8.01.2018

O CHALAÇA



O homem culminante do Primeiro Reinado não foi José Bonifácio. Também não foi o Marquês de Barbacena. O homem culminante do Primeiro Reinado foi o Chalaça. Ninguém conseguiu no Império, durante aqueles nove anos desordenados, uma influência tão alta e tão decisiva. D. Pedro teve para com esse grotesco dizedor de piadas, para com esse seu disparatadíssimo amigo, umas ternuras imperdoáveis. O Chalaça fascinou-o. Foi o seu fraco. Foi, talvez, a única afeição certa daquele incerto Bragança. Dai, do favoritismo incrível, resultou que o poderio desse homem não encontrou limites. Num determinado momento - pode-se proclamar afoitamente - o valido mandou à vontade no Brasil. Conseguia tudo. Fazia e desfazia. Diga-se sem receio: o Chalaça, num dado instante, repartiu com D. Pedro o poder supremo. Não há exagero nisso. Armítage, testemunha presencial, historiador severo e reto, diz textualmente:

"O caráter dos políticos de que o Imperador se cercara não assegurava a confiança pública. A frente destes, estava um português de nome "Chalaça". Tinha um caráter bulhento, extravagante, insolente e dissipado. De simples criado do Paço foi promovido a ajudante da Guarda de Honra e Secretário Privado. E tão grande ascendência ganhou sobre D. Pedro, que se pode avançar sem rebuço que PARTILHAVA COM ELE A AUTORIDADE SUPREMA!"

Mas não é só Armitage. Todos os que trataram, nesse tempo, com o curioso personagem, apregoam a inconstrastável influência dele. João Loureiro, que viveu pelas Secretarias de Estado, que conferenciou com todos os Ministros, que passou anos na Corte a deslindar negócios atrapalhados, afirma-o nas suas cartas, alto e firme. Eis uma delas:

"O Imperador disse-me que ele sempre estaria pronto para me ouvir. Mas, se quisesse, eu dissesse a Francisco Gomes QUE ERA O MESMO QUE TRATAR COM ELE".

Eis outra:
"He sabido que, nestes negócios de Portugal, quem se abaixa a Francisco Gomes, quem vai com as suas chalassas, e quem o ellugia, e serve com humilhação, tem sido sempre attendido".

E noutra parte:
"E a todos aqui está fechada a alta política, menos a Francisco Gomes. Mas este não falla senão em petiscos e moças: aqui tem V. Sa. como isto por cá vai".

Melo Morais, por seu turno, di-lo categoricamente. Assim: "Estes dous validos (o Chalaça e o João Pinto), ambos portuguezes, ambos debochados, corrompidos, ignorantes, e de baixo nascimento, eram os mais perniciosos, PORQUE ERAM OS QUE GOZAVAM EM GRÃO MAIS SUBIDO DA CONFIANÇA E ESTIMA DO IMPERADOR".

Quem é afinal, esse homem tão em destaque?

Quem é esse íntimo de D. Pedro? Quem é êsse enigmático personagem, tão enigmático que a História do Brasil, a História com H maiúsculo, nem sequer se digna de lhe mencionar o nome? É fácil dizer.

* * *
O Chalaça nasceu em Portugal. Era filho de Antônio Gomes da Silva, ourives do Paço. Veio para o Brasil com a fuga de D. João VI. Chamava-se, antes de ser o Chalaça, burguesmente, Francisco Gomes da Silva. Tocava violão, cantava lundus, era grande amigo de ceiatas, muito petiscador de mulherinhas. Aqui, no Brasil, para tentar fortuna, experimentara tudo: fora barbeiro, fora ourives, fora seminarista, fora até criado de galão!

Mas o destino, por um desses caprichos de espantar a gente, reservara a esse aventureiro, a esse boêmio, a esse famigerado berrador de modinhas, uma sorte brilhantíssima. D. Pedro, numa das suas noitadas de príncipe estróina, topara certa vez com aquele exótico figurão, muito alto e muito magro, a entoar as suas trovas e lundus no "Botequim da Corneta". Ninguém mais patusco, nem mais folião! E o Príncipe, num daqueles seus repentes, afeiçou-se desmedidamente àquele tipo estranho, tão galhofeiro, sabedor de tão boas piadas e chalaças: e no dia seguinte a esse encontro providencial, o Senhor Francisco Gomes da Silva, fechando a loja de barbeiro, aboletava-se no Paço de São Cristóvão, onde o Príncipe lhe mandara dar ótimo agasalho e ótima tença. Dai em diante, por essa boa-estrela, tornou-se o Chalaça um personagem relevantíssimo, o mais adulado dos fâmulos de D. Pedro. Para fazer-se idéia das mercês com que foi aquinhoado o tipo reles, basta ler o resumo que dele traçou Alberto Rangel. Lá diz o ilustre historiador de "D. Pedro I e da Marquesa de Santos":

"A 19 de novembro de 1822, foi-lhe mandado entregar ouro para fatura da Coroa e do Cetro. Em dezembro de 1823, encontra-se oficial da Secretaria dos Negócios do Império: depois, a 4 de abril de 1825, oficial maior graduado da mesma Secretaria, com exercício no gabinete imperial; e a 16 de abril de 1827, um decreto mandava que ele, a seu pedido, recebesse emolumentos em "todas as Secretarias de Estado", como se fosse Oficial efetivo delas! Intendente Geral das Cavalariças, Secretário do Gabinete Imperial, Conselheiro de Estado, Comandante da Imperial Guarda de Honra, Concessionário da exploração do ouro, oficial da Ordem do Cruzeiro, comendador honorário da Torre e Espada, comendador da Ordem de Cristo e de S. Leopoldo, ministro plenipotenciário, procurador e "fac-totum" de D. Amélia viúva, tudo isso Gomes o foi".

Conseguiu o Chalaça, como se vê, posições e dignidades altíssimas. No entanto - é curioso notá-lo - o valido não teve a ambição das riquezas. Apesar de receber emolumentos por todas as Secretarias de Estado, como se fosse oficial efetivo delas, apesar de ser o único concessionário da exploração do ouro, apesar de ser o mais querido e o mais íntimo dos amigos do soberano, o Chalaça não enriqueceu. O dinheiro, ao que parece, não o fascinou. As honrarias, sim, essas é que o deslumbraram. Ele próprio é quem o confessa numa das suas cartas ao Marquês de Barbacena, então seu nobre e poderoso amigo. Assim:

"Relativamente aos presentes do estilo, Sua Majestade Imperial ordenou que se fizessem; isto, creio, lhe será participado pelo ministro dos negócios estrangeiros; sei bem que não se há de esquecer de mim; porém sempre lhe lembro que eu tenho servido de secretário de Sua Majestade Imperial; de Oficial maior da Secretaria, etc., nada mais lhe digo, pois que, além de ser amigo sabe que eu ambiciono mais as honras que o dinheiro".

Dessa forte ambição por honras, nasceu a causa da sua ruína. A história dessa queda foi curiosa. Ei-la:  Barbacena, o afortunado Caldeira Brant, estava então no auge do poder. Era Primeiro Ministro. D. Pedro tinha por ele uma estima cega. D. Amélia amava-o com ternuras de filha. Um dia, no Ministério, o Chalaça procurou o velho diplomata.

- O Imperador pede a Vossa Excelência que passe hoje à tarde por S. Cristóvão. É para Vossa Excelência resolver um negócio meu...

Barbacena intrigou-se. E com o seu velho faro político, conhecedor do Amo como ninguém, Caldeira Brant suspeitou logo que ali andava dente de coelho. Mas, não se perturbou. À tarde, entrando para a sege, ordenou secamente ao trintanário:
- São Cristóvão!

No Paço, porém, antes de falar ao Imperador, enveredou o Primeiro Ministro pelos aposentos da Imperatriz. Ai conferenciou em sigilo, longamente, com Sua Majestade. Depois, sereno, com a sua bela estampa decorativa, Barbacena penetrou no Salão dos Despachos. D. Pedro recebeu-o de braços abertos, jovialíssimo. E logo, sem preâmbulos, foi entrando em matéria:

- Meu Barbacena! O Chalaça, como Vossa Excelência sabe, tem trabalhado com afinco nos meus negócios particulares. É de uma dedicação rara. Eu preciso, portanto, dar uma prova de amizade ao Chalaça. Preciso, galardoar os seus serviços. Vossa Excelência conhece a paixão que ele tem por dignidades. Vamos, por conseguinte, satisfazer-lhe a vaidade. Vossa Excelência mande lavrar um decreto concedendo ao Chalaça o título de Marquês... Barbacena ergueu-se, chocadíssimo:
- Marquês? O Chalaça?

- Sim, meu Barbacena. E por que não? O Chalaça é o mais devotado de todos os meus criados. E eu quero recompensá-lo. Não discutamos, pois: mande lavrar o decreto!

Caldeira Brant ouviu, estupefato. E ali diante do soberano, enfunou-se o ministro duma audácia louca:
- Perdão, Majestade! Mas é necessário ponderar um pouco. Esse decreto é uma temeridade. É um ato comprometedor...
- Comprometedor?
- Sim, Majestade. Elevar o Chico Gomes a dignidade tão alta, fazer do nosso vulgaríssimo Chalaça um marquês, é graça verdadeiramente escandalosa. Vossa Majestade vai irritar o país com tão acintosa mercê...

- Deixe-se de baboseiras, Marquês! - Ninguém neste país tem opinião. Opinião, aqui, é a opinião do Imperador. Não há outra. Toda gente engole o que eu quiser: Deixe-se de baboseiras! Vamos lá: mande lavrar o decreto.

Barbacena sorriu. E sem azedume, mas reto e digno:
- Vossa Majestade há de me escusar. Mas eu, como Primeiro Ministro, não referendo esse decreto.
D. Pedro fuzilou:
- Não referenda?
- Não!
E impávido, com dignidade, Barbacena lançou ao Monarca esta coisa enorme:
- Não referendo! E digo mais: se Vossa Majestade quiser conservar-me no Ministério, há de fazer a mim esta mercê, que reputo essencial à moralidade e ao prestígio do Trono: despedir o Chalaça! Mandar o Chalaça embora do Brasil!

D. Pedro escutou aquilo, assombrado! Não podia acreditar no que ouvia. E com os olhos arregalados, tonto:

- Mandar o Chalaça embora do Brasil?

Barbacena ia responder. Mas nisto, erguendo o reposteiro, surgiu no salão a figura doce e espiritualizada de D. Amélia. Naquele ambiente sombrio, tão carregado de trovoada, a silhueta moça e luminosa da Imperatriz foi como um raio de sol. D. Pedro, ao vê-la, sorriu.
E galhofeiro:
- Sabe? Aqui o Barbacena está a me pedir uma graça incrível...

E a Imperatriz, toda luz e brejeirice:
- Uma graça? Então, Majestade, é necessário concedê-la já. Não se pode negar coisa alguma ao nosso Barbacena.

- Mas é preciso ver o que pede o Barbacena...

- Que há de ser, meu Deus?

D. Pedro, com um gesto largo:
- Um disparate! Isto: a saída do Chalaça do Brasil!!

D. Amélia tomou uns ares sisudos. Tornou-se, bruscamente, pensativa e grave. Aquela boneca frágil, tão galante e loira, sabia ser imperatriz nos momentos exatos... E ali com uma solenidade súbita, tornou para o Imperador:

- O nosso Marquês tem razão, Majestade! Esse homem precisa sair do Império...

- Que diz Vossa Majestade?

- Digo que o Chalaça precisa sair daqui. Vossa Majestade perdoe... Mas eu digo mais: esse tipo é abominável! Eu o detesto. E detesto-o, porque ele desmoraliza o Paço. Porque prejudica o Império. Porque impopulariza o regime. Porque compromete a Vossa Majestade!

- É um homem nefasto! É um...

E ambos, Imperatriz e Ministro, assediaram o Imperador de argumentos ferozes. Mas qual! D. Pedro não se deixava vencer. Resistia. Discutia. E afinal, para cortar o assunto:

- Bem, eu vou pensar...

Barbacena cintilou. Estava ganha a cartada... Sabia bem o astucioso ministro que D. Amélia, a deliciosa Beanharnais, com os seus radiosos dezessete anos, com aquela sua mocidade fresca e resplandescente, havia agrilhoado o coração borboleta do moço Imperador. D. Pedro teve pela mulher uma paixão desordenada. Amou-a desvairadamente. Amou-a com toda a explosão do seu temperamento vulcânico. E Barbacena sabia bem que D. Pedro, no seu enlevo, perdido de paixão, jamais teria para com aquela doce criatura a áspera rudeza de um "não".

Não se iludira o velho ministro. D. Amélia, realmente, deveria ter inventado carícias atordoantes, filtros estranhos, amolecedores. D. Pedro não resistiu à mulher. A linda moça, com os seus amavios, com os seus feitiços, conseguiu o milagre único: afastou o Imperador de, seu maior valido. Mandou o Chalaça embora!

Um dia, enfim, estourou na Corte a notícia surpreendente: Francisco Gomes partia do Brasil. Que é que aconteceu? Por que tamanho desfavor? D. Pedro interveio. Não admitiu que o amigo partisse enxovalhado. Fez tudo por dourar aquele desterro. Fez tudo por suavizar aquela enorme queda. E então, contra o sentir de todos os ministros, afrontando o escândalo, D. Pedro timbrou em engrandecer o seu amigo: nomeou-o ministro diplomático em Nápoles!

O Chalaça ministro! O Chalaça, o antigo ourives, o antigo criado do Paço, aquele rastejante tocador de violão, elevado às culminâncias de diplomata brasileiro!

* * *

A partida do favorito foi dum burlesco espantoso. D. Pedro andava numa desolação. Abraçava o amigo, acariciava-o, chorava. Preocupava-se com todas as miudezas da viagem. Ia em pessoa ver o arranjo das malas. Descia às adegas buscar os vinhos prediletos do Chalaça. Providenciava as maiores comodidades para a travessia. Uma dobadoura! Não a descreva eu, que não hão de acreditar-me. Fale o cronista a sua língua desataviada, o que foi essa partida, essa verdadeira página bufa. Eis:

"O valido partiu, por ordem do imperador, a bordo de um paquete inglês para a Inglaterra. O imperador concedeu do seu bolsinho uma pensão anual ao Chalaça de vinte e cinco mil francos. Ao imperador custou muito esta separação. Encarregou-se ele próprio de todo o necessário da bagagem, para que nada faltasse. Lembrava-se das coisas as mais miúdas para cômodos do seu amigo. Tudo o que fazia o imperador comunicava aos ministros. E entretinha-os antes dos despachos com essas ridicularias. Era assim: estive toda esta manhã a fazer arranjar tal ou tal mala: um estojo para aqui, um copo para ali, um talher e outras coisas para Francisco Gomes levar. Isto mortificava o ministério! E como o Chalaça bebia muito, o imperador teve grande cuidado em arranjar-lhe as frasqueiras para a viagem..."

Não haveria por aí, entre os nossos caricaturistas, alguém que fixe esse lance saboroso?

* * *

Assim, graças a essa patriótica urdidura do Barbacena, partiu enfim do Brasil o grandíssimo patife. Esse homem, que subiu tão vertiginosamente, soube apenas, para conseguir tantos triunfos, servir-se deste singelo ardil: explorar a boemia do soberano. Que é que fez o Chalaça na vida? Acompanhou o Amo nas patuscadas, preparou-lhe ceiatas, com violão e lundus, descobriu vinhos velhos, inventou petisqueiras, arranjou-lhe mulherinhas para os regabofes, alimentou à farta o temperamento patusco do monarca. Com isso, com alcovitismos e sabujices, conseguiu tudo. Cobriu-se de honras. Distribuiu favores. Protegeu amigos e apaniguados. Foi um homem culminante no seu tempo. No seu tempo só, não: hoje ainda, em plena democracia, seria o rufião uma pessoa relevantíssima. Quem não conhece, meus senhores, os Chalaças da República?


O paquete "Swallow" enfiou a proa nas águas atlânticas. Ia nele, enfim, o senhor ministro diplomático de Nápoles, rumo do seu exílio dourado. Lá ao longe, entre morros, a cidadezinha diluía-se, confusa. No tombadilho, encostado à amurada, o grande amigo de D. Pedro, com ar murcho, cravava um olhar comprido naquele pequenino casario que se ia apagando na distância. Apertava-lhe o coração um despeito sangrento. Bailava-lhe no lábio um sorriso vago, mas feroz. Todo ele era sombra e fel. E crispando o punho, num gesto de ira, o favorito ciciou acerbamente:

- Deixe estar, Barbacena! Deixa estar...

E em segredo, bem dentro do coração, pôs-se a forjar vinganças espantosas...

* * *

O Marquês de Barbacena, triunfalmente, prestigiadíssimo, começou então a governar o
Brasil numa rósea tranqüilidade. A boa-estrela de Caldeira Brant tocara o mais alto do céu. Tudo sorria-lhe. Tudo, as coisas e os homens, rastejavam-lhe aos pés, com docilidade. Não havia mais estorvos no seu caminho. O Chalaça partira. A Marquesa de Santos partira. João Pinto da Rocha partira. A própria Duquesinha de Goiás fora banida do Paço. Além de tão vastos triunfos, para coroa de tudo, a Imperatriz adorava-o. José Bonifácio, que voltara do exílio, prestigiava-o. E D. Pedro, com as desbordâncias de sua estima, tinha para com o Primeiro Ministro deferências únicas, envaidecedoras. Tratava-o com rara afetuosidade. Abria-lhe a alma em intimidades de irmão. As cartas do soberano, por esse tempo, revelam alto essas amizades fortes. Eram da mais carinhosa confiança. Vede uma pequena amostra: "Meu Barbacena - Grande dia hoje e memorável será em sua casa, pois eu nomeei-o mordomo-mor da imperatriz; e ela nomeou dama a sua filha. Agora segredo. Custou-me a vencer a imperatriz para que a "Pedra Parda" não fosse nomeada; mas finalmente esteve pelas minhas reflexões, e não a nomeou. Creio que a Pedra-Parda tangeu o negócio por boa parte, digo pela duquesa-mãe, mas tudo foi baldado. Estimarei que acredite que sou e serei, seu amo e amigo - Pedro".

Eis outra:
"Barbacena - Remeto-lhe esse papel, a fim de que mande examinar se o que esse homem representa é verdade. Desejo muito que essa o ache bom e mais toda a sua família. Eu estou bom, a imperatriz igualmente os dois príncipes. A Paula está um pouco incomodada, mas vai bem. Perdoe que lhe lembre esporear o promotor dos jurados: há papéis que merecem bem de ser lidos e considerados pelo ministério. Isto é muito amical, pois de todo o coração sou seu amigo. - Pedro".

Barbacena, realmente, saboreou então o pináculo do fastígio. Foi a sua hora suprema. O Brasil inteiro, fascinado, ajoelhou-se diante do Grande Homem, como um inca diante do sol. Mal imaginava o ditoso Marquês, naquele momento de glória embriagante, que em Londres, lá por esse remoto Londres, sob o fog, trotando por Picadilly, andava alguém, espumejando, com um ódio de morte fincado no coração, a forjar contra o Primeiro Ministro vinganças espantosas...

* * *

- O Imperador!
As ruas abarrotam-se de gente. Grande correria. As janelas abrem-se com estrépito. Que há?
- O Imperador!

É o Imperador que passa. Sua Majestade guia um coche tirado a seis. O fraco de D. Pedro, toda gente o sabe, é guiar. Não há para Sua Majestade paixão que o empolgue tanto. Naquele dia, então, como o sol luzisse magnífico, D. Pedro saiu com espavento. Soberbo, o chicote em punho, o boleeiro imperial largara o coche num galope solto. Vinha dentro a Imperatriz D. Amélia. Dum lado, D. Maria da Glória, a rainhazinha de Portugal. Do outro lado, o Príncipe Augusto, irmão da imperatriz. Um bando luzidissimo! De repente, a uma chicotada mais violenta, um dos cavalos pula, as guias quebram-se, o coche revira com estrondo! Grande pânico! D. Pedro é arremessado longe. A Imperatriz e a Rainha caem
 de borco no chão. O Príncipe Augusto bate a cabeça no lajedo. Um desastre completo. Todo o mundo precipita-se numa ânsia. Que foi? Que foi? Os viajantes reais estavam feridos. O Imperador, gemendo, vermelho de sangue, tinha duas costelas quebradas. Era na Rua do Lavradio. Era em frente à casa do Marquês de Cantagalo. O Marquês corre com todos os escravos a socorrer os feridos. Recolhe-os. Presta-lhes auxílios enérgicos. Vieram logo os médicos. Veio o cirurgião. Encastoaram fortemente o Imperador. E Pedro, durante largos dias, até curar-se da fratura, deixou-se ficar na casa amiga do Cantagalo.

* * *

Um dia, ao fim da doença, recebeu o monarca a correspondência de Estado. Era imensa. D. Pedro pôs-se a correr os olhos por aquele monte de papéis. Havia, entre eles, uma carta que chegara de Londres. Carta grossa, recheada de documentos. D. Pedro leu-a, com espanto. Depois, com mais vagar, tornou a ler. Meditou. Tornou a ler... Aquela estranha carta chocara vivamente o soberano! D. Pedro bateu palmas. Apareceu o guarda-roupa de serviço:

- Vá buscar o Barbacena. Que venha já!

O guarda-roupa saiu. Devia existir nela qualquer coisa de muito grave, de muito impressionante. Aquelas letras tiveram influência radical no espírito de D. Pedro. Perturbaram-no. Um ricto de cólera enrugou-lhe o lábio. O olhar lampejou-lhe, bravio. Não restava dúvida: aquela estranha carta revirou-lhe os nervos. Assim, quando Barbacena entrou, D. Pedro fervia.

O Ministro notou logo aquele azedume, aquelas sombras, D. Pedro, encastoado nas faixas, fez um enorme esforço para sentar-se. Sentou-se. E áspero:
- Diga-me aqui, Marquês: quanto V. Excia. gastou na Europa com o meu casamento?
Barbacena petrificou-se! Olhou o Amo assombrado. E D. Pedro, cada vez mais rude:
- Vamos lá, Marquês: quanto V. Excia. gastou?
Barbacena reconcentrou-se. Um instante depois:
- É fácil dizer. Gastei: 177.738 libras, 19 shillings, 10 pence.
- Mas é fabuloso, Marquês! E em que coisas dispendeu V. Excia. tanto dinheiro?
E Barbacena, olhos escancarados:
- Eu já expliquei tudo, Majestade! E expliquei de tal forma, que Vossa Majestade aprovou as minhas contas...
- O Marquês não explicou coisa alguma. Eu não vi coisa alguma! V. Excia. mostrou-me aí uma papelada. Uma papelada que eu não examinei, que fui aprovando à toa, confiado em V. Excia.. Mas, agora, depois das revelações que recebi, exijo que o Marquês torne a prestar contas. Quero que me forneça todos os detalhes. Não é possível que V. Excia. tivesse gasto tanto! Não é possível... Nisso, Marquês, andou patifaria...
- Majestade!
- Patifaria, sim senhor! Patifaria grossa! Eu sei agora - tenho provas - que V. Excia., em Londres, recebeu comissão de todos os fornecedores. V. Excia. mandou passar os seus recibos por um preço, mas pagou outros. V. Excia. inventou despesas que não se fizeram.
V. Excia..
Barbacena tremia, indignado. E com fúria, chamejante:
- Mas isso é calúnia, Majestade! Isso é infâmia dos meus inimigos!
- Não é calúnia, não senhor! Onde está, Marquês, o tal adereço de pérolas que V. Excia.
diz que comprou para a Imperatriz? Onde está? E a afogadeira de rubis? Onde está? Ora, sabe o que mais?
Afogueado, os olhos chispantes, com aqueles seus eternos ímpetos de estouvado:
- Sabe o que mais? Escute lá: V. Excia. roubou-me!
- Majestade!
- Roubou-me, sim senhor! V. Excia, é um ladrão...
Barbacena não se conteve. Pulou:
- Vossa Mejestade enlouqueceu! Vossa Majestade não sabe o que diz! Vossa Majestade...
Ferveu entre ambos uma altercação furiosa. Disseram-se os mais tremendos desaforos. Conta o velho Melo Morais:

"Foi tão vergonhosa a polêmica entre o Imperador e o Marquês de Barbacena, que o Imperador, furioso chamou a Barbacena de ladrão. A Imperatriz D. Amélia caiu doente!"

Resultou do atrito incrível - era fatal! - a demissão imediata de Barbacena. O homem do dia ruiu por terra. Espatifou-se o deus da hora. Mas, de que jeito? O ídolo tombou por um decreto famoso, decreto de uma secura achincalhante, decreto que o enlameava. Dizia, com todas as letras, que:

- "Sendo necessário tomarem-se as contas da caixa de Londres, e examinarem-se as grandes despesas feitas pelo Marquês de Barbacena com minha Augusta Filha, e, especialmente com o meu casamento... hei por bem demiti-lo do cargo de Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda".

Barbacena veio a público defender-se da pecha infame. Mas antes de assumir assim uma atitude de ostensiva luta, o velho ministro tentou conciliar um pouco as coisas. E lançou esta ponte: endereçou ao soberano uma petição em que solicitava, com certa malícia amedrontadoramente, autorização para publicar documentos graves. A resposta foi duma rudeza desaforada. Proclamava mais uma vez nuamente, o desvalimento em que caíra o Marquês. Dizia o Ministro do Império: "O Augusto Amo e Senhor ordenou que participasse a V. Excia. que, pela garantia do art.179 parágrafo 4.o da Constituição do Império, é desnecessária a licença que requer".

Não podia mais, diante da resposta, haver um instante de protelação. Barbacena despejou a sua defesa. Trouxe à baila cartas reservadíssimas. Desvendou toda a vergonheira do casamento. Explicou as instruções secretas de D. Pedro, os requisitos que exigia da noiva, as casas reinantes antipáticas, o diabo! Espalhou com retumbância as tábuas de D. Pedro, o enxoval, os empréstimos, mil intimidades ridículas e comprometedoras.

E foi só assim, graças à briga indecorosa, que a posteridade soube afinal das miudezas daquele célebre casamento imperial, miudezas tão cômicas, é verdade, mas tão dolorosas para os brios do Imperador e para as nossas arrogâncias de nação. Aquele desvendar de coisas limpou galhardamente a memória de Barbacena. O embaixador e plenipotenciário entupiu a boca dos maledicentes pósteros. Mas não o redimiu perante o Amo. Ao contrário: agravou-lhe mais a desvalia. O Marquês de Barbacena, desde então, despenhou-se irremissivelmente na desgraça!

* * *

O Chalaça, lá em Londres, haveria de sorrir um belo sorriso satânico, ao saber da queda fragorosa do seu imenso inimigo. E haveria de sentir, com legitimo orgulho, o seu ainda
formidável prestígio ante o coração do Amo e Amigo. D. Pedro não o esquecera. E a sua influência era ainda tão alta, tão decisiva, que, mesmo do exílio, mesmo de muito longe, bastava uma simples carta, uma pequenina palavra sua, para arremessar do pedestal um ministro onipotente, validíssimo, amigo e confidente da Imperatriz.

Não há que fugir, esta é a rude verdade: o Chalaça foi o homem culminante do Primeiro Reinado.

Texto de Paulo Setúbal em "As Maluquices do Imperador", Saraiva, São Paulo, 1983, excertos pp.56-63. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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