesmarias obtidas sem dinheiro, fazem supor que, do chão americano, surgiu, sem outros esteios, a exploração açucareira. O viço das casas senhoriais, a mesa esbanjadora, o luxo farto conduz a muitos enganos. Estas exterioridades custavam, na verdade, muito, assentadas sobre o escravo e o investimento do engenho. Gandavo (1576) não se cansa de insistir: os moradores todos tem terras, mas "a primeira cousa que pretendem alcançar, são escravos para lhes fazerem e granjearem suas roças e fazendas, porque sem eles não se podem sustentar na terra".91
Pouco mais tarde, Fernão Cardim, deslumbrado com os senhores de engenho — "na fartura parecem uns condes' —, sente que o escravo, que morre à toa, "os endivida sobre todo este gasto".92 No começo do século XVII, os Diálogos das grandezas do Brasil acentuam que "a maior parte das riquezas dos lavradores desta terra consiste em terem poucos ou muitos escravos", sem esquecer que o engenho exigia cabedal, "grande quantidade de dinheiro" e crédito largo, "com mais de 85 por cento de avanço", na prática da horrenda onzena, que o Santo Ofício viria a descobrir, bastante atuante, no Brasil.93 O engenho, lembra Antonil, requer "homem de cabedal" e crédito, crédito que, levado ao abuso, conduz às quebras. O cabedal é a garantia do empreendimento, o crédito a sua ruína, pasmando o cronista que os aspirantes e senhores achassem "quem lhes emprestasse alguma quantidade de dinheiro, para começar a tratar de que não são capazes por falta de governo e de agência, e muito mais por ficarem logo na primeira safra tão empenhados com dívidas, que na segunda ou terceira já se declaram perdidos".94 O crédito penetra em todas as operações econômicas, para a compra da cana, o pagamento de salários, a aquisição de escravos e a venda do açúcar.
O senhor de engenho trabalha a crédito; o comerciante, embora às vezes ele próprio senhor de engenho — em nome e por conta de outro sediado na metrópole —, fornece dinheiro em troca da produção. "O crédito de um senhor de engenho funda-se na sua verdade, isto é, na pontualidade e fidelidade em guardar as promessas. E, assim como o hão de experimentar fiel os lavradores nos dias que se lhes devem dar para moer a sua cana, e na repartição do açúcar que lhes cabe, os oficiais na paga dos soldados, os que dão a lenha para as fornalhas, madeira para a moenda, tijolo e formas para a casa de purgar, assim também se há de acreditar com os mercadores e correspondentes na praça, que lhe deram dinheiro, para comprar peças [escravos], cobre, ferro, aço, enxárcias, breu, velas e outras fazendas fiadas. Porque, se ao tempo de frota não pagarem o que devem, não terão com que se aparelhem para a safra vindoura, nem se achará quem queira dar o seu dinheiro ou fazenda nas mãos de quem lha não há de pagar, ou tão tarde e com tanta dificuldade que se arrisque a quebrar.
"Há anos em que, pela muita mortandade dos escravos, cavalos, éguas e bois, ou pelo pouco rendimento da cana, não podem os senhores de engenho chegar a dar a satisfação inteira do que prometeram. Porém, não dando sequer alguma parte, não merecem alcançar as esperas que pedem, principalmente quando se sabe que tiveram para desperdiçar e para jogar o que deviam guardar para pagar aos seus credores."95 Os portos acolhiam mercadores e comissários, agentes dos comerciantes da metrópole, na compra antecipada do produto, com o fornecimento de escravos e mercadorias a crédito, num extenso e profundo tecido de adiantamentos. O papel mais saliente da economia colonial se concentra na aquisição da mão-de-obra escrava, que se íntegra no capital da empresa, com cerca de 16%, percentagem que, na lavoura, se elevará a mais de 70%.96 O tráfico de escravos, aproveitado por mercadores e personagens do Estado, se expande até ao fazendeiro e senhor de engenho, com pagamento de apenas um quarto à vista.97
Essa estrutura econômica — a produção voltada para a metrópole comercial, integrada na economia européia pela intermediação de Portugal — suscita e evoca uma classe, a classe que negocia, compra e revende, financia e fornece as utilidades produtoras. A esquecida exploração comercial há de reconquistar o seu lugar, o primeiro lugar que lhe outorga a ordem econômica, junto e ao pé da camada dominante na ordem social. No centro do sistema, o mercantilismo, com a dependência da colônia à metrópole. Uma burguesia comercial, posta na sombra pelos historiadores, se conjuga com o listado, que a licencia, entrega-lhe os contratos, os arrendamentos de tributos e de monopólios, regulamentando-a burocraticamente. Vista pela aristocracia com desdém, com ela se associa na obra comum da exploração das colônias e conquistas, com aquele hibridismo incoerente já percebido por João de Barros. Comerciantes, na verdade, não só portugueses, mas italianos (venezianos e florentinos), flamengos e alemães — os Adornos, os Marchionis, os Fuggers, os Welsens, todos, por si ou por seus agentes, privilegiados pelo rei para o tráfico que de Lisboa se irradia pela Europa, com restrições xenófobas só levantadas no século XVII. Muito comerciante estrangeiro animou as primeiras empresas açucareiras, concentrado geograficamente em Lisboa, reduzida, nos negócios de ultramar, ao centro ativo metropolitano.98 O negociante português seria uma constante na vida colonial e no Império, combatido, a partir do século XIX, nas expansões nativistas e como reação da classe proprietária, que só se consolida com a autarquia agrária das fazendas, na realidade expressão da decadência do comércio internacional. No começo do século XVII, a presença do comerciante ocupa o centro do palco, ferido embora pelo desprezo do fidalgo, o que o leva a afidalgar-se para conquistar posição social, atacado, ainda, pela concepção velhamente portuguesa e européia de considerá-lo o parasita por excelência, o ocioso e improdutivo sanguessuga do trabalho alheio. Brandônio será a voz do mundo colonial: os mercadores "trazem do reino as mercadorias a vender a esta terra, e comutar por açúcares, do que tiram muito proveito; e daqui nasce haver muita gente desta qualidade nela com suas lojas de mercadorias abertas, tendo correspondência com outros mercadores do reino, que lhas mandam; como o intento destes e fazerem-se somente ricos pela mercancia, não tratam do aumento da terra, antes pretendem de a esfolarem tudo quanto podem". Olinda, fala ainda o autor dos Diálogos das grandezas do Brasil, nos seus "inumeráveis mercadores com suas lojas abertas, colmadas de mercadorias de muito preço, de toda a sorte, em tanta qualidade que semelha uma Lisboa pequena".99
O mecanismo das intermediações, que granjeia riqueza e opulência, tem já uma rede local: um grupo de comerciantes trabalha por ida e vinda, trazendo mercadorias e levando açúcar, algodão, etc; outro fixa-se na terra com lojas. As mercadorias trazidas do reino são cambiadas aos comerciantes locais, com 40% de ágio, vendidas nos engenhos e fazendas, pelos ambulantes, com 100% de lucro. "E eu vi" — conta o escandalizado Brandônio — "na capitania de Pernambuco a certo mercador fazer um negócio, posto que o modo dele não aprovo, pelo ter por ilícito, o qual foi comprar para pagar de presente uma partida de peças da Guiné por quantidade de dinheiro e logo no mesmo instante, sem lhe entrarem os tais escravos em poder, os tornou a vender a um lavrador fiados por certo tempo que não chegava a um ano, com mais de 85 por cento de avanço".100 A impiedosa exploração mercantil aos lavradores e senhores de engenho cria muitos conflitos, ao tempo que alimenta o "infinito luxo sem cabedal". O padre Antônio Vieira testemunha, em 1697, um dissídio entre mercadores e produtores de açúcar, em denúncia implícita sobre as vantagens extorquidas pelos agentes metropolitanos. Os mercadores querem que o açúcar desça a 1$400 e os senhores de engenho que suba a 1$600. "Eu também sou de voto que se abata o preço do açúcar, mas com a balança na mão, de maneira que também se abatam os preços das outras cousas; mas é manifesta injustiça, que, crescendo os de lá e os de Angola cento por cento mais, se queira no mesmo tempo que toda a baixa das drogas seja a do Brasil".101 A riqueza exige maior participação nos negócios públicos e o afidalgamento, reservado este, no primeiro século, aos senhores de engenho, aos conquistadores militarizados e aos funcionários reinóis. A tendência se reforça, no século XVIII, com a venda de cargos públicos, porta ampla que permite à burguesia acotovelar, familiarmente, a aristocracia. A luta dos comerciantes — da qual a guerra dos mascates é um episódio — traduz anseio de integração social e não apenas a partilha de vantagens, evidente desde a primeira caravela que aportou no ultramar atlântico. Azedamente, contra esse afidalgamento, um escritor do fim do século XVIII formula o protesto zombador os caixeiros, pobres reinóis enriquecidos e convertidos em comerciantes, supõem que o Imperador da China é indigno de cuidar de seus filhos. Com a "mania de ser nobres" ostentam a "quiméríca nobreza", usurpando apelidos aristocráticos, "tanto se empavonam com esta imaginação, que tem para si que um duque é nada para si".102
A peculiar contextura da metrópole, que assegura para si todo o comércio da Europa, África e Ásia, redistribuindo mercadorias para a América — a economia de transporte —, torna os comerciantes sediados no Brasil, reinóis quase todos como seriam ainda no século XIX, dependentes de Portugal. O comerciante brasileiro tem um braço preso em Portugal, enquanto estende o outro para o interior, ramificado na rede distribuidora nas localidades e por meio dos mascates. A economia colonial, por essa via, se insere na economia metropolitana, vinculada aos mercadores das praias portuguesas, ou, em certos momentos, às companhias de comércio privilegiadas, sob o direto comando da Coroa.
A política colonialista guarda para a metrópole o monopólio do comércio, servindo a ordem administrativa e fiscal para consolidar e estabilizar esse elo. Monopólio para a metrópole e não para o rei, limitado este a alguns estancos. O modo de produção sofre a determinação desse ditado mercantil: o açúcar recebe incentivo e incremento em função do mercado distribuidor. Bem verdade que a cadeia colonial de comércio estava ferida, antes da transmigração da corte, pelo comércio inglês, licenciado excepcionalmente e tolerado pelo contrabando. A Revolução Industrial, liderada pela Inglaterra, tornou precários, em todo o globo, os mercados cativos, mesmo antes da entrada de Junot em Portugal.103 Em 1798, a praça da Bahia, "uma das mais comerciosas das colônias portuguesas"104, oferece o seguinte quadro: 1) exportação da Bahia para Portugal: Rs. 2.688:354$070, com 1.646:576$640 reservados ao açúcar, 669:701$750 ao tabaco, 148:427$400 ao algodão e 100:000$000 em moeda corrente; 2) importação de Portugal: Rs. 2.064:012$430, com 794:952$140 de mercadorias gerais da Europa, 548:657$380 de mercadorias de fabricas de Portugal, 440:018$510 de mercadorias de fabricas particulares e 280:384$400 de mercadorias da Ásia. Da Costa da Mina e de Angola (conquistas portuguesas) recebeu escravos, no valor de Rs.662:380$000, cabendo ao Rio Grande de São Pedro o maior quinhão do comércio costeiro, com Rs. 382:000$000, do qual 360:000$000 queijos e trigo. O comércio do Brasil, até 1808, com a exceção inglesa a partir de 1800, corria para Portugal, que aplicava os produtos na Europa e dela comprava as mercadorias introduzidas no Brasil. O comerciante português, além dos fretes, embolsa os lucros das vendas e das compras, com parasitismo quase integral, visto serem as reexportações portuguesas, no período final da colônia, constituídas, na maior parte, da produção brasileira. O mercado brasileiro, consumidor obrigatório da produção e da reexportação portuguesas, não concorre com o reino com mercadorias que este pudesse produzir. Hamburgo, os portos da Holanda — sempre a Holanda de Bruges e Flandres da velha feitoria portuguesa —, Veneza e Gênova cobrem o centro e o sul da Europa com o açúcar brasileiro, por conta do comércio português, que arrecada lucros, sem contar o frete, em torno de trinta a quarenta por cento. O escravo será outra fonte de benefícios, com o lucro e os fretes, negócio do qual a Coroa participava largamente, com as rendas tributárias e contratuais. A ameaça ao sistema de comércio não provém da produção brasileira, mas da manufatura inglesa, que expulsa, pouco a pouco, a mais onerosa e a mais tosca produção portuguesa. De 1800 e 1801 em diante, as manufaturas portuguesas caem bruscamente na exportação ao Brasil, vinte por cento ao ano, até que em 1807 se reduzem a trinta por cento do valor de referência. O pacto colonial cede ao golpe da Revolução Industrial, pacto já comprometido, como se verá (n.° 4), desde a Restauração, sem esperar pelos providenciais soldados de Junot — daí por diante a metrópole passará a se caracterizar como força nua da espoliação, tendente a colônia a fugir do sufocante controle português.
Nessas circunstâncias, o comerciante sediado no Brasil não será outra coisa senão o representante do sistema metropolitano, no setor dinâmico das reexportações e do transporte de mercadorias. Ele recebe a energia de Lisboa e transmite vibração à agricultura, alimentando-a de escravos e mercadorias européias, ao tempo que subjuga a produção aos seus interesses. Não passa, na verdade, de comissário do grande negociante português, não raro abastecido de recursos da metrópole ou "com cabedais de personagens a quem seria menos decente o saber-se que comerciam".105 O famoso relatório do marquês de Lavradio, de 1779, tocou no ponto sensível da situação dos mercadores da praça do Rio de Janeiro: "A maior parte das pessoas a que se dá o nome de comerciantes nada são que uns simples comissários [...] Como estes homens são muito ativos e de verdade e têm tido a fortuna de poderem dar uma pronta saída às fazendas que lhes vêm, de as reputarem bem, e de as passarem a pessoas que lhes façam mais prontos pagamentos, e de serem diligentes de procurarem novas cargas para a pronta saída dos navios que lhes são encarregados, esta notícia, comunicada aos negociantes da Europa, os obriga a procurá-los por por seus comissários, e dirigir-lhes à sua comissão os efeitos e embarcações que para aí mandam".106 O inconveniente desse tipo de comércio já fora apontado pelo estadista: a obediência às ordens estritas dos negociantes reinóis impede-os de mandar outros gêneros que os pedidos pela metrópole com a estabilidade e rotina do tráfico. De outro lado, a desnecessidade de capital próprio avultado atrai os imigrantes portugueses para o balcão, desviando-os da agricultura. O comissário tem dois comitentes: o negociante europeu e o produtor brasileiro, função que lhe permite ser o árbitro da produção e dos preços. Um século depois, o mais profundo analista do Segundo Reinado dirá que o crédito faz do fazendeiro "o empregado agrícola que o comissário ou o acionista de banco tem no interior para fazer o seu dinheiro render acima de 12%".107 O comerciante — a burguesia comercial — libará o mel do açúcar, com os proventos da exportação e reexportação, ficando o industrial e o lavrador com as sobras e os ônus.
A classe proprietária, a outra coluna que fixa a estratificação social do mundo colonial, nem sempre ostenta caracteres de pureza tipológica. No topo da pirâmide, ela se descaracteriza, pendendo para a classe lucrativa, no senhor de engenho. O empresário industrial, ligado ao mercador, predomina, em intensidade proporcional aos seus cabedais, sobre o proprietário de escravos e de terras. De outro lado, dado seu caráter misto — industrial mercantilizado c fazendeiro —, a unidade agrícola se adelgaça, nos momentos de prosperidade, na monocultura e se retrai, durante a crise, para a fazenda autosuficiente, em regime de economia natural. O lavrador puramente lavrador — de cana, tabaco, algodão e café, como o criador de gado, são essencialmente membros da classe proprietária, mais próximos, em virtude dessa circunstância, das culturas complementares de subsistência. No ritmo geral da economia brasileira, em certos momentos de valorização da agricultura de subsistência, esta se transmuta na de exportação — sobretudo interna, de capitania a capitania —, fenômeno ocorrido no Rio Grande do Sul, no começo do século XX, com o desaparecimento do trigo e a importação de produtos agrícolas, numa sociedade revitalizada pela imigração de lavradores açorianos.108 O fenômeno, com as oscilações polares, e constante: vale para o açúcar, o ouro e o café. A monocultura, apesar dos males que lhe aponta Gilberto Freyre, sobretudo na dieta das populações109, foi o fator maior da integração das capitanias, com a aquisição distante de alimentos, trocados por produtos exportáveis, numa sociedade quase sem moeda, integração servida também pelo tráfico de escravos de costa a cosia, ou da costa para o interior. Depois de um período de indecisão econômica, na passagem da economia de escambo para a de produção, com a crise dos anos 1540-45, que exigiu enorme quantidade de mão-de-obra para o açúcar, a abundância de gêneros de consumo repentinamente desaparece.110
As mesas variadas, que tanto despertaram a gula do padre Fernão Cardim, se concentram nas casas opulentas, aptas a pagar os altos preços da importação. A ordem sonhada por Duarte Coelho (1549) no aproveitamento das terras — terras para os engenhos, para os povoadores abastados, terras para os canaviais, algodões e de mantimentos para os outros111 — se dissolve em projeto frustrado, no curso de poucos anos. Brandônio, no fim do século, louvará a terra, onde toda agricultura floresce, pela fertilidade, clima e céus, mas decepciona-o a escassez e carestia de "mantimentos legumes". A causa: todos os moradores querem enriquecer depressa, para voltar ao reino, sem cultivar as lavouras para perpetuar a exploração do solo. Os plantadores de mantimentos, eles próprios especializados, procuram o mercado para vender seus gêneros, sem que as plantações se diversifiquem.112 No fundo, a febre mercantil atormenta todas as cabeças, convertido o plano dos donatários em peças autônomas da busca da riqueza, ao serviço do "nervo e substância" de todas: o açúcar. Tudo para a falsa grandeza efêmera dos senhores de engenho, que um professor de grego, desdenhoso de suas pompas, descreverá: "soberbos de ordinário, e tão pagos de sua glória vã, que julgam nada se pode comparar com eles, logo que se vêem dentro nas suas terras, rodeados dos seus escravos, bajulados dos seus rendeiros, servidos dos seus mulatos, e recriados nos seus cavalos de estrebaria, como lhes chamam, uns de folgar, que são os que têm diversos passos, trocadilhos, e habilidades, outros esquipadores, e são os que têm um passo velocíssimo, e composto, e outros com diferentes qualidades, e predicados; comprados por exorbitantes preços, e ricamente ajaezados. Esta é pois a glória dos senhores de engenho, e para maior auge dela, têm na cidade casas próprias, ou alugadas, cumpre muito que tenham cocheira, ainda que não haja sege, o que suprem asseadas cadeiras, que todos têm, em que saem acompanhados dos seus lacaios mulatos, ornados de fardamentos asseados".113 Ao seu lado, movendo os fios da economia, os mercadores — e na base os escravos, ocupados com o trabalho de sol a sol, aos quais mal se permite a roça de mandioca, alimentados com "uma quarta de farinha e meia libra de carne seca, 9para se sustentarem dez dias".114 A imagem do Brasil de Gandavo (1570) está morta: o português ocioso com meia dúzia de escravos, um para pescar e um para caçar e os outros nas roças de mantimentos. Em seu lugar, a devastação mercantil e o desejo de retornar ao reino, para exibir as glórias da opulência.
O engenho de açúcar procura, de acordo com o esquema da doação de terras de Duarte da Costa, integrar-se à paisagem vizinha, com os lavradores e a cultura de subsistência. A tendência seria a de concentrar, no interior do latifúndio, a produção exportável e a produção de consumo: cana e alimentos. Num mundo sem moeda, a unidade monetária se refugia na mercadoria dominante, o açúcar. Do exterior devia vir o que a fazenda não pudesse dar: ferro, chumbo e pólvora, além dos artigos de luxo. O engenho real — que se distanciava da engenhoca — exige grandes capitais, com pequena remuneração (3%), com um lucro não superior a 8% sobre o montante dos negócios, segundo dados de Mauro.115 Indústria onerada com investimento alto (66%), com pequena parcela de salário (24,4%). A monocultura, desta sorte, sofre a restrição das poucas disponibilidades econômicas e monetárias da empresa — "paradoxo de uma economia altamente especulativa, mas pouco monetarizada".116
Com a curta produção interna e com a limitada parcela dedicada à importação (do reino ou das outras capitanias), o assalariado e o escravo deveriam sofrer cruéis restrições de alimento. No fim do século XVIII, a Bahia importava do Rio Grande do Sul a carne salgada para sua população escrava117 , num intercâmbio distante e difícil. O vínculo do engenho com o comércio e a carga fiscal que sobre ele recai, alienando-o da economia com raízes na terra, não completa o quadro das dependências econômicas. O engenho avassala as terras, transmutando-lhes a velha substância sesmarial. Os engenhos cultivam terras próprias, diretamente ou mediante arrendamento (parceria), ou se servem da cana das terras dos plantadores independentes, assentado o cultivo sobre a mão-de-obra escrava. Havia, em um e outro caso, dependência ao senhor de engenho, dependência puramente econômica e dependência econômica e jurídica, sem que os plantadores sem terras gozassem de direitos sobre sua lavoura. A terra, de concessão para fomento da agricultura, presa ao destino industrial da safra, numa unidade de capitais avultados, converte-se em bem dominial, parte do investimento do engenho (v. cap. IV, 5). Nesse vínculo pretendeu-se ver o sistema feudal redivivo, a face feudal de uma instituição submersa no mercantilismo europeu. Falta, para caracterizar o modelo, a reciprocidade toscamente contratual de direitos: os dependentes, sobretudo arrendatários, estavam à mercê do senhor de engenho. No começo do século XIX, Tollenare já percebia o ímpeto dos engenhos sobre as terras, transformados os lavradores em meros instrumentos: "como não fazem contratos, logo que tornam um terreno produtivo o senhor de engenho tem o direito de expulsá-los sem indenização".118 A face interna do engenho, longe de ser feudal, tem, não obstante, caráter de exploração proprietária, com rendas auferidas ou apropriadas pela unidade industrial. Essa face, admitido o sistema escravagista e a terra como propriedade plena, terá iguais formas com os criadores de gado e os plantadores de tabaco e algodão, voltados estes, ao contrário dos lavradores de cana, diretamente ao mercado. Penetrava-os, ao contrário do engenho nos momentos de prosperidade, maior diversidade de produção, diversidade condicionada pelo valor oscilante de suas culturas, sem a absorvente procura que feriu o açúcar em certa época.
No ermo — a pouca distância do litoral — e no sul, bem como nas fases depressivas do açúcar, o fazendeiro prepondera sobre o industrial da cana. O ouro e os diamantes não passam de fugaz interregno, atividades mais de concessionários régios do que de empresários independentes. O açúcar — sempre o açúcar — e o gado fornecem os meios de vida a essa classe de proprietários, sem as glórias antigas. A unidade agrícola fecha-se sobre si própria, autarquicamente, dirigida pelos pobretões orgulhosos que serviram ao desdém de Saint-Hilaire e Schwege. De fora só vinham o sal, o ferro, o chumbo e a pólvora, com um ou outro adorno de luxo. Somente o café no oeste paulista, já adiantado o século XIX, infundiu outra índole ao latifúndio, voltado sobre os salários e a moeda, num momento em que "o domínio agrícola deixa de ser uma baronia e transforma-se quase em um centro de exploração industrial".119 O mercado capaz de pagar valores altos leva à conseqüência de sempre: decadência das indústrias caseiras e dos gêneros de subsistência. O preço do café pagará tudo e induzirá à monocultura, com a mesma carestia denunciada nos Diálogos das grandezas do Brasil, dois séculos antes.
A estrutura de classes recebe sua expressão desse mundo econômico. A economia mercantil, movida da Europa, traça o contorno das praias e dos sertões americanos. A exportação, infundindo o valor a todas as coisas, determina o posto do senhor de engenho e do proprietário na pirâmide social. Essa circunstância, que encobre todas as outras, se adensa graças a outra realidade. O escravo — que exige crédito —, base de toda a produção, concentra nos seus traficantes, na rede de seus traficantes, a outra mola da expansão econômica. Nesse sentido, e não no sentido retórico e original, a palavra de Joaquim Nabuco expressa uma verdade: o escravo confundiu as classes, impedindo a estratificação.120 O opulento senhor de escravos se converterá, senão ele, seu filho, senão este, seu neto, no pobre orgulhoso: as terras passarão ao fornecedor de escravos a crédito, ao exportador, ao comissário, que lhe adiantam os meios para sustentar o "luxo sem cabedais": "poucos são os netos de agricultores que se conservam à frente das propriedades que seus pais herdaram; o adágio 'pai rico, filho nobre, neto pobre' expressa a longa experiência popular dos hábitos da escravidão".121
Entre os dois setores das classes positivamente privilegiadas — a classe lucrativa e a classe proprietária —, havia um largo espaço, mais ou menos dependente, segundo o momento econômico, não redutível a colônia a um tipo único e imóvel de sociedade. O Regimento de Tomé de Sousa (1548) mandou distribuir as terras, dentro do sistema sesmarial das Ordenações, para quem as quisesse "povoar e aproveitar", obrigados os senhores de engenho a moer as canas dos plantadores.122 O plano de colonização previa, com a concessão franca da terra, concessão vinculada a prazo e à condição do aproveitamento, a propriedade ampla dos meios de produção. O lavrador independente se situaria ao lado do senhor de engenho, reservadas a este, desde logo, incumbências públicas de defesa. O regime do escravo, que reclama, desde logo, um investimento caro, impede o imigrante pobre de gozar da prometida autonomia, assegurada com as obrigações impostas ao engenho de moer as canas. A dependência do lavrador ganha, desde logo, nítido contorno, suavizada apenas quando dispõe de capitais para adquirir escravos, escravos índios ou africanos. No fim do primeiro século, Brandônio já mostrava a diferenciação social, dentro da lavoura, sempre fundada no escravo — quer no plantio da cana, quer na cultura de subsistência. Havia os senhores de engenho, que são ricos, os lavradores que têm partidas de cana e outros, cujas forças não abrangem a tanto e se ocupam em lavrar "mantimentos legumes".123 Mais alguns anos correm e a agricultura, cada vez mais enredada no açúcar, distribui a riqueza, num plano mais discordante dos propósitos que inspiraram o documento de 1548. Antonil distingue, entre os lavradores donos das terras, os lavradores de cana cativa e os lavradores independentes, que poderiam levar sua produção ao engenho que escolhessem. Mas outra categoria toma vulto: a dos lavradores sem terras, que arrendam a terra dos engenhos, com contratos de largos prazos que, com o tempo, se reduzem ao arbítrio do proprietário. O viajante do começo do século XVIII não deixou de assinalar a analogia entre os lavradores que se empregam nas terras do engenho e os donos das terras cultivadas, sem deixar de advertir aos senhores contra o pecado da "má vizinhança" feita aos plantadores que moem em outros engenhos.124 Um século mais tarde, na paisagem do açúcar sem prosperidade, perde o relevo o lavrador independente, e os arrendatários, com seus contratos a tempo largo ao tempo de Antonil, tornam-se precários e instáveis prepostos dos proprietários.
O engenho guarda a maior parcela de terra para o cultivo próprio e a menor porção é confiada ao lavrador dependente. "Os ajustes com que arrendam estas fazendas" — escreve Vilhena — "são, de que o lavrador será obrigado a plantá-las de cana, que não poderá moer mais do que no engenho do proprietário, que pelas moer lhe pertence a metade do açúcar, que produzirão, além do que lhe há de dar mais daquela metade com que ficou um pão de açúcar por cada quinze; e isto pela renda da terra, e a estas chamam obrigadas; ficando o senhor de engenho com a regalia de despedir o lavrador logo que queira para si aquelas terras, ou as queira dar a outro, pagando-lhe porém as benfeitorias, sempre em prejuízo do lavrador; e se este é o que quer despedir-se, o ordinário é perder as benfeitorias, ou receber por elas muito pouco."125 O senhor de engenho, ao devorar terras e submeter homens, entrega-se à tirânica exploração de seus parceiros, utilizando seu poder para avassalar os relutantes. Um viajante francês, ao percorrer o litoral pernambucano, viu, além dos escravos, dos quais não queria falar porque "não passam de gado", os lavradores entregues aos donos da terra e dos engenhos sem nada que os proteja, a lei ou a força armada. A paisagem se cobria de senhores de engenho, lavradores ("espécie de rendeiros") e moradores, categoria, a última, fruto do declínio da empresa açucareira. A ostentação do senhor se opõe a vida incerta do lavrador, que pode ser expulso, a qualquer tempo, sem indenização, composto seu capital de escravos e gado, abrigada a família em "miserável cabana". Os moradores — "em geral mestiços de mulatos, negros livres e índios" — são paupérrimos — eles formam a plebe dos campos, com sua cultura de mandioca para o magro sustento, retraídos ao trabalho assalariado que os degradaria à condição de escravos. Isolados nos ranchos, não conhecem a vida comunitária que aos seus avós integrava, numa constelação de valores perdida. Deles sairá o cliente do crime e o germe de jagunço. "Os senhores de engenho procuram as suas mulheres para seu gozo; dizem-nas muito galantes, mas destas seduções resultam vinganças e punhaladas. Os senhores de engenho que usam do direito de despedir os seus moradores, porque lhe pagam pouco e mal, e freqüentemente os roubam, tremem ao tomar esta perigosa medida em um país sem polícia."126
Nem só de cana vive o homem colonial. A agricultura do tabaco, algodão, anil, mandioca, enfeita a terra, sem deslocar o centro de gravidade econômica do açúcar. O gado não alimenta de prestígio aristocrático os proprietários que criam o rude e plebeu latifúndio dos sertões e planuras. Até o século XIX obtêm-se sesmarias em troca de serviços militares, no Rio Grande do Sul, réplica moderna do ciclo do couro nordestino, do "outro nordeste".127 A pobreza do pastoreio impediu o afluxo de escravos, com o trabalho dos peões pago numa sociedade informal com o patrão. A valorização periódica do gado terá, contudo, os mesmos efeitos de expansão imperialista da cana, expansão horizontal e de disciplina vertical sobre os dependentes.
A cana se opõe à ascensão econômica, ascensão mais fluida na zona do gado e das culturas de subsistência. O mundo rural fecha-se à mobilidade interna e vertical, assentado sobre o escravo, que custava crédito e recursos largos. O ingresso de proprietários — proprietários de escravos e terras — ocorre, em regra, de fora, sob a pressão do mercador enriquecido ou que substitui a insolvência pela posse do capital agrícola. Resta, não obstante, uma extensa gama de homens livres, além dos lavradores dependentes e da ociosa plebe rural. O engenho possui algumas ilhas de assalariados, na ordem de vinte e quatro por cento de suas despesas128, com o feitor-mor, o mestre do açúcar, o feitor menor, o purgador, o caixeiro, etc.
Com a dificuldade de acesso à terra e à propriedade do engenho, esses grupos ocupacionais fornecem a clientela dos oficiais das cidades, do comércio, todos inconformados, diante do escravo — padrão de subordinação social —, ao trabalho manual. A tendência dessa incipiente classe média será a de proletarizar-se, com o escravo e seus descendentes aprendendo os ofícios, ou a fugir do confinado ambiente agrário. O mundo colonial, não obstante o enrijecimento das camadas superiores, que o escravo — escravo mão-de-obra e escravo objeto de comércio e crédito — consolidará, mantém o potencial da fortuna fácil, da aventura possível, do enriquecimento rápido. O ouro deu consistência a esse sonho, vinculado ao mito edênico, com decepções amargas, duras desilusões e angustiadas expectativas não correspondidas. O reinol pobre, vítima e agente de esperanças teimosamente guardadas, será o imigrante tenaz do novo mundo, novo e inédito, aparentemente aberto às cobiças e ambições. No outro extremo, "mulatos ricos querem ser fidalgos, muito fofos e soberbos, e pouco amigos dos brancos e negros"129, sugerindo as duas vias de categorização social: a ascensão na classe, pela riqueza, e a ascensão no estamento (administração pública, milícias), pelo prestígio.
Os brancos europeus, pobres emigrados em busca da fortuna, passada a embriaguez das sesmarias, querem entrar no comércio. Estranha o marquês de Lavradio que os filhos do Minho, excelentes agricultores na sua terra, logo que aqui chegam não cuidam em nenhuma outra coisa que em se fazerem senhores do comércio que aqui há, não admitirem filho nenhum da terra a caixeiros, por onde possam algum dia serem negociantes".130 Uma vez enriquecidos se ensoberbecem, desprezando os naturais, que, em compensação, buscam nomes ilustres e nobres na sua ascendência longínqua ou fantasiosa, na "confusão entre nobres e abjetos plebeus".131 Os brancos pobres naturais do país percorrem outro caminho, caminho que passa às margens da fidalguia burocratizada c se desvia dos misteres dos negros: procuram ser soldados, escrivães ou escreventes, oficiais de tribunais de juízos, não poucos freqüentam as aulas regias.132 Para erguer sua fidalguia de empréstimo ostentam as falsas grandezas no atrevimento do trato com os inferiores: alferes ou coronel "julga-se o non plus ultra da nobreza", empregado do foro supõe-se o senhor da justiça.133
Nem o branco português, nem o branco natural do país podem apanhar a enxada ou tocar no arado. O trabalho braçal degrada e o equipara ao escravo — a esta infâmia é preferível a ociosidade, o parasitismo, o expediente da busca de proteção dos poderosos. O funcionalismo, já enorme em número, absorve essa leva de desprotegidos, com cargos civis e militares — "inúmeros inspetores sem objeto a inspecionar, um sem-fim de coronéis sem regimentos para comandar, juizes para dirigir cada ramo da administração, por menor que seja, serviços que podem ser feitos por duas ou três pessoas. Os vencimentos aumentaram, o povo está oprimido e o Estado não colhe benefício algum".134 A velha ordem administrativa portuguesa serve, na colônia, ao aproveitamento do branco pobre, do mulato rico, poupando um problema social, com a plebeização do branco alfabetizado, quase o letrado do tempo. Sobras do mercantilismo, com o recolhimento dos náufragos da visão de Brandônio, que apontava a riqueza no açúcar, na mercancia, no pau-brasil, no algodão, na lavoura de subsistência e no gado, floração rural onde "o principal nervo e substância da terra é a lavoura dos açúcares".135
Na base da pirâmide, o escravo negro, sem nenhuma oportunidade de elevação social. O negro, para se qualificar, não lhe bastaria a liberdade, senão a posse de outro escravo. Bem sentiu essa realidade, a um tempo sombria e cômica, Machado de Assis, ao notar — Memórias póstumas de Brás Cubas, cap. LXVIII — que o moleque Prudêncio, negro alforriado, em pleno Valongo, batia furiosamente num escravo seu: nas pancadas nascia o status de senhor. Atrás do quadro da escravidão não se esconde apenas a tirania, a dureza de costumes e o aviltamento do homem. "Os senhores poucos' — bradará Vieira — "os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos atadas atrás como imagens vilíssimas da servidão e espetáculos da extrema miséria."136 Há, no fundo da cena, o painel que desvenda a transmigração e a mercancia, a transmigração e a "mercancia diabólica". Na empresa convergem os dois pilares da economia portuguesa — o comércio e a agricultura —, com a sanção, o proveito e os interesses da camada politicamente dominante. Nos dois e meio ou quatro milhões137 de escravos que entraram no Brasil durante a colônia haverá um negócio global em torno de cem milhões de libras, mais a importância do tráfico interno, o que levará a um aumento de cinqüenta a cem por cento. O volume dos valores empregados será, desta sorte, equivalente aos do ouro, o segundo maior valor da colônia, abaixo do açúcar.137 Vinte por cento das importações empregam-se no escravo, num comercio sem paralelo pela sua lucratividade.138 Esta desdenhada circunstância explica muitos enigmas da história brasileira: a dependência à burguesia portuguesa, por sua vez enfeudada à européia, a centralização política decorrente de um homogêneo núcleo de interesses, a submissão do agricultor ao vendedor e financiador de escravos, a pouca mobilidade da empresa colonial, arraigada, ate à morte, aos seus investimentos de escassa lucratividade, agrilhoada às dívidas sempre renovadas e crescentes. Do centro da 'mercancia diabólica" se irradia, depois de conjugados o Estado e os negociantes, uma ordem social, que entra em todos os poros da colônia e infunde vento às metropolitanas combinações econômicas. O açúcar e o ouro explicam muito da vida colonial, mas nada explicam sem o escravo, considerada mercadoria mais valiosa. Num momento em que a renda interna se funda, na maior parte, na exportação, é esta manipulada, no exterior e nas ramificações internas, por outro c mais fundamental elemento vinculador aos centros europeus.
O tráfico de escravos tem uma longa história, ligada à expansão portuguesa nos oceanos. Escravos e ouro são os imediatos objetivos da empresa henriquina.139 A pombalina Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-78) se propunha, razão principal da sua existência, introduzir mão-de-obra africana no norte do Brasil.140 Um salto de três séculos mostra a Coroa interessada no tráfico, com a autorização e o estímulo e pelo monopólio de uma agência filha de suas entranhas, afora, no interregno, a participação pelos altos tributos — maior participação que tributo — no comércio dependente do controle oficial. Diferentes são os grupos que comandam o negócio: "no período henriquino, temos o infante em primeiro plano, evidentemente, beneficiário do quinto das presas, os armadores e mercadores algarvios e lisboetas, cavaleiros e escudeiros que vão nos saltos do Estreito e nas Canárias e nas viagens ao litoral saariano e guineense. Estrangeiros participam, já sabemos de um genovês que antes de 1452 trouxe negros, e Antoniotto Usodimare, em 1455, trata com escravos no rio Gâmbia [...]
Por meados do século XVI existiram em Lisboa, a acreditarmos em João Brandão, uns 60 a 70 mercadores de escravos. No lançamento de 1565 aparecem unicamente três, dos quais dois na Madalena: Damião Fernandes, avaliado em 200.000 réis, e Luis Mendes, em 150.000; o terceiro, de São Nicolau, é Pallos Dias, avaliado em 200.000 réis também. Mas nestes registros não figuram os maiores, porque se avençaram à parte. Insistamos em que o trato não está apenas nas mãos dos mercadores, mas também dos grandes personagens do Estado e sua hierarquia média. Eis, por exemplo, em 1560, a pedir ao rei de Espanha 300 licenças para o envio de escravos ao Peru, o desembargador do Paço Francisco Dias do Amaral, do conselho régio. Por outro lado, destaquemos mais uma vez os conflitos de interesses entre meios de negócios internacionais, metropolitanos e coloniais. [...] Com o ocaso do século XVI e com o século XVII a teia dos contratos torna-se mais cerrada e está nas mãos de um círculo de grandes capitalistas. Lá vemos o célebre João Batista Rovelasco, que até 1589 tem o contrato dos escravos de São Tomé (e de começo teve também o de Angola, até ser desanexado), por 4 contos e 400 mil réis, mais 12 escravos por ano".141 No comando dos cordéis, os capitalistas, portugueses e europeus, aliados ou por conta de secretários de Estado, desembargadores, capitães e até membros da Igreja, com as sobras pingando na bolsa murcha das categorias médias da burocracia. Do capitalismo comercial, do capitalismo politicamente orientado ergue-se o tipo social do "cavaleiro-mercador , o "mercador-cavaleiro", o "fidalgo negociante e o negociante enobrecido", ora em conflito, ora em entendimento com a velha nobreza da terra, velha nobreza pelas origens e nova pela aquisição de latifúndios. Oposição entre a classe lucrativa e a proprietária, disputando a primeira a sociedade e o patrocínio do estamento e a segunda as roupagens cansadas da aristocracia fundiária, próxima desta o clero, como demonstra o episódio da Inquisição. No curso de três séculos, mudaram os sistemas de fornecimento do escravo, sob a constância do controle oficial. O resgate, eufemismo da aquisição do negro, a arrecadação dos rendimentos passaram da administração direta, da concessão de licenças para a compra de determinado número de escravos até o arrendamento de áreas. Depois, como mencionado, as companhias entram em cena, firmadas no comércio exclusivo.
Na dinâmica colonial flutuam as camadas que o autor dos Diálogos das grandezas do Brasil, as Ordenações e o padre Antônio Vieira situaram na sociedade, em estado de repouso. Os três estados, na imagem do pregador que os reúne no sal, com os elementos fogo, ar e água, têm linhas ironicamente pouco vivas, distinguidas pela cor das contribuições fiscais — o que engaja as categorias na ordem do Estado. O clero representa o fogo, "elemento mais levantado que todos", goza de imunidade tributária; o ar cabe à nobreza, "não por ser a esfera da vaidade", com privilégios finamente criticados de injustos; ao povo sobra o símile de água, não por ser "elemento inquieto c revolto, que à variedade de qualquer tempo se muda", sobre o qual "caem de ordinário os tributos, não sei se por lei, se por infelicidade". Os fidalgos vivem das comendas e rendas da Coroa — suas águas saíram do mar e ao mar devem tornar.142 E a terra, o quarto elemento, esquecida pelo pregador, não será o escravo, indigno de menção? A nobreza, já nesta altura, se alimenta dos favores e das vantagens que fluem das mãos do rei, o qual por sua vez colhe tudo do povo. O soberano e o terceiro estado são as realidades únicas — as outras ornamentam, enfeitam sem produzir. A colônia se complica, ainda, das separações das cores, composta de brancos, pretos e pardos. Os pardos poderiam agregar-se aos pretos, "pela parte materna, segundo o texto geral", mas eles se acercam dos brancos, "porque entre duas partes iguais, o nome e preferência deve ser da mais nobre".143 O senhor e o escravo, entretanto, em tudo se separam: no nome, na cor e na fortuna: "o nome de escravos, a cor preta e na fortuna de cativos, mais negra que a mesma cor".144 Só no outro mundo, as diferenças calarão, mudado o sofrimento do escravo em merecimento de martírio: "todo esse inferno se converterá em paraíso, o ruído em harmonia celestial, e os homens, posto que pretos, em anjos".145 As cinco "condições de gente" dos Diálogos das grandezas se reduzem a quatro: a primeira, com a gente marítima (armador) e a comerciante; a segunda, dos oficiais mecânicos; os que servem por soldada, na terceira; e os que tratam de lavoura (senhor de engenho e agricultores) na quarta.146 Condições que são as mesmas das Ordenações Filipinas (L. V, cap. LXIII) e Manuelinas (V, tít. 72): os que vivem com senhor ou com amo; os que trabalham em mester — os oficiais mecânicos; os que negociam, por sua conta ou conta alheia — acrescentados os lavradores, sobrarão ainda as quatro categorias de Brandônio. Uma apreciação conjetural atribui, no reino, a percentagem de 26,9% da população aos lavradores e camponeses, contra 24,9% de fidalgos e mercadores e 27,7% de artífices e trabalhadores manuais, ocupando o clero a importante cifra de 11,9%.147 Este quadro demonstra a fraqueza da população agrícola, um terço da população, com quase dois terços dedicados aos tratos urbanos, detentores da maior parte das rendas da colônia. Bem verdade que, no Brasil, contados os escravos, a maioria dos habitantes estão na lavoura e nos engenhos. O fato de, na metrópole, senhora de mais de metade do produto da atividade econômica brasileira, ser outra a constelação social, indica que a nota tônica se situa nos cortesãos comerciantes, negociantes de fretes e de reexportação, constelação que imanta a vida da colônia, deslocada a perspectiva ao ultramar. O destino agrícola do Brasil não é, desta sorte, senão a inversão do ponto de vista que ilumina, fixa e comanda a paisagem.
Notas
1. Couto, Diogo do. O soldado prático, cit., p. 27.
2. Vieira, Padre Antônio. Sermões pregados no Brasil. Lisboa, Agência Geral das Colônias, 1940, v. 2, p. 275.
3. Critilo. Cartas chilenas. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1940, p. 201 (carta 5.°).
4. Godinho, Vitorino Magalhães. Ensaios, cit., p. 59.
5. Vieira, Padre Antônio. Op. cit., v. 2, p. 209, 210, 212 e 213.
6. Boxer, C. R. The Portuguese Seaborne Empire, cit., p. 318 e 319.
7. Aragão, J. Guilherme de. "O cargo público na sociedade colonial". A Manhã, 9 abr. 1950.
8. Vianna, Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 2. ed. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1933, p. 211.
9. Vilhena, Luis dos Santos. A Bahia no século XV1I1. Bahia, Itapuã, 1969, v.3, p. 617 e 618.
10.Critilo. Op. cit., p. 210 e 250.
11. Saraiva, António José. Inquisição e cristãos-novos. Porto, Ed. Inova, 1969, passim.
12. Arte de furtar, cit., p. 1 52 e 153.
13. Id., p. 148 c 149.
14. O assunto está teoricamente esboçado em Weber, Max. Wirtschaft und Gesellschaft, cit., p. 201 e segs. 15. Pensa de modo contrário Azevedo, J. Lúcio de. História dos cristãos novos portugueses. Lisboa, Clássica, 1921, p. 64. Com melhores argumentos, a tese do texto é
defendida por Saraiva, António José. Op. cit., passim.
16. Caetano, Marcelo. O Conselho Ultramarino. Rio de Janeiro, Sá Cavalcanti, 1969, p. 14.
17. As indicações do texto, em drástico resumo, foram colhidas no livro citado na nota 16.
18. Caetano, Marcelo. Op. cit., p. 45.
19. V. o texto em Guedes, João Alfredo Libânio. História administrativa do Brasil. DASP, 1962, v. 4, p. 173 e segs.
20. Fleiuss, Max, História administrativa do Brasil. 2. ed. São Paulo, Melhoramentos, [s.d.], p. 52.
21. Leal, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. Rio de Janeiro, Rev. Forense, 1948, p. 74.
22. Laxe, João Batista Cortines. Câmaras municipais. 4. ed. São Paulo. Ed. Obelisco, p. 31, n.°3.
23. Ord. Filip. L. I, tít. I.
24. Boxer, C. B. The Portuguese Seaborne Empire, cit., p. 280 e 281.
25. Lisboa, João Francisco. Obras. Lisboa, Tip. Matos, Moreira e Pinheiro, 1901, tomo II. p. 46.
26. Armitage, João. História do Brasil. Rio de Janeiro, Zélio Valverde, 1943, p.342.
27. Vilhena, Luis dos Santos. A Bahia no século XVIII. Bahia, Itapuã, 1969, v. I,p. 79 e 80.
28. Esta é também a opinião de Abreu, J. Capistrano de. Capítulos de história colonial, cit., p. 227, Em outro lugar: "Cada vez me convenço mais que João Francisco Lisboa falseou a história, dando-lhes uma importância que nunca possuíram as municipalidades. Só quando havia alvoroto, apareciam ligeiramente, em feição semelhante às que os castelhanos chamavam cabildo abierto; fora disto, nomear almotacéis, aferir medidas, mandar consertar pontes, estradas e calçadas consumia-lhes todo o tempo". (Correspondência de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1954, v. 2, p. 28.) Em igual sentido: Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 3. ed. São Paulo, Brasiliense, 1948, p. 316 e segs. Oliveira Vianna. Instituições políticas brasileiras. Rio de Janeiro, José Olympio, 1 949, v. 1, p. 165.
29. Vieira, Padre Antônio. Sermões pregados no Brasil. Lisboa, Agência Geral das Colônias. 1940, v. 3, p. 207 e 208.
30. Moreno, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil — 1612. Recife, Arquivo Público Estadual, 1955, p. 1 1 5.
31. Machado, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1929, p. 105 e segs.
32. O cálculo é de Varnhagen, encampado por Garcia, Rodolfo. Op. cit., p. 198.
33. Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil contemporâneo, cit., p. 318.
34. Azevedo, J. Lúcio de. Épocas de Portugal econômico, cit., p. 256.
35. Salvador, Frei Vicente do. Op. cit., p. 160. V. Mirales, D. José de. História militar do Brazil, [s.d.], p. 11.
36. Mirales, D. José de. Op. cit.. p. 14.
37. ld.,p. 14.
38. Barros, João de. Décadas, cit., v. 2, p. 81 e v. 3, p. 209 e segs.
39. Mirales, D. José de. Op. cit., p. 3 1 e 32.
40. Boxer, C. R. A idade do ouro, cit., p. 304.
41. Moreno, Diogo de Campos. Op. cit., p. 128, 143, 176 e 182.
42. Id., passim.
43. Fernando José de Portugal, Vice-Rei D. "Regimento de 1677" e "Observações". In: História administrativa do Brasil, cit., v. 4 e 5, respec. p. 1 73 e 337.
44. Cunha, Rui Vieira da. Estudo da nobreza brasileira. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1966, p. 15 e 42.
45. Lapa, M. Rodrigues. As "Cartas chilenas". Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1958.
46. ld.,p. 178.
47. lbid., p. 304 e 305.
48. lbid., p. 362 e segs.
49. Koster, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. São Paulo, Ed. Nacional, I 942, p. 259 e 260.
50. Ferreira Filho, Arthur. História geral do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Globo, 1958, p. 54.
51. Vasconcelos, Cap. Genserico de. História militar do Brasil. Rio de Janeiro, Biblioteca Militar, 1941, p. 41.
52. Armitage, João. Op. cit., p. 327.
53. Vílhena, Luis dos Santos. Op. cit., 1, p. 244 e segs.
54. Koster, Henry. Viagem ao nordeste do Brasil. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1942, p. 480.
55. Critilo. Cartas chilenas, cit., I, p. 250.
56. ld., p. 243.
57. Vilhena, Luis dos Santos. Op. cit., I, p. 259. Lavradio, op. cit., p. 231.
58. Critilo. Op. cit., p. 249.
59. Vilhena, Luis dos Santos. Op. cit., I, p. 244 e 245.
60. Assis, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro, Aguilar, I 959, II, p. 353: "Verba testamentária".
61. Luccock, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e portos meridionais do Brasil. 2. ed. São Paulo, Martins, [s.d.], p. 55 e 119.
62. Arte de furtar, cit., p. 28 e 29.
63. Vilhena, Luis dos Santos. Op. cit., I, p. 247 e 248.
64. Koster, Henry. Viagem ao nordeste do Brasil. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1942, p. 388 e 389. Tollenare, L. F. de. Notas dominicais. Salvador, Progresso, 1956, p. 120.
65. Gonçalves, Roberto Mendes. Um diplomata austríaco na corte de São Cristóvão. Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1970, p. 85.
66. Lacombe, Américo Jacobina. "A Igreja no Brasil colonial". In: História geral da civilização brasileira — direção de Sérgio Buarque de Holanda. 2. ed. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1968, v. 2, p. 51. Este importante trabalho servirá, em muitos pontos, de roteiro ao que adiante se escreve acerca do assunto.
67. Id., p. 57.
68. Azevedo, J. Lúcio de. Épocas de Portugal económico, cit., p. 256 e 257. Moreno, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil — 1612, cit., p. 128, 136, 148 e 149, etc. Leite, Serafim, S.J. História da Companhia de Jesus no Brasil, cit., 5, p. 107 e segs.
69. Parry, J. H. The Spanish Seaborne Empire. 2. ed. Hutchinson of London, 1967, p. 326.
70. Freyre, Gilberto. Casa-grande e senzala, cit., v. 2, p. 708.
71.Azevedo, J. Lúcio de. Épocas de Portugal económico, cit., p. 257.
72. Cortesão, Jaime. Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil, cit., 1, p. 1 78.
73. Leite, Serafim, S.J. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa, Portugália, 1938, tomo II, p. 113.
74. —. Novas cartas jesuíticas. São Paulo. Cia. Ed. Nacional, 1940, p. 76, 77, 78 e 79.
75. Azevedo, J. Lúcio de. Épocas de Portugal económico, cit., p. 257. Id., História de Antônio Vieira. 2. ed. Lisboa, Clássica, 1931, tomo I, p. 214.
76. Leite, Serafim, S.J. Novas cartas jesuíticas, cit., p. 60 e 76.
77. Taunay, Afonso de E. História das bandeiras paulistas. 2. ed. São Paulo, Melhoramentos, [s.d.], tomo I, p. 123 e segs.
78. Azevedo, J. Lúcio de. História de Antônio Vieira, cit., tomo I, p. 220.
79. Vieira, Padre Antônio. Op. cit., v. 3, p. 30, 31 e 38.
80. Id., p. 147.
81. Azevedo, Fernando de. A cultura brasileira. 3. ed. São Paulo, Melhoramentos, 1958, tomo III, p. 24.
82. Vieira, Padre Antônio. Cartas. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925, tomo 1, p. 458.
83. Weber, Max. Wirtschaft und Cesellschaft, cit., v. 1, p. 223 e segs.; v. 2, p.679 e segs.
84.Lukács, Georg. Geschichte und Klassenbewusstsein. Neuwied und Berlin, Sammlung Luchterhand, 1970, p. 132 e segs. Esta tese, tida algum tempo pelos marxistas como herética, parece que se coaduna com o pensamento de Marx, que, no Manifesto Comunista, acentuou que na época da burguesia as oposições de classe se simplificaram, sem que faltem referências aos estamentos (Stände), expressão esta traduzida, sem maior exame, por classe: v. MEW, cit., v. 4. p. 463 e segs. Lukács alude, expressamente, ao sistema do capital comercial, calcado em Marx, que não domina o processo de produção. Para o esquema deste livro, a discussão marxista tem valor secundário, dados
os pressupostos de outra índole e origem que o fundamentam.
85.A classificação, com pequenas alterações, se deve a Weber, Max. Op. cit., p.223 e segs. V também: Pareto, Vilfredo. Traité de sociologie générale. Paris, Payot, 1919, v. 2, p. 1430 e segs.
86.Prado Júnior, Caio. Evolução política do Brasil. 6. ed. São Paulo, Brasiliense, 1969, p, 28. Freyre Gilberto. Casa-grande e senzala, cit., v. 1, p. 24 e passim. Azevedo, Fernando de. A cultura brasileira, cit., tomo I, p. 152 e segs. Vianna, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Rio de Janeiro, José
Olympio, 1949. v. 1, p. 146. Id., Populações meridionais do Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1952, p. 95: família senhorial — agregados e escravos. A indicação é meramente exemplificam a.
87. Cardim, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro, Cia. Ed. Nacional, 1939, p. 290 e 296.
88. Andreoni, João Antônio (Antonil). Cultura e opulência do Brasil. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1967, p. 139.
89. Diálogos das grandezas do Brasil. Salvador, Progresso, 1956, p. 17.
90. Barros, João de. Décadas, cit., v. I, p. 173 e 174. V. também: Cortesão, Jaime. A expedição de Pedro Alvares Cabral e o descobrimento do Brasil, cit., p. 103 e segs. Diffie, Bailey W. "Os privilégios legais dos estrangeiros em Portugal e no Brasil no século XVI". In: Conflito e continuidade na sociedade brasileira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970, p. 3 e segs.
91. Gandavo, Pero de Magalhães. Op. cit., p. 81.
92. Cardim, Padre Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. 2. ed. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1939, p. 283.
93. Diálogos das grandezas do Brasil, cit., p. 315, I 66 e 168.
94. Andreoni, João Antônio (Antonil). Op. cit., p. 139, 141.
95. Id., p. 169.
96. Mauro, Fréderic. Le Portugal et l'Atlantique au XVII.e siècle. Paris, S.E.V.P.E.N., 1960, p. 218. Stein, Stanley, J. Grandeza e decadência do café. São Paulo, Brasiliense, 1961, p. 295.
97. Godinho, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial. Lisboa, Arcádia, [s.d.], p. 575.
98. Esta concepção do papel central do comerciante na economia da colônia toma corpo com os estudos de Virgínia Rau, Vitorino Magalhães Godinho, Bayley W. Diffie, nas obras citadas, concepção já lançada na l.ª edição deste livro.
99. Diálogos das grandezas do Brasil, cit., p. 28 e 61.
100.Id., p. 169.
101.Cartas do Padre Antônio Vieira, coordenadas e anotadas por J. Lúcio de Azevedo, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1928, p. 693.
102.Vilhena, Luis dos Santos. Op. cit., v. 1, p. 52.
103.Sousa, José Antônio Soares de. "Aspectos do comércio do Brasil e de Portugal no fim do século XVIII e começo do século XIX". In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico, v. 289, p. 3 e segs. Muitos dados, a seguir citados, pertencem a esse trabalho de real mérito.
104.Vilhena, Luís dos Santos. Op. cit., v. 1, p. 56.
105.Id., p. 56.
106.Lavradio, Marques de. Op. cit., p. 345.
107.Nabuco, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo, Progresso, 1949, p. 229.
108.Abreu, Florêncio de. Ensaios e estudos históricos. Rio de Janeiro, Pongetti,1964, p. 134.
109.Freyre, Gilberto. Casa-grande e senzala, cit., p. 19, 21 e passim.
110.Id., ibid., esclarece bem o assunto às p. 188 e segs.
111.Coelho, Duarte. "Carta ao rei de 14 de abril de 1549". In: História da colonização portuguesa no Brasil, cit., v. 3, p. 320.
112.Diálogos das grandezas do Brasil, cit., p. 39, 61 e 150.
113.Vilhena, Luis dos Santos. Op. cit., v. I. p. 185.
114.Id., p. 186.
115.Mauro, Frédéric. Op. cit., p. 217.
116.Id., p. 219.
117.Vilhena, Luis dos Santos. Op. cit., II, p. 61.
118.Tollenare, L. F. Notas dominicais. Salvador, Progresso, 1956, p. 93.
119.Holanda, Sérgio Buarque de. In: Davatz, Thomas. Memórias de um colono no Brasil. São Paulo, Martins, 1941, p. 14.
120.Nabuco, Joaquim. O abolicionismo, cit., p. 151.
121.Id., p. 140.
122.In: História da colonização portuguesa no Brasil, cit., v. 3, p. 346.
123.Diálogos das grandezas do Brasil, cit., p. 39.
124.Antonil. Op. cit., p. 139 e 146.
125.Vilhena, Luis dos Santos. Op. cit., l, p. 181.
126.Tollenare, L. F. Op. cit., p. 85-96. V. Diegues Júnior, Manuel. População e açúcar no nordeste do Brasil. Rio de Janeiro. Comissão Nacional de Alimentação, 1954, p. 117 e segs.
127.Menezes. Djacir. O outro nordeste. 2. ed. Rio de Janeiro, Artenova, 1970, p. 33 e segs.
128.Mauro, Frédéric. Op. cit., p. 217. O número é meramente exemplificativo. V. Buescu, Mircea. História econômica do Brasil. Rio de Janeiro, APEC, 1970, p. 107.
129.Vilhena, Luis dos Santos. Op. cit., I. p. 53.
130.Op. cit., p. 343 e 344.
131.Vilhena, Luis dos Santos. Op. cit., l, p. 51.
132.Id., p. 138.
133.Ibid., p. 52 e 53.
134.Koster, Henry. Op. cit., p. 64.
135.Dialogas das grandezas do Brasil, cit., p. 149 e 150.
136.Vieira, Padre Antônio. Sermões pregados no Brasil, cit., v. 3, p. 48.
137.Os números são discutíveis: Simonsen, Roberto. História econômica do Brasil. 2. ed. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, I 944, tomo I, p. 203 e segs. Buescu, Mircea. História econômica do Brasil. Rio de Janeiro, APEC, 1970. p.201 e segs. Goulart, Maurício. Escravidão africana no Brasil. São Paulo, Martins, 1949, p. 217.
138. Para as quantidades da exportação colonial: Simonsen, Roberto. Op. cit., tomo I. p. 220.
139. Godinho, Vitorino Magalhães. A economia dos descobrimentos henriquinos. Lisboa, Sá da Costa. 1962. p. 210.
140. Dias. Manuel Nunes. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. Universidade Federal do Pará, 1970, v. 1, p. 459.
141. Godinho, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial, cit., p. 573, 575 e 576.
142. Vieira, Padre Antônio. Op. cit., v. 4. p. 74 e segs.
143. Id., p. 93.
144. Ibid., p. 96.
145. Ibid.. p. 38.
146. Dialogas das grandezas do Brasil, cit., p. 38 e 39.
147. Godinho, Vitorino Magalhães. A estrutura na antiga sociedade portuguesa. Lisboa. Arcádia, [s.d.], p. 85.
De Raymundo Faoro em "Os Donos do Poder - Formação do Patronato Político Brasileiro", Editora Globo, São Paulo, 2001, excertos capitulo VI, pp. 198-267. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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