Em 1985 foi realizado em Curitiba um Congresso sobre Ecologia e Constituinte. Convidado a participar, preparei um texto que foi ouvido por muito poucas pessoas, raros jovens e que não causou o menor interesse. Apenas ouvi longas e ensebadas críticas ao que se considerou o utopismo ingênuo dos anarquistas. Além disso , os organizadores do Congresso me avisaram, ao fim dos trabalhos, que, por seu caráter marginal, meu trabalho não seria incluído na publicação a ser feita com as demais contribuições.
O conteúdo da palestra e a maior parte de seu texto foram extraídos do livro Por uma sociedade ecológica, do pensador anarquista norte-americano Murray Bookchin. Para mim essa obra é a que melhor exprime a ideologia e o projeto do anarquismo contemporâneo mais radical e mais tesudo, do qual me sinto parte e participante. Daí a ausência de aspas separando seu texto dos meus comentários, porque não existem aspas entre os nossos pensamentos e entre as nossas formas de luta e de paixão libertários. Entretanto, para os que se preocupam com a propriedade intelectual, aqui fica registrado o crédito e a cumplicidade do discípulo ao seu mestre.
Segue, na íntegra, a palestra de Curitiba que, a meu ver, permanece inédita. Com ela fecho também o livro, propondo, com Murray Bookchin, o anarquismo ecológico como o único tesão e a verdadeira solução para a nossa esperança.
Em quase todos os períodos que se seguiram ao Renascimento, o pensamento revolucionário foi sempre fortemente influenciado por algum ramo da ciência, freqüentemente junto com uma escola filosófica. A astronomia, em tempos de Copérnico e Galileu, ajudou a modificar as idéias do mundo medieval, infiltradas pela superstição, abrindo caminho para uma concepção impregnada do racionalismo crítico, abertamente naturalista e humanista em seu enfoque.
No período histórico que culminou com a Revolução Francesa, este movimento de idéias foi reforçado pelos progressos da mecânica e das matemáticas. A era vitoriana foi atingida em suas bases pelas teorias evolucionistas na biologia e na antropologia, pelas contribuições de Marx à economia política e pela psicologia de Freud.
Em nosso tempo assistimos à assimilação dessas ciências, antes liberadoras, pela ordem social estabelecida. Começamos, inclusive, por ver na própria ciência um instrumento de controle sobre os processos mentais e o ser físico do homem. Por isso, penso como Abraam Maslow, quando ele diz que “muitas pessoas sensíveis, especialmente artistas, têm a impressão de que a ciência suja e deprime, separa as coisas em lugar de integrá-las; isto é, mata em lugar de criar”. Mais importante que isso, me parece que a ciência vem perdendo sua perspectiva crítica. Decididamente funcionais ou instrumentais, os ramos da ciência que alguma vez romperam as correntes que aprisionam o homem são utilizadas, agora, para perpetuá-las e reforçá-las. A própria filosofia inclinou-se ante o instrumentalismo, convertida em pouco mais que um corpo de fórmulas lógicas; tem mais afinidades com um computador que com um revolucionário.
Há uma ciência, sem dúvida, que poderia chegar a restaurar o potencial liberador das ciências e filosofias tradicionais. Foi-lhe dado o nome bastante genérico de “ecologia”, termo atribuído a Haeckel, faz um século, para indicar “a investigação das relações totais do animal com seu meio ambiente orgânico e inorgânico”. Mas se a concebermos em um sentido amplo, a ecologia se refere ao equilíbrio da natureza. E, na medida em que a natureza inclui o homem, esta ciência trata basicamente da harmonização do homem com a natureza.
As explosivas implicações de um enfoque ecológico não se devem somente a que a ecologia esteja dotada intrinsecamente de uma condição crítica — e numa escala crítica que lhe invejariam os sistemas mais radicais da economia política — mas também por tratar-se de uma ciência integradora e reconstrutora. Este aspecto integrador e reconstrutor da ecologia, levado às suas últimas implicações, conduz diretamente ao território anarquista do pensamento social. Pois, em última análise, resulta impossível alcançar uma harmonia entre o homem e a natureza sem criar uma comunidade humana que viva em equilíbrio perdurável com seu meio ambiente natural.
Em Psicologia podem-se usar estas mesmas palavras para chegar a idêntica conclusão. Rompidos com o pensamento e metodologia oficiais da Psicanálise e da Psiquiatria institucional, embarcando na contracultura revolucionária do pensamento e vida de Wilhelm Reich, bem como na antipsiquiatria de David Cooper, Ronald Lang e Franco Bassaglia, chegamos a estruturar nosso próprio pensamento, organizado para a ação num processo terapêutico, a Somaterapia, cujos parâmetros fundamentais são a ecologia e o anarquismo.
Lamentavelmente, vivendo em sistemas políticos antinaturais, o homem parece um parasita tão intensamente destrutivo, que ameaça matar seu hóspede — o mundo natural — e finalmente a si mesmo. Mas qual seria a causa dessa capacidade destrutiva do homem? O que é que produz nele esse tipo de parasitismo que não só conduz a vastos desequilíbrios naturais, mas ameaça também a existência da própria humanidade? O que nós, psicólogos de formação política libertária, sabemos, é que os desequilíbrios produzidos pelo homem no mundo natural têm origem nos desequilíbrios do mundo social. E, indo mais fundo, podemos constatar que a noção de que o homem deve dominar a natureza emerge diretamente da dominação do homem pelo homem. A família patriarcal representou a semente da dominação nas relações nucleares da humanidade; a clássica fratura do mundo antigo entre espírito e realidade, ou melhor, entre a mente e o trabalho, foi o que a nutriu. Mas somente quando as relações próprias das comunidades orgânicas, feudais ou camponesas se dissolveram nas relações de mercado, o planeta todo foi reduzido à categoria de recurso explorável.
Esta tendência de séculos se manifesta com máxima intensidade no capitalismo moderno. Devido à sua própria natureza competitiva, a sociedade burguesa não só faz os homens se enfrentarem entre si, faz também a massa humana enfrentar o mundo natural. Assim como os homens se transformam em mercadorias, o mesmo sucede com todos e cada um dos aspectos do reino natural que devem ser manufaturados, comercializados desenfreadamente.
Daí deriva a chamada sociedade de consumo. As necessidades são elaboradas pelos meios de comunicação de massa, para criar uma demanda pública de mercadorias perfeitamente inúteis, cada uma das quais foi criada cuidadosamente para se deteriorar ao cabo de um período de tempo previsto. O saque do espírito humano pelo mercado é comparável e paralelo ao saque da Terra pelo capital.
Apesar das preocupações que se tem hoje sobre o crescimento da população, as chaves estratégicas da crise ecológica não devem ser buscadas no crescimento demográfico da Índia e sim no crescimento de produção dos Estados Unidos, um país que produz mais da metade dos bens do mundo. Com a nona parte de sua capacidade industrial dedicada à produção bélica, os Estados Unidos estão literalmente pisoteando a Terra e destruindo ligações ecológicas que são vitais para a sobrevivência da humanidade.
Em síntese, analisando a forma pela qual a humanidade caminha para a autodestruição, os ecologistas observam que se está praticando o que eles chamam de reversão da evolução orgânica natural. Isto como resultado de insalváveis contradições entre a cidade e o campo, o Estado e a comunidade, a indústria e a agricultura, a manufatura de massas e o artesanato, o centralismo e o regionalismo, a escala burocrática e a escala humana.
Até há pouco tempo, as tentativas de resolver as contradições geradas pela urbanização, a centralização, o crescimento burocrático e a estratificação foram consideradas uma resistência vã, quimérica e revolucionária. Via-se o anarquista como um infeliz visionário, um marginalizado social nostálgico do campesinato ou da comuna medieval. Seus anseios por uma sociedade descentralizada e uma comunidade humanística, em harmonia com a natureza e as necessidades reais dos indivíduos — o indivíduo espontâneo, sem sujeição à autoridade — eram recebidos como reações de um romântico, de um artesão sem classe, de um intelectual desgarrado. Seu protesto contra a centralização e a estatização convencia pouco, porque se apoiava basicamente em considerações éticas: noções utópicas, ostensivamente “não realistas” sobre o que o homem poderia sere não sobre o que era. Como resposta, os inimigos do pensamento anarquista — liberais, direitistas e esquerdistas autoritários — proclamavam-se porta-vozes da realidade histórica, posto que suas noções estatizantes e centralistas tinham as raízes no mundo prático e objetivo.
Todas essas críticas ao pensamento anarquista não podem mais ser feitas hoje, pois os Estados autoritários e burocráticos que se seguiram à revolução industrial, por mais libertadoras e progressistas que sejam as funções que cumpriram no passado, converteram-se agora em Estados regressivos e opressores. Não são regressivos apenas porque corroem o espírito humano e esvaziam a comunidade de sua coesão, solidariedade e modos ético-culturais.
Nunca insistiremos demais para o fato de que os conceitos anarquistas de comunidade equilibrada, democracia cara-a-cara, tecnologia humanística e sociedade descentralizada — estes ricos conceitos libertários — não são apenas desejáveis, como são necessários. Não apenas pertencem às grandes visões do futuro humano: constituem-se agora nos pré-requisitos básicos da sobrevivência do homem. O processo da evolução tirou-os da dimensão ética, subjetiva, instalando-os no plano objetivo e prático. O que alguma vez se considerou coisa de visionário, agora resulta em coisa eminentemente prática. E o que antes se tinha por prático e objetivo, tornou-se eminentemente pouco prático e irrelevante em função do desenvolvimento humano em direção a uma existência mais plena e livre. Se assumirmos as exigências de comunidade, democracia direta, tecnologia humanística libertadora e descentralização, certamente encontraremos muita gente, como nós, acreditando na viabilidade da sociedade anarquista. Iluminado por essas idéias, passei a acreditar na presença, já entre nós, dos protomutantes, o homem novo e vindo do futuro, e escrevi o romanceCoiotepara saudá-los.
Uma recusa ao atual estado de coisas é o que inspira, a meu ver, o explosivo crescimento de um anarquismo entre a juventude de hoje. O amor dos jovens pela natureza é uma reação contra as características essencialmente sintéticas de nosso meio urbano e seus vis produtos. Sua informalidade em vestir-se e em seus costumes descontraídos são uma reação contra o formalismo, a estandardização da vida moderna. Sua predisposição para a ação direta é uma resposta à burocratização e centralização da sociedade. Sua tendência à marginalização, à recusa do trabalho e da competitividade, reflete uma indignação crescente contra a insensata rotina industrial instaurada pela manufatura de massa nas fábricas, escritórios e universidades. Seu intenso individualismo constitui, na sua maneira elementar de ser, uma descentralização de fato, da vida social: uma retirada pessoal da sociedade de massa.
Antes de prosseguir, desejaria fazer uma distinção clara e objetiva do que significa ecologia para nós, sobretudo destacandoa definitiva e radicalmente do que se chama ambientalismo, coisa que interessa, de modo cínico, aos causadores diretos da degradação da vida humana. Diante de uma sociedade que não só contamina o planeta numa escala sem precedentes, além de minar seus próprios fundamentos bioquímicos mais essenciais, creio que os ambientalistas não colocaram o problema estratégico da instauração de um equilíbrio novo e duradouro com a natureza. Podemos nos contentar com obstaculizar às vezes uma central nuclear ou a poluição industrial de um rio? Perdemos de vista o fato essencial de que a degradação do meio ambiente responde a causas infinitamente mais profundas que os erros e os maus propósitos dos industriais e do Estado; perdemos de vista que os intermináveis discursos sobre a ameaça apocalíptica que nos é imposta pela contaminação e expansão industrial, ou o crescimento demográfico, não fazem mais que dissimular um aspecto muito mais fundamental da crise da condição humana, aspecto que não se limita à tecnologia ou aos valores morais, mas que é profundamente social? Mais do que destacar novamente a amplitude da crise do meio ambiente ou lançar-me à fácil denúncia do quanto é rentável a contaminação, ou responsabilizar, inclusive a um abstrato “nós” pela excessiva natalidade, ou a determinada indústria pela grande quantidade de produtos que lança de determinado tipo, queria colocar a questão de saber se a crise do meio ambiente não está ligada à mesma estrutura original da atual sociedade, se as transformações que implica a criação de um novo equilíbrio entre o mundo natural e o mundo social não exige uma reestruturação fundamental e mesmo revolucionária da sociedade segundo princípios ecológicos.
A ecologia, a meu ver, propõe uma noção mais ampla da natureza do que supõe o ambientalismo, bem como da relação da humanidade com o mundo natural; considera o equilíbrio da biosfera e sua integridade como um fim em si. Se vale a pena cultivar a diversidade da natureza, isso não se deve unicamente ao fato de que quanto mais diversificados estejam os elementos constitutivos de um ecossistema, mais estável será esse ecossistema; vale a pena, além disso, buscar a diversidade por ela mesma, porque representa a realidade natural da espontaneidade e da liberdade do mundo vivo.
Estas concepções, reunidas dentro de uma totalidade que poderíamos expressar mediante a unidade na diversidade, a espontaneidade e a complementaridade, não apenas constituem as conclusões a que chega a ecologia, essa ciência artística ou essa arte científica, mas expressam também de forma sintética a percepção do nosso lento emergir do mundo arcaico e do nosso ingresso em um novo contexto social. A idéia de que o destino do homem consiste em dominar a natureza deriva do domínio do homem sobre o homem — e também, de maneira mais primária, do domínio do homem sobre a mulher e do ancião sobre o jovem.
Essa mentalidade autoritária e hierárquica não tem raízes e é quase inexistente nas sociedades não hierarquizadas. Trabalhos antropológicos de Dorothy Lee, por exemplo, com índios da Califórnia, são muito interessantes a esse respeito.
Para concluir, acreditamos que só se vai restabelecer a harmonia em nossa relação com o mundo natural se reinar a harmonia na sociedade. A ecologia natural nos parecerá carente de sentido se não sairmos do marco estreito e árido dessa disciplina científica para fundar uma ecologia social que seja pertinente em relação à nossa época.
A sociedade do produzir por produzir nos coloca diante de uma alternativa de rigor extremo. O capitalismo moderno, muito mais que qualquer outra sociedade do passado, conseguiu fazer com que o desenvolvimento das forças técnicas alcançasse o seu mais alto nível, um nível em que finalmente poderíamos eliminar o trabalho enquanto condição essencial da existência da grande maioria dos homens e a insegurança enquanto característica dominante da vida social. Nos achamos hoje às portas de uma sociedade que pode ignorar a escassez e fazer da igualdade entre os desiguais não mais a lei de um pequeno grupo unido por relações de parentesco, mas também a condição universal tanto da humanidade em seu conjunto quanto do indivíduo — cujos laços sociais se baseiam na livre associação e livre secessão —, e em afinidades pessoais e não mais nas obrigações de sangue. A personalidade autoritária, a família patriarcal, a propriedade privada, a razão repressiva, a cidade territorial e o Estado teriam já realizado sua obra histórica de implacável mobilização da humanidade, de desenvolvimento das forças produtivas e de transformação do mundo. Na atualidade, estas instituições e estes modos de consciência são totalmente irracionais; estes “males necessários”, segundo Bakunin, tornaram-se males absolutos. A crise ecológica de nossa época demonstra que os meios de produção desenvolvidos pela sociedade hierárquica, e em particular pelo capitalismo, se tornaram demasiado poderosos para servir de meio de dominação.
Temos, pois, de criar uma sociedade ecológica — não somente porque é algo desejável, mas porque tornou-se tragicamente necessário. Temos de começar a viver se queremos sobreviver. Uma sociedade com essa índole implica numa mudança radical de todas as tendências que caracterizaram o desenvolvimento histórico da tecnologia capitalista e da sociedade burguesa: a especialização extrema das máquinas e do trabalho, a concentração de homens e recursos em aglomerações e empresas industriais gigantescas, o estatismo e a burocratização da existência, o divórcio entre campo e cidade, a transformação da natureza e dos seres humanos em objetos.
Uma mudança tão total exige, a meu ver, que comecemos descentralizando nossas cidades e fundando comunidades completamente novas, que se adaptem estreitamente e, de certo modo, esteticamente, ao ecossistema escolhido. Assinalamos que descentralização não significa que a população se esparrame arbitrariamente pelo campo, tanto à base de famílias isoladas quanto de comunidades contra-culturais — apesar do papel vital que estas possam desempenhar. Ao contrário, temos de recuperar a tradição urbana dos antigos gregos, aquela da cidade que possa ser compreendida e dirigida por seus habitantes, e criar uma nova polis,ajustada às dimensões humanas.
Creio que essa comunidade anularia a ruptura entre o campo e a cidade, até entre mente e corpo, pois operaria a fusão do trabalho manual e do trabalho intelectual, da indústria e da agricultura, graças à rotação ou à diversificação das tarefas.
É de se esperar que estas ecocomunidades e sua tecnologia adaptada às dimensões do homem abram uma nova era de relações de indivíduo a indivíduo e de democracia direta, e permitam um tempo livre graças ao qual, à maneira dos gregos, a população seja capaz de dirigir os assuntos da sociedade prescindindo da mediação de burocratas e profissionais da política. Assim ficariam anuladas e superadas as separações operadas pela hierarquia no corpo social há tanto tempo. Assim se reconciliariam e se readmitiriam, numa síntese humanista e ecológica, os sexos, as classes de idade, a cidade e o campo, o governo e a coletividade, o corpo e a mente, atualmente cindidos e opostos. Surgiria assim um ecossistema baseado na unidade dentro da diversidade, na espontaneidade, em relações não hierarquizadas, em trabalho criativo, em autogestão. Nosso esforço tenderia a realizar primeiro em nossas próprias cabeças a reintrodução da mente no mundo natural; logicamente não através de um retorno aos mitos da era arcaica, mas mediante um movimento que faça da consciência humana o lugar apto para que o mundo natural chegue a ser consciente de si mesmo, criador de si mesmo, e a viver informado por uma racionalidade não repressiva que só pretendesse alimentar a diversidade e a complexidade da vida.
Mas a transformação que precisa ocorrer deve ser tão radical e tão completa que faça explodir inclusive as noções de revolução e de liberdade que herdamos. Não podemos nos contentar com novas técnicas que permitam conservar e enriquecer o meio ambiente natural; devemos nos encarregar da terra de maneira comunitária, como coletividade humana, e romper as travas da propriedade privada, que falsearam nossa visão de vida e da natureza desde que abandonamos a sociedade tribal. Devemos eliminar não apenas a hierarquia burguesa, mas a hierarquia como tal; não apenas a família patriarcal, mas todosos modos de dominação sexual e paterna; não apenas a classe burguesa e seu sistema de apropriação, mas também as classes sociais e todas as formas de propriedade. A humanidade há de tomar possessão de si mesma, tanto a nível individual quanto coletivo, de modo a que qualquer ser humano disponha verdadeiramente de sua sorte cotidiana. A revolução que aspiramos deverá subverter não apenas as relações econômicas, mas também a consciência, a vida cotidiana, os desejos eróticos e o sentido da vida.
Gostaria de me apropriar de algumas passagens do manifesto do Ecology Action East, dos Estados Unidos, para manifestar também aqui solidariedade à revolução da vida cotidiana (como já realizei em meu livro com Fausto Brito,Utopia e paixão).
Proponho a luta pela libertação das mulheres, das crianças, dos homossexuais de ambos os sexos, dos negros, dos colonizados e dos trabalhadores de toda condição, porque essas lutas se inscrevem na luta global que se vai intensificando contra as tradições e as instituições imemoriais da dominação, pois são essas tradições e essas instituições que estruturam as atitudes destruidoras com relação ao mundo natural. Proponho as comunidades libertárias e os combates pela liberdade onde quer que surjam; me manifesto solidário com qualquer esforço que favoreça o desenvolvimento espontâneo e autônomo dos jovens; condeno qualquer tentativa de reprimir a sexualidade humana e a erotização da vida. Me associo a todas as buscas para criar um modo de vida e de trabalho estético e alegre; me associo a todas as reivindicações pelo direito de gozar cotidianamente as belezas da natureza, o de manter com os outros uma relação de prazer imediato e sensual.
Acrescento ainda ao manifesto a luta pelo direito consciente e responsável das pessoas na busca do aumento da sua percepção, da sua alegria e do seu prazer através de substâncias cientificamente provadas como inocentes à saúde e que não criem dependência psicológica. Refiro-me a substâncias naturais, como a maconha por exemplo, menos tóxica que o tabaco e o álcool (liberados legalmente), bem menos tóxica que as substâncias químicas que poluem o ar, a terra, a água e os nossos alimentos, e que somos obrigados a ingerir à nossa revelia, portanto sem liberdade e sem responsabilidade pessoal.
Essa a minha utopia, uma utopia que adotei face ao fracasso tanto do capitalismo quanto do socialismo autoritário na descoberta de soluções para a manutenção da vida humana; não encontrei outra saída que não seja a de lutar revolucionariamente pela “Utopia, já”, ou seja, descobrir de que maneira convencer os homens da não existência de outra saída que não seja a busca imediata da ecossociedade anarquista, da consciência libertária. E, para isso, a Psicologia contemporânea teria um papel importante. Com essa finalidade nasceu a Somaterapia, que desenvolvi baseado em princípios ecológicos e anarquistas, a serviço do tesão revolucionário dos protomutantes de nosso tempo.
Texto de Roberto Freire em "Sem Tesão Não Há Solução", Trigrama Editora, São Paulo, 1990, excertos Terceira Parte, cap.12. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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