8.06.2018

ROMA ANTIGA - DO VENTRE MATERNO AO TESTAMENTO

Família Romana (Galeria Uffizi-Florença)
SER ACEITO OU ABANDONADO

O nascimento de um romano não é apenas um fato biológico. Os recém-nascidos só vêm ao mundo, ou melhor, só são recebidos na sociedade em virtude de uma decisão do chefe de família; a contracepção, o aborto, o enjeitamento das crianças de nascimento livre  e  o  infanticídio  do  filho  de  uma  escrava  são,  portanto,  práticas  usuais  e perfeitamente legais. Só serão malvistas e, depois, ilegais, ao se difundir a nova moral que, para  resumir,  chamamos  de  estoica.  Em  Roma  um  cidadão  não  "tem"  um  filho:  ele  o "toma", "levanta" (tolkre); o pai exerce a prerrogativa, tão logo nasce a criança, de levantá-a do chão, onde a parteira a depositou, para tomá-la nos braços e assim manifestar que a reconhece e se recusa a enjeitá-la. A mulher acaba de dar à luz (sentada, numa poltrona especial, longe de qualquer olhar masculino) ou morreu durante o trabalho de parto, e o bebê foi extraído de seu útero incisado: isso não basta para decidir a vinda de um rebento ao mundo.

A  criança  que  o  pai  não  levantar  será  exposta  diante  da  casa  ou num  monturo público; quem quiser que a recolha. Igualmente será enjeitada se o pai, estando ausente, o tiver ordenado à mulher grávida; os gregos e os romanos sabiam que uma particularidade dos egípcios, dos germanos e dos judeus consistia em criar todas as suas crianças e não enjeitar nenhuma. Na Grécia era mais frequente enjeitar meninas que meninos; no ano I a. C, um heleno escreveu à esposa: "Se (bato na madeira!) tiveres um filho, deixa-o viver; se  tiveres  uma  filha,  enjeita-".  Mas  não  é  certo  que  os  romanos  tivessem  a  mesma parcialidade. Enjeitavam  ou afogavam  as  crianças malformadas  (nisso não havia  raiva, e sim razão, diz Sêneca: "É preciso separar o que é bom do que  não  pode  servir  para  nada"),  ou  ainda  os filhos  de  sua  filha  que  "cometeu  uma falta". Entretanto, o abandono de  filhos legítimos tinha como causa principal a miséria de uns  e  a  política patrimonial  de  outros.  Os  pobres  abandonavam  as  crianças  que  não podiam alimentar; outros "pobres" (no sentido antigo do termo, que hoje traduziríamos por "remediados") enjeitavam os filhos "para não vê-los corrompidos por uma educação medíocre  que  os  torne  inaptos  à  dignidade  e  à  qualidade",  escreve  Plutarco;  a  classe média, os simples notáveis, preferia, por ambição familiar, concentrar esforços e  recursos num  pequeno  número  de  rebentos.  Contudo,  mesmo  os  mais  ricos  podiam  rejeitar um filho  indesejado  cujo  nascimento  pudesse  perturbar  disposições  testamentárias já estabelecidas. Dizia uma regra de direito: "O nascimento de um filho (ou filha) rompe o testamento"  já  selado  anteriormente,  a  menos  que  o  pai  se  conforme com  deserdar  de antemão o rebento que poderia vir a ter; talvez se preferisse nunca mais ouvir falar nele a deserdá-lo.

O  que  acontecia  com  as  crianças  enjeitadas?  Raramente  sobrevivem,  escreve  o Pseudo-Quintiliano, que estabelece uma distinção: os ricos desejam que a criança nunca mais apareça, enquanto os miseráveis, pressionados pela pobreza, fazem de tudo para que o  bebê  seja  recolhido.  Por  vezes  o  enjeitamento  não passava  de  uma  encenação:  às escondidas  do  marido,  a  mulher confiava o  filho  a  vizinhos  ou  subordinados  que  o criavam  secretamente; depois  ele  se  tornava  escravo  e  eventualmente  liberto  de  seus educadores.  Em  casos  raríssimos  a  criança  chegava  um dia a ter reconhecido  seu nascimento livre; essa foi a história da esposa do imperador Vespasiano.

Decisão  legítima  e  refletida,  o  enjeitamento  podia  tomar a  aparência de  uma manifestação  de  princípio. Um  marido  que  suspeita da fidelidadeda esposa enjeita a criança  que  considera adulterina; assim foi abandonada na  porta  do  palácio  imperial a filha  de  uma  princesa,  "inteiramente  nua". Bem  como manifestação  político-religiosa:  à morte  de  Germânico,  um  príncipe  muito  amado,  a  plebe, manifestando-se  contra  o governo dos deuses, dilapidou seus templos e alguns pais ostensivamente enjeitaram  os  filhos  em  sinal  de  protesto;  após  o  assassinato  de  Agripina  por  seu  filho Nero, um desconhecido "abandonou em pleno foro um bebê com um cartaz em que se lia: 'Não te crio com medo de que mates tua mãe'". Sendo uma decisão privada, por que o enjeitamento não seria público, conforme as circunstâncias? Certo dia correu pela plebe um  boato:  informado  pelos  adivinhos  de  que  um  rei  nasceria  naquele  ano,  o  Senado queria obrigar o povo a abandonar todas as crianças nascidas no mesmo ano. Como não pensar  no  massacre  dos  inocentes  (que,  diga-se  de  passagem,  provavelmente  é  um  fato autêntico e não uma lenda)?

Em Roma a "voz do sangue" falava muito pouco; o que falava mais alto era a voz do nome de família. Ora, os bastardos tomavam o nome da mãe, e não havia legitimação ou  reconhecimento  de  paternidade;  esquecidos  pelo  pai,  os  bastardos  praticamente  não desempenharam nenhum papel social ou político na aristocracia romana. Havia escravos libertos,  geralmente  ricos  e  poderosos,  que  conseguiam  às  vezes  introduzir  os  filhos  na ordem  dos  cavaleiros  ou  até  no  Senado:  a  oligarquia  dirigente  reproduzia-se  através  de seus  filhos  legítimos  e  dos  filhos  de  seus  antigos  escravos…  Pois  os  libertos  tinham  o sobrenome  do  amo  que  os  liberara  da  escravidão;  continuavam  seu  nome.  Assim  se explica a frequência das adoções: a criança adotada tomava o nome do novo pai.

 NATALIDADE E CONTRACEPÇÃO

As adoções e a ascensão social de certos libertos compensavam a fraca reprodução natural, pois a mentalidade romana é bem pouco naturalista. Aborto e contracepção eram práticas usuais, mas o que deturpa o quadro feito pelos historiadores é que os romanos abrangiam  sob  o  termo  aborto  métodos  cirúrgicos  que  também  chamamos  como  tal  e outros que denominamos de contracepção… Pois em Roma pouco importa o momento em que a mãe se livra de um futuro filho indesejado.

Nem os moralistas mais severos podiam impor à mãe o dever de guardar seu fruto: nem sequer pensaram em reconhecer ao feto o direito de viver. O recurso a um método de contracepção é difuso em todas as classes da população; santo Agostinho refere-se a "amplexos  nos  quais  se  evita  a  concepção"  não  como  uma  coisa  rara  e  os  condena, mesmo que ocorram com a esposa legítima; ele distingue contracepção, esterilização por meio de drogas e aborto e os condena igualmente. Alfred Sauvy escreveu: "Pelo que hoje sabemos sobre o poder multiplicador da espécie humana, a população do Império teria se multiplicado muito mais e ultrapassado seus limites".

Qual  era  o  procedimento  utilizado?  Plauto,  Cícero  e  Ovídio  aludem  ao  costume pagão da lavagem após o ato sexual, e um vaso em relevo encontrado em Lyon mostra um servo com um cântaro correndo para um casal muito ocupado na cama; mascarado de higiênico,  o  costume  podia  ser  contraceptivo.  Tertuliano,  polemista  cristão,  considera que, uma vez emitido, o esperma já é uma criança (e assimila a fellatio à antropofagia); ora, em  'O  véu  das  virgens',  faz  uma  alusão,  obscura  com  tanta  truculência  obscena,  às  falsas virgens para as quais parto e concepção são a mesma coisa: paradoxalmente, elas recusam ao mundo crianças semelhantes ao pai e com essa recusa as matam; alusão a um pessário. Na  carta  XXII,  são  Jerônimo  fala  das  moças  "que  degustam  de  antemão  a  própria esterilidade e matam o ser humano antes mesmo de ele ser semeado": alusão a uma droga espermicida.  Quanto  ao  ciclo  menstrual,  o  médico  Soranos  prescrevia,  a  partir  de posições  teóricas,  que  as  mulheres  concebessem  logo  antes  ou  logo  após  as  regras  — doutrina que felizmente permaneceu esotérica. Todos esses procedimentos estão a cargo da mulher; não há nenhuma alusão ao coitus interruptus.

Quantos  filhos  eles  têm?  A  lei  concedia  um  privilégio  às  mães  de  três  filhos, entendendo que elas haviam cumprido seu dever, e esse número parece ter predominado; as  indicações  de  epitáfios  são  difíceis  de  interpretar  com  certeza;  os  textos,  em contrapartida, falam com particular frequência de famílias de três filhos. E falam até por provérbio. Um epigramatista quer criticar  uma  mulher  que,  por  avareza,  deixa  os  filhos  passarem  fome?  Escreverá:  "seus três rebentos". Um pregador estoico perguntará: "Acreditamos que já fizemos muito ao pôr  no  mundo,  para  assegurar  a  perpetuação  da  raça,  dois  ou  três  fedelhos?".  Tal malthusianismo  constituía  uma  estratégia  dinástica;  como  escreveu  Plínio  a  um  de  seus correspondentes,  quando  já  se  tem  um  rebento,  é  preciso  encontrar  um  genro  ou  uma nora  abastados  para  o  segundo.  Não  se  desejava,  portanto,  fragmentar  as  sucessões.  É verdade que a moral antiga ignorava tais cálculos e, ainda na época de Plínio, era a moral de  certos  pais  de  família  antiquados  que  "não  deixavam  em  repouso  a  fecundidade  da esposa,  embora  em  nosso  tempo  a  maioria  das  pessoas  julgue  que  um  filho  único constitui  já  uma  carga  pesada  e  é  uma  vantagem  não  se  carregar  de  posteridade".

Mudariam as coisas à medida que se aproxima o final do século II de nossa era, no qual se instala  a  moral  estoica  e  cristã?  O  orador  Frontão,  mestre  de  Marco  Aurélio,  "perdeu cinco  filhos"  por  mortalidade  juvenil;  devia  ter  muitos  mais;  o  próprio  Marco  Aurélio teria nove filhos e filhas. Depois de três séculos renascia a idade de ouro em que Cornélia, mãe dos Graco e mulher exemplar, dera à pátria doze filhos.

 EDUCAÇÃO

Assim que vem ao mundo, o recém-nascido — menino ou menina — é confiado a uma  nutriz:  havia  passado  a  época  em  que  as  mães  amamentavam  os  próprios  filhos. Porém a "nutriz" faz muito mais que dar o seio: a educação dos meninos até a puberdade é  confiada  a  ela  e  a  um  "pedagogo",  também  chamado  "nutridor"  (nutritor,  tropheus), encarregado  de  sua boa  educação;  o  de  Marco  Aurélio  ensinou-o  a  cuidar  de si  mesmo com  as  próprias  mãos  e  a  não  se  apaixonar  pelas  corridas  do  circo.  As  crianças  vivem com eles, com eles tomam suas refeições, porém jantam com os pais e seus convidados — jantar que tinha algo de cerimonial. Nutriz e pedagogo sempre contarão muito;  Marco  Aurélio  falará  com  a  conveniente  devoção  de  seu  pai  natural,  do  pai adotivo e do "nutridor", e o imperador Cláudio conservará um ódio duradouro por seu pedagogo, que abusava do chicote. Quando uma moça se casa, sua mãe e sua nutriz vão juntas, na noite de núpcias, dar os últimos conselhos ao jovem esposo. Pedagogo, nutriz e irmão  de  leite  são  uma  vice-família,  livre  para  ter  todas  as  indulgências,  até  mesmo  as complacências, e ignorar a lei do mundo; para assassinar a mãe, Agripina, Nero terá seu "nutridor"  como  cúmplice; abandonado  por  todos,  acuado  pelos  súditos  revoltados, encontrará consolo somente em sua nutriz; ela o sepultará após seu suicídio, com a ajuda de  Acteia,  concubina  do  imperador.  E  no  entanto  Nero  se  portou  severamente  com relação a seu irmão de leite, pelo qual deveria ter sentido também algum afeto. Ao fazer um  sermão  sobre  o  amor  da  família,  um  filósofo  estoico  explicou  que  esse  amor corresponde  à  Natureza,  que  é  também  a  Razão,  e  que,  por  conseguinte,  as  crianças  amavam a mãe, a nutriz e o pedagogo.

Nas casas ricas, a vice-família saudavelmente mora no campo, longe das tentações, sob  a  direção  de  uma  velha  e  severa  parenta.  "A  suas  virtudes  comprovadas  e  seguras confiava-se  toda  a  progênie  da  mesma  casa.  Ela  conduzia  os  estudos  e  os  deveres  das crianças e também suas brincadeiras e distrações". Assim foram criados César e Augusto; o  futuro  imperador  Vespasiano  "foi  criado  sob  a  direção  da  avó  paterna  nas  terras  de Cosa",  embora  ainda  tivesse  mãe  viva.  Com  efeito,  uma  avó  paterna  devia  ser  severa, enquanto à avó materna cabia ser indulgente; a mesma divisão existia entre os tios, cujos nomes eram respectivamente símbolos de severidade e de complacência.

A realidade de uma educação pode não corresponder ao desejo dos educadores, e um professor romano nos dá um indício; fala, é bem verdade, com particular severidade, como exige sua profissão (em Roma, os filósofos, e por vezes também os retóricos, têm um  lugar  à  parte  na  sociedade,  um  pouco  como  os  padres  entre  nós).  Segundo  ele,  a criança,  que  supõe  educada  na  casa  dos  pais,  recebe  do  ambiente  apenas  lições  de "indolência"; usa vestes tão luxuosas quanto as dos adultos e, como estes, desloca-se em liteiras; os pais se extasiam com suas palavras mais impudentes; nos jantares, ela ouve brincadeiras ousadas,  canções  levianas;  percebe  que  existem  na  casa  concubinas  e  favoritos.  Mais adiante  veremos  como  em  Roma  as  mentes  estavam  impregnadas  de  uma  doutrina  de senso  comum  que  condenava  como  pervertido  e  decadente  o  mundo  tal  como  se encontrava;  considerava-se  que  a  moralidade  consistia  menos  em  amar  a  virtude  ou  em habituar-se a ela do que em ter a energia de resistir ao vício; a base do indivíduo era, pois, uma força de resistência. Teoricamente a educação tinha por objetivo temperar o caráter a

tempo para que os indivíduos pudessem resistir, depois de adultos, ao micróbio do luxo e da decadência, que, devido ao vício dos tempos atuais, está em toda parte; mais ou menos como  hoje  fazemos  com  que  os  adolescentes  pratiquem  esporte  porque  sabemos  que passarão  o  resto  da  vida  sentados  num  escritório.  Ora,  praticamente,  o  contrário  da indolência  é  a  atividade,  a  industria,  que  fortifica  os  músculos  do  caráter,  enquanto  a indolência os atrofia; Tácito nos fala, por exemplo, de um senador proveniente "de uma família plebeia, porém muito antiga e considerada; agradava mais por algo de bonachão que pela energia, e no entanto o pai o criara com severidade".

Somente a severidade, que aterroriza os apetites tentadores, desenvolve o caráter. Também, diz Sêneca, "os pais forçam o caráter ainda flexível dos bebês a suportar o que lhes fará bem; podem chorar e se debater que mesmo assim são rigidamente enfaixados, com medo de que seu corpo ainda imaturo se deforme ao invés de crescer direito e em seguida se lhes inculca a cultura liberal  recorrendo ao terror, se a recusam". Tal severidade faz  parte  do  papel  do  pai,  enquanto  a  mãe  defende  a  causa  da  indolência;  uma  criança bem-educada só dirige a palavra ao pai chamando-o de "senhor" (domine). Os novos-ricos imitavam bem esse costume aristocrático. A distância entre pais e filhos era vertiginosa. O professor  de  retórica  ao qual  já  nos  referimos  perdeu  um  filho  de  dez  anos  a  quem adorava  e  que,  conforme  escreveu,  o  preferia  às  nutrizes  e  à  avó  que  o  educavam;  esse filho  estava  destinado  à  mais  bela  carreira  de  eloquência  judiciária  (tal  gênero  de eloquência  constituía  então  a  parte  vistosa,  mundana,  agitada  da  vida  literária,  como  o teatro entre nós); os dons excepcionais do filho justificam o luto público do pai. Como se sabe, o pretenso instinto materno ou paterno mistura casos individuais de amor de eleição (que  tem  tantas  oportunidades  de  se  produzir  entre  pai  e  filho  quanto  entre  dois indivíduos  quaisquer  reunidos  pelos  acasos  da  existência)  e  casos  sem  dúvida  mais numerosos de sentimento parental "induzido" pela moral reinante; esta última ensinava os pais  a  amar  os  filhos  como  os  continuadores  do  nome  da  família  e  da  grandeza  da linhagem.  Sem  vãos  enternecimentos.  Era  legítimo  chorar  a  ruína  das  esperanças familiares.

 ADOÇÃO

Nosso professor tinha mais uma razão para chorar seu filho bem-amado: um alto personagem, um cônsul, acabara de adotá-lo, o que prometia ao menino uma fulgurante carreira pública. Na verdade, a frequência de adoções constitui outro exemplo do pouco naturalismo da "família" romana. Visivelmente dava-se uma criança em adoção como se dava uma filha em casamento, sobretudo em se tratando de um bom casamento. Há dois meios de se ter filhos: gerando-os ou adotando-os; este podia ser um modo de impedir a extinção de uma estirpe e também de adquirir a condição de pai de família exigida por lei dos  candidatos  a honras  públicas  e  aos  governos das  províncias:  tudo  que  o casamento propicia  é  propiciado  igualmente  pela  adoção.  Assim  como  um  testador  tornava  seu continuador  aquele  a  quem  instituía  herdeiro,  assim  também,  ao  adotar  um  jovem  bem escolhido,  elegia-se  um  sucessor  digno  de  si.  O  futuro  imperador  Galba  é  viúvo  e  seus dois  filhos  morreram;  desde  algum  tempo  ele  percebeu  os  méritos  de  um  jovem  nobre  chamado  Pisão;  redige  seu  testamento,  instituindo-o  herdeiro,  e  acaba  por  adotá-lo. Também se podia adotar mesmo  tendo  filhos  vivos,  como  fez  Herodes  Atico.  Os  textos  históricos  falam  da existência de uma adoção por testamento, da qual não há vestígio nos textos jurídicos. O mais  belo  caso  de  herança  combinada  com  adoção  é  o  de  um  certo  Otávio,  que, transformado em filho e herdeiro de César, um dia se tornará, por esse meio, o imperador Otávio Augusto. Outras vezes, a adoção, como as bodas, constituía um meio de controlar o  movimento  dos  patrimônios;  um  sogro  que  aprecia  a  deferência  com  que  o  genro  o trata adota tal genro quando este, ficando órfão, recebe uma herança: eis que o sogro se torna  dono  dessa  herança,  pois  colocou  sob  seu  poder  o  genro  transformado  em  filho. Em  troca,  propiciará  ao  filho  adotivo  uma  bela  carreira  no  Senado:  a  adoção  regula também a carreira.

Essas  crianças  deslocadas  como  peões  no  tabuleiro  de  xadrez  da  riqueza  e  do poder  não  são  criaturinhas  amadas  e  mimadas:  tais  cuidados  competem  à  criadagem.  A criança aprendeu a falar com a nutriz; nas casas ricas, a nutriz era grega, para que a criança aprendesse no berço essa língua da cultura. Ao pedagogo cabia ensiná-la a ler.

ESCOLA

A alfabetização constituía um privilégio da classe alta? Três certezas decorrem dos papiros do Egito: havia iletrados que faziam os outros empunharem a pena; havia gente do  povo  que  sábia  escrever;  havia  textos  literários,  clássicos,  nos  mais  ínfimos  vilarejos (eis aí essa "cultura" da qual tanto se orgulhava o mundo antigo). Os livros dos poetas em voga  imediatamente  chegam  ao  fim  do  mundo:  a  Lyon.  O  resto  são  nuanças  (bem  o Babem  os  historiadores  do  Ancien  Régime).  Num  romance,  um  ex-escravo  orgulha-se  de saber  ler  as  maiúsculas;  portanto,  não  conseguia  ler  o  texto  dos  livros,  dos  papéis particulares, dos documentos, mas podia decifrar as placas das lojas ou dos templos e as tabuletas  referentes  a  eleições,  espetáculos,  casas  de  lazer  ou  leilões,  sem  esquecer  os epitáfios. Por outro lado, se os preceptores só eram acessíveis às famílias muito ricas, havia, diz Ulpiano, "nas cidades e nos  burgos  professores  que  ensinavam  os  rudimentos  da  escrita";  a  escola  era  uma instituição  reconhecida,  o  calendário  religioso decidia as  férias escolares,  e  o período  da manhã era o dos estudantes. Descobrimos uma porção de documentos escritos pela mão de  gente  simples:  contas  de  artesãos,  cartas  ingênuas,  grafites  murais,  tabuinhas  de feitiços… Só que escrever para si mesmo é uma coisa, e saber escrever para alguém mais culto é outra: para isso precisa-se conhecer o belo estilo e, para começar, a ortografia (que os grafites ignoram). De modo que, para redigir um documento público, uma petição, até um  simples  contrato,  gente  que  a  rigor  só  sabia  ler  e  escrever  sentia-se  "iletrada"  e procurava  um  escrivão  público  (notarius).  Uma  parte  mais  ou  menos  considerável  das crianças  romanas  frequentou  a  escola  antes  de  completar  doze  anos,  as  meninas  não menos  que  os  meninos  (confirma-o  o  médico  Soranos);  melhor  ainda,  as  escolas  eram mistas.

Aos  doze  anos  os  destinos  de  meninos  e  meninas  se  separam,  assim  como  os destinos  dos  ricos  e  dos  pobres.  Somente  os  meninos,  se  pertencem  a  uma  família abastada,  continuam  a  estudar:  sob  o  chicote  de  um  "gramático"  ou  professor  de literatura,  estudam  os  autores  clássicos  e  a  mitologia  (na  qual  não  se  acreditava absolutamente,  mas  cujo  conhecimento  identificava  as  pessoas  cultas);  como  exceção, algumas meninas contavam com um preceptor que lhes ensinava os clássicos. Cabe dizer que  aos  doze  anos  uma  menina  estava  na  idade  núbil,  que  algumas  eram  dadas  em casamento nessa tenra idade e que o casamento se consumava; em todo caso, aos catorze anos  a  menina  era  adulta:  "Os  homens  então  a  chamam  de  'senhora'  [domina,  kyria],  e, vendo que nada mais lhes resta senão partilhar o leito de um homem, elas se põem a se enfeitar  e não  têm  outra  perspectiva";  o  filósofo  que  escreveu  essas  linhas conclui  "que seria  melhor  fazê-las  sentir  que  nada  as  tornará  mais  estimáveis  do  que  se  mostrarem pudicas e reservadas". Nas famílias ricas, a partir desse momento as moças são encerradas na prisão sem grades dos trabalhos de fuso, que serve para demonstrar  que  elas  não  passam  o  tempo  fazendo  o  que  não  devem.  Se  uma  mulher adquire  uma  cultura  de  salão  —  sabe  cantar,  dançar  e  tocar  um  instrumento  (canto, música e dança estavam ligados) —, tais talentos serão louvados e apreciados, porém logo se  acrescentará  que  ela  é  uma  mulher  honesta.  Por  fim,  cabe  ao  marido  eventualmente cuidar da educação de uma jovem de boa família. Um amigo de Plínio tinha uma esposa de cujo talento epistolar se vangloriava: ou o marido é o verdadeiro autor dessas cartas, ou  então  soube  formar  o  belo  talento  dessa  "moça  que  ele  esposou  virgem",  e, consequentemente,  esse  talento  constitui  um  mérito  seu.  Em  contrapartida,  a  mãe  de Sêneca foi impedida pelo marido de estudar filosofia, pois ele considerava tal matéria um caminho para a libertinagem.

Durante esse tempo, os meninos estudam. Para se tornarem bons cidadãos? Para aprender  seu  futuro  ofício?  Para  adquirir  os  meios  de  compreender  alguma  coisa  do mundo  em  que  vivem?  Não,  mas  para  adornar  o  espírito,  para  se  instruírem  nas  belas-letras.  Constitui  estranho  erro  acreditar  que  a  instituição  escolar  se  explica,  através  dos séculos,  pela  função  de  formar  o  homem  ou,  ao  contrário,  adaptá-lo à  sociedade;  em Roma não se ensinavam matérias formadoras nem utilitárias, e sim prestigiosas e, acima de  tudo,  a  retórica.  É  excepcional  na  história  que  a  educação  prepare  o  menino  para  a vida e  seja  uma  imagem  da  sociedade  em miniatura  ou em  germe; no mais das  vezes, a história da educação é a história das ideias sobre a infância e não se explica pela função social da educação. Em Roma decorava-se com retórica a alma dos meninos, assim como no  século  XIX  vestia-se  essas  criaturinhas de  marinheiros  ou  militares;  a  infância  é  um período que se disfarça para embelezar e fazê-la encarnar uma visão ideal da humanidade.

Deixamos de lado a educação nas partes gregas do Império, que diferia em vários aspectos.  Aqui  devemos  acreditar  em  Nilsson;  enquanto  a  escola  romana  é  produto  de importação  e,  como  tal,  permanece  separada  da  rua,  da  atividade  política  e  religiosa,  a escola grega constituía parte da vida pública. Tinha por cenário a palestra e o ginásio, pois este era um  segundo  lugar  público  aonde  todos  podiam  ir  e  onde  não  se  fazia  apenas  ginástica. Mas também se fazia ginástica, e a meu ver a grande diferença entre a educação grega e a educação  romana  é  que  o  esporte  ocupava  a  metade  da  primeira;  mesmo  as  matérias literárias (a língua materna, Homero, a retórica, um pouco de filosofia e muito de música, ainda  sob  o  Império)  eram  ensinadas  num  canto  do  ginásio  ou  da  palestra.  A  esse ensinamento,  que  se  prolongava  até  cerca  dos  dezesseis  anos,  sucediam-se  sem interrupção um ou dois anos de efebia, cujo programa era o mesmo.

Além do caráter público, da música e da ginástica, havia outra diferença. Nenhum romano  de  bom  nascimento  pode  se  dizer  culto  se  não  aprendeu  com  um  preceptor  a  língua e a literatura gregas, enquanto os gregos mais cultos não se davam ao trabalho de aprender  latim  e  soberbamente  ignoravam  Cícero  e  Virgílio  (com  exceções  individuais, como a do funcionário Apiano). Os intelectuais gregos que, como os italianos do século XVI, iam alugar seus talentos no estrangeiro exerciam naturalmente sua sabedoria médica ou  filosófica  em  grego,  língua  de  suas  ciências;  em  Roma  acabavam  aprendendo,  pela força  do  uso,  um  pouco  de  latim.  No  final  da  Antiguidade,  os  gregos  só  passarão  a aprender metodicamente latim para fazer carreira de jurista na administração imperial.

ADOLESCÊNCIA

Aos  doze  anos  o  pequeno  romano  de  boa  família  deixa  o  ensino  elementar;  aos catorze, abandona as vestes infantis e tem o direito de fazer tudo que um jovem gosta de fazer; aos dezesseis ou dezessete, pode optar pela carreira pública, entrar no Exército — como  Stendhal,  que  aos  dezesseis  anos  resolveu  ser  hussardo.  Não  existe  "maioridade"  legal nem idade de maioridade; não há menores, e sim impúberes, que não mais o são quando o pai ou o tutor considera que estão na idade de tomar as vestes de homem e  cortar  o  primeiro  bigode.  Um  filho  de  senador,  por exemplo:  aos  dezesseis  anos completos, torna-se cavaleiro; aos dezessete, ocupa seu primeiro cargo público: cuida da polícia de Roma, manda executar os condenados à morte, dirige a Moeda; sua carreira não se  deterá  mais,  ele  será  general,  juiz,  senador.  Onde  aprendeu?  No  exercício  de  suas funções.  Com  os  mais  velhos?  Com  os  subordinados,  melhor  dizendo:  tem  bastante arrogância  nobiliária  para  dar  a  impressão  de  que  decide  quando  o  fazem  decidir.  Aos dezesseis  anos  esse  jovem  nobre  era  coronel,  sacerdote  do  Estado  e  já  estreara  no tribunal.

À  aprendizagem  no  exercício  das  coisas  cívicas  e  profissionais,  acrescenta-se  o estudo escolar da cultura (o povo tem uma cultura, mas não a ambição de se tornar culto); a escola é o meio dessa apropriação e, ao mesmo tempo, modifica tal cultura: começa a haver escritores "clássicos", assim como com as "leis" do turismo haverá lugares que será necessário visitar, monumentos que não se poderá deixar de ver. A escola forçosamente ensinará  a  todos  os  notáveis  atividades  prestigiosas  para  todos,  mas  que  interessam  a pouca gente, mesmo entre aqueles que admiram de longe. E, como uma instituição logo se considera um fim em si mesma, ensinará principalmente, e dirá clássico, o que é mais facilmente ensinável; desde os tempos de Atenas clássica, a retórica soube elaborar uma doutrina  mastigada  e  pronta  para  ler  ensinada.  Assim,  os  jovens  romanos  de  doze  a dezoito ou vinte anos aprendiam a ler seus clássicos, depois estudavam a retórica. E o que é a retórica?

Não  uma  coisa  útil,  que  contribui  com  algo  para  a  "sociedade".  A  eloquência  da tribuna e também a do tribunal desempenharam um grande papel na República romana, porém seu prestígio provinha muito mais do brilho literário que da função cívica: Cícero, que  não  era  filho  de  oligarca,  terá  a  rara  honra  de  ser  admitido  no  Senado  porque  seu brilho  literário  de  orador  só  podia  aumentar  o  prestígio  de  tal  assembleia.  Ainda  no Império, o público acompanhava os processos como hoje acompanhamos  a  vida  literária,  e  a  glória  dos  poetas  não  tinha  a  auréola  de  larga popularidade que cingia a fronte dos oradores de talento.

Essa  popularidade  da  eloquência  permitiu  que  a  arte  retórica  —  ou  a  eloquência com  receitas  —  se  tornasse  a  matéria  única  da  escola  romana,  depois  do  estudo  dos clássicos;  todos  os  meninos  aprendiam,  pois,  os  planos-tipo  de  discursos  judiciários  ou políticos,  desenvolvimentos-modelo,  efeitos  catalogados  (são  nossas  "figuras  de retórica"). Aprendiam, portanto, a arte da eloquência? Não, pois logo a retórica tal como era ensinada na escola se tornou uma arte à parte, com o conhecimento de suas regras. Assim,  entre  a  eloquência  e  o  ensino  da  retórica  nas  classes  houve  um  abismo,  que  a Antiguidade  não  parava  de  lamentar,  ao  mesmo  tempo  que  se  deleitava.  Os  temas  de discurso  propostos  aos  pequenos  romanos  nada  tinham  a  ver  com  o  mundo  real;  ao contrário, quanto mais estapafúrdio fosse um tema, mais matéria fornecia à imaginação; a retórica  tornava-se  um  jogo  de  sociedade.  "Suponhamos  que  uma  lei  decide  que  uma mulher seduzida poderá escolher entre fazer seu sedutor ser condenado à morte e esposá-lo;  então,  na  mesma  noite,  um  homem  violenta  duas  mulheres;  uma  pede  sua  morte;  a outra  quer  esposá-lo":  esse  tema,  dado  como  exercício  de  eloquência,  propiciava  livre curso ao virtuosismo, ao gosto pelo melodrama e pelo sexo, ao prazer do paradoxo e a uma  cumplicidade  de  humor.  Passada  a  idade  escolar,  os  amadores  muito  adestrados continuavam a exercitar-se nesses jogos, em casa, diante de um auditório de connaisseurs. Essa foi a genealogia do ensino antigo: da cultura à vontade de cultura, desta à escola, e daí ao exercício escolar transformado num fim em si mesmo.

O FIM DA JUVENTUDE

Enquanto "dá a Sila o conselho de abdicar a ditadura" ou delibera sobre o que a  jovem violentada deve escolher, o pequeno romano torna-se púbere. Começam os anos de indulgência.

Todos  sabem:  mal  colocam  pela  primeira  vez  as  vestes  viris,  já  vão  tratando  de comprar os favores de uma serva ou correm para o Suburra, o bairro devasso de Roma; a menos que uma dama da alta sociedade ponha os olhos neles e tenha o capricho de torná-los menos inocentes (a liberdade de costumes da aristocracia romana equiparava-se à do nosso século XVIII). Para os médicos, Celso ou Rufo de Éfeso, a epilepsia é uma doença que  se  cura  sozinha  na  puberdade,  ou  seja,  no  momento  em  que  as  meninas  têm  a primeira  menstruação  e  os  meninos  fazem  amor  pela  primeira  vez;  o  que  significa  que puberdade e iniciação sexual são sinônimos para os meninos — a virgindade das meninas continua sacrossanta. Entre a puberdade e o casamento os meninos gozavam, portanto, um  período  em  que  a  indulgência  dos  pais  era  admissível;  Cícero,  Juvenal, moralistas severos,  e  o  Imperador  Cláudio,  em  suas  funções  de  censor,  admitiam  que  se  devia conceder  alguma  coisa  ao  calor  da  juventude.  Durante  cinco  ou  dez  anos,  o  jovem frequentava prostitutas, tomava amantes; com um grupo de adolescentes, forçava a porta de uma mulher da vida para uma violação coletiva.

A isso se acrescenta um fato folclórico semioficial: a organização dos jovens numa instituição  que  lhes  é  particular.  Bem  conhecidas  na  parte  grega  do  Império,  as associações  de  jovens  (collegia  juvenum)  existiam  também  na  metade  latina,  embora  seu papel  exato  continue  obscuro,  sem  dúvida  porque  era  múltiplo  e  ultrapassava  (já  que  a juventude tem o sangue quente) as atividades às quais se pretendia limitá-las. Esses moços praticavam  esporte,  esgrima,  caça;  sua  associação  ocorria  no  anfiteatro  para  caçar  feras, causando  grande  admiração  aos  compatriotas.  Infelizmente  não  se  atinham  a  essas louváveis  atividades  físicas,  trasladadas  da  educação  esportiva  cara  à  civilização  grega: abusavam de seu nome e de sua posição oficial para promover desordens públicas. Em Roma sempre se reconheceu como um privilégio dos rapazes ricos percorrer as ruas aos bandos, à noite, para espancar ou maltratar os burgueses e destruir um pouco as lojas (o jovem  Nero  não  faltou  a  tal  costume,  tanto  que  quase  foi  arrebentado  por  um  senador que o bando agrediu e que não reconheceu  o  imperador  entre  seus  agressores);  as  associações  de  jovens  pareciam  ter reivindicado  esse  direito  folclórico.  "Volta  de  teu  jantar  o  mais  cedo  possível,  pois  um grupo  muito  excitado  de  moços  das  melhores  famílias  saqueia  a  cidade",  lê-se  num romance  latino.  Os  mesmos  jovens  serviam  de  claque  e  torcida  para  as  equipes  de gladiadores e cocheiros entre as quais se dividiam as preferências do público, cuja paixão esportiva  ia  até  as  batalhas  organizadas.  "Alguns,  que  usualmente  se  denominam  os Jovens",  escreve  um  jurista,  "em  certas  cidades  se  tornam  torcedores  das  aclamações turbulentas  do  público;  se  sua  falta  se  limitar  a  isso,  primeiro  o  governador  deverá admoestá-los e, se reincidirem, deverão ser açoitados e soltos." São privilégios da juventude e também privilégios do grupo constituído de jovens. Na hora do casamento, acabam-se as amantes, acabam-se as relações com os favoritos: ao

menos é o que afirmam os poetas que compõem os epitalâmios e, nesses cantos nupciais, não têm o menor prurido de evocar as desordens passadas do jovem esposo, garantindo que por ser a noiva tão bela tudo isso terminou.

Tal  foi ao  menos a  primeira  moral  romana.  Mas,  ao  longo do século  II  de nossa era, pouco a pouco se difunde a nova moral, que teoricamente pôs fim à outra; fortalecida por lendas médicas (não esqueçamos que a medicina antiga tem mais ou menos a mesma seriedade  científica  da  medicina  na  época  de  Molière),  essa  moral  trata  de  confinar  a sexualidade ao casamento, até para os rapazes, e de incitar os pais a conservá-los virgens até  o  dia  das  núpcias.  O  sexo  certamente  não  é  um  pecado,  mas  um  prazer;  só  que  os prazeres constituem um perigo, assim como o álcool. Portanto, pela saúde, é necessário limitar  seu  uso  e,  ainda  mais  prudente,  abster-se  por  completo.  Não  se  trata  de puritanismo,  e  sim  de  higiene.  Já  os  prazeres  conjugais  são  outra  coisa:  confundem-se com  a  instituição  cívica  e  natural  do  casamento  e  consequentemente  constituem  um dever.  Os  germanos, que  Tácito  descreve  como  Bons  Selvagens,  "só  conhecem o  amor tardiamente,  tanto  que  as  forças  de  sua  juventude  não  se  esgotam",  como  ocorre  entre nós. Os filósofos, racionalistas por vocação, apoiam o movimento, e um deles escreve: "No que concerne aos prazeres do  amor,  é  preciso,  tanto  quanto  possível  mandar-se  puro  até  o casamento";  Marco Aurélio, imperador também filósofo, se felicitará por "haver salvaguardado a flor de sua juventude,  por  não  ter  feito  cedo  demais  ato  de  virilidade  e  ter  até  mesmo  passado do tempo"  por  não  ter  tocado  nem  em  seu  escravo  Teódoto  nem  em  sua  serva  Benedita, embora  sentisse  vontade.  Os  médicos  prescrevem  a  ginástica  e  estudos  filosóficos  para tirar  dos jovens  a  energia  venérea.  Deve-se  evitar  a  masturbação:  não  que  ela propriamente tire as forças, mas faz amadurecer muito cedo uma puberdade que será um fruto imperfeito porque precoce.

MATAR O PAI

A essa nova moralidade acrescentam-se argumentos tirados da velha moral, cívica e zelosa do patrimônio; razões que ao longo dos séculos do Império farão nascer uma nova ideia,  a  da  maioridade.  A  passagem  à  idade  de  homem  já  não  será  um  fato  físico conhecido  por  um  direito  habitual,  e  sim  uma  ficção  jurídica:  de  impúbere  passa-se  a menor  legal.  Civismo:  um  jovem  que  abusou  da  indulgência  em  relação  a  seus  prazeres terá  perdido  a  oportunidade  —  que  não  encontrará  mais  —  de  temperar  o  caráter;  o severo  imperador  Tibério,  ainda  por  cima  estoico,  rapidamente  mandou  seu  sobrinho Druso  comandar  um  regimento  "porque  ele  gostava  demais  dos  prazeres  da  capital"; casar  cedo  equivalia  também  a  um  certificado  de  juventude  não  depravada.  Os  juristas sempre se preocuparam mais com patrimônio que com moral; ora, se a herança paterna demora, um púbere de catorze anos pedirá empréstimos a juros para seus prazeres, pois tem capacidade jurídica para tanto, e acabará devorando de antemão seu patrimônio: os usurários (ou seja, em Roma, todo mundo) "procurarão créditos de jovens que acabam de vestir  a  toga  viril  mas  ainda  vivem  sob  a  rude  autoridade  do  pai".  Leis  várias  vezes renovadas decidiram então  que  aqueles  que  emprestassem  dinheiro  a  filhos  de  família  perderiam  o direito  de exigir  seus  créditos,  mesmo  após  o  falecimento  do  pai;  ninguém  poderia  pedir empréstimos  antes  de  completar  25  anos.  Havia  outras  soluções  ocasionais:  um  avô  ou um tio paterno podia manter à força um órfão púbere sob a autoridade de seu pedagogo, se  soubesse demonstrar  autoridade.  Permanecia,  no  entanto,  o  princípio  de  que  todo menino  púbere  órfão  de  pai  se  tornava  senhor  de  si  mesmo;  Quintiliano  conta,  sem grande  espanto,  que  um  nobre  de  dezoito  anos  teve  tempo  de  fazer  da  amante  sua herdeira antes de morrer na flor da idade.

Chegamos a um ponto que parece importante e talvez o seja: uma particularidade do direito romano que surpreendia os gregos era que, púbere ou não, casado ou não, um menino permanecia sob a autoridade paterna e só se tornava inteiramente romano, "pai de família", após a morte do pai; ainda mais: este era seu juiz natural e podia condená-lo à morte por sentença privada. Ademais, a capacidade de testador era quase infinita e o pai podia  deserdar  os  filhos.  Consequência:  um  jovem  de  dezoito  anos  e  órfão  institui  a amante como herdeira, enquanto um homem de idade madura não pode realizar nenhum ato jurídico com sua própria autoridade se ainda tem pai vivo: "Tratando-se de um filho de  família",  escreve  um  jurista,  "as  dignidades  públicas  nada  contam:  ainda  que  ele  seja cônsul, não terá o direito de pedir dinheiro emprestado". Essa é a teoria. E a prática? A prática é moralmente pior.

Juridicamente, sem dúvida, o poder paterno atenuava-se. Não é todo mundo que deserda os filhos, e para isso é necessário primeiro não morrer intestado; o filho privado da sucessão pode tentar anular o testamento nos tribunais; de qualquer modo, só pode ser deserdado  em  três  quartas  partes.  Quanto  à  morte  do  filho  por  sentença  paterna,  que desempenha  um  grande  papel  na  imaginação  romana,  os  últimos  exemplos  datam  de Augusto e indignaram a opinião pública. Continua verdadeiro que uma criança não tem fortuna própria e que tudo que ganha ou recebe em herança pertence ao pai. Mas o pai pode lhe conceder  certo  capital,  o  "pecúlio",  do  qual  disporá  como  quiser.  E  depois  o  pai  pode simplesmente  decidir  emancipá-lo.  O  filho,  portanto,  tinha  razões  para  esperar  e  meios para agir. Tais meios, porém, não passam de expedientes, e essas esperanças constituem outros  tantos  riscos;  psicologicamente  a  situação  de  um  adulto  com  pai  vivo  é insuportável. Ele não pode fazer um gesto sem o pai: concluir um contrato, libertar um  escravo,  elaborar  seu  testamento.  Tudo  que  possui,  a  título  precário,  é  seu  pecúlio, exatamente  como  um  escravo.  A  essas  humilhações  acrescenta-se  o  risco  de  ser deserdado, que é real.

Vamos  folhear  a  correspondência  de  Plínio:  "Fulano  instituiu  o  irmão  como  seu herdeiro universal, em detrimento da própria filha"; "Sicrana deserdou o filho"; "Beltrano, deserdado pelo pai"… A opinião pública, tão poderosa sobre os espíritos da classe alta, veremos,  não  censurava  automaticamente:  julgava.  "Tua  mãe  teve  uma  razão  para  te deserdar que era legítima", escreve o mesmo Plínio. Sabemos qual é a demografia de toda sociedade  antes  de  Pasteur:  a  mortalidade  multiplica  os  viúvos,  as  viúvas,  as  mulheres mortas de parto e os novos casamentos; e, como o pai tem liberdade quase total de testar, os filhos do primeiro leito temem uma madrasta.

Servidão final: o filho não pode fazer carreira sem o consentimento do pai; sempre poderá  ser  nomeado  senador,  se  for  nobre,  e,  sendo  um  simples  notável,  senador  do Conselho  de  sua  cidade.  Mas  como  pagar  as  consideráveis  despesas  que  tais  honras exigiam  numa  época  em  que  todo  homem  público  fazia  carreira  pelo  pão  e  pelo  circo? Assim, ele só tratará de se tornar senador ou conselheiro com ordem do pai, que arcará com as despesas necessárias usando o patrimônio da família. Em muito edifício público da África romana, construído à custa dos conselheiros a título de suas honras, lê-se uma inscrição  informando  que  o  pai  despendeu  o  dinheiro  pelo  filho.  A  consequência  disso era que o pai decidia soberanamente entre os filhos; o número de postos no Senado e nos Conselhos das cidades era limitado, e poucas famílias podiam pretender que mais de um de seus filhos neles ingressassem; além do mais, a despesa era considerável. O filho que teria a custosa honra de fazer carreira era aquele que  o  pai  escolhesse;  não  se  deixava  de  exaltar  o  sacrifício  dos  outros,  felizes  por  cederem lugar  ao  irmão.  Cabe  esclarecer  que  o  direito  de  primogenitura  não  existia;  em contrapartida, o costume ensinava os mais novos a se curvarem à anterioridade dos mais velhos.

TESTAMENTO

A morte do pai anunciava a herança dos filhos, exceto azar, e, em todo caso, o fim  de uma espécie de escravidão; os filhos tornavam-se adultos e a filha, se não fosse casada ou  divorciada,  tornava-se  herdeira,  livre  para  casar-se  com  quem  bem  quisesse  (pois  o consentimento das moças ao casamento, requerido pelo direito, ao mesmo tempo sempre era  pressuposto  pelo  direito,  tanto  que  a  filha  só  tinha  de  obedecer  ao  pai).  Ainda  era preciso que a herdeira não caísse sob outra autoridade, a do tio paterno; essa severa figura procurará proibi-la de ter amantes secretos e a ocupará nos trabalhos forçados da roca e do fuso. O poeta Horácio ternamente as lamenta.

Assim,  não  nos  surpreenderemos  com  a  obsessão  pelo  parricídio  e  sua  relativa freqüência: era um grande crime razoavelmente explicável, e não um prodígio freudiano. "Durante as guerras civis e suas proscrições", conta o historiador Veleio, época em que choviam as denúncias, "a lealdade das esposas foi máxima, a dos libertos foi média, a dos escravos não foi nula e a dos filhos foi igual a zero, tanto é duro suportar o adiamento de uma esperança!"

Os  romanos plenamente  homens  são,  portanto,  só  os  cidadãos  livres  que,  órfãos ou emancipados, são "pais de família", casados ou não, donos ou não de um patrimônio. O pai de família tem um lugar à parte na moral vigente, e Aulo Gélio diz isso, ao relatar a seguinte discussão: "'Deve-se sempre obedecer ao pai? Alguns respondem: 'Sim, sempre'. Mas e se vosso pai vos mandar trair a pátria? Outros respondem sutilmente que não  obedecem  jamais,  pois  é a  moral  que  se  obedece,  moral cujas  ordens  ele  exprime". Aulo Gélio replica inteligentemente que existe uma terceira ordem de coisas, que não são nem impostas pelo bem nem imorais, tais como casar ou permanecer celibatário, abraçar este ou aquele ofício, ir ou ficar, procurar ou não as honras públicas. É sobre essa terceira ordem de coisas que se exerce a autoridade paterna.

A autoridade da família e a dignidade social dos pais de família têm o testamento como  arma  e  como  símbolo.  Pois  o  testamento  constitui  uma  espécie  de  confissão  em que o homem social se revelava inteiramente e pelo qual seria julgado. Havia nomeado como herdeiro o mais digno? Legara alguma coisa a todos os seus fiéis?  Falava  da  mulher  em  termos  que  fossem  para  ela  um  certificado  de  boa  esposa? "Quanto tempo passamos a deliberar em nosso foro íntimo para saber a quem legaremos os  alguma  coisa  e  quanto!  Nunca  vasculhamos  tanto  nossas  decisões  como  nesse momento." Todos os membros da família, próximos ou distantes, devem receber alguma coisa,  e  também  o  pessoal  da  casa:  os  escravos  que  o  merecem  são  libertados  pelo testamento, os libertos que permaneceram fiéis e os clientes não são esquecidos. A leitura pública do testamento era o acontecimento público do momento, pois as disposições  e  heranças  não  eram  tudo  e  o  testamento  adquiria  valor  de  manifesto.  O costume  de  designar  "herdeiros  substitutos",  que  não  tocariam  num  centavo  (a  não  ser que o herdeiro principal recusasse a sucessão), permitia escrever todos os nomes próprios que  o  testador  quisesse,  cada  qual  aquinhoado  com  uma  fração  teórica  da  herança,  que dava  a  medida  da  estima  do  defunto  em  relação  a  cada  um  deles.  O  falecido  também podia  insultar  post-mortem  aqueles  a  quem  havia  detestado  secretamente  e  reconhecer  os valores:  os  nobres  tinham  o  hábito  de  deixar  um  legado  aos  grandes  escritores  do momento.  Plínio,  então  um  orador  célebre,  que  ia  a  todas  as  aberturas  de  testamento, observava com satisfação que sempre lhe legavam a mesma soma destinada a seu rival e amigo, o orador Tácito (ele não mente, e os epigrafistas encontraram um testamento em que é nomeado). A política imiscuía-se: um senador sempre tido como homem sério perdeu tal reputação por causa de seu testamento, no qual tecia loas a Nero (evidentemente  para  evitar  que  lhe  anulassem  o  testamento  e  confiscassem  a  sucessão); outros,  ao  contrário,  insultavam  os  todo-poderosos  ministros  do  soberano  e  até  se referiam em termos pouco amenos ao próprio imperador, quer este se chamasse Nero ou Antonino  Pio…  Um  testamento  era  algo  tão  grandioso,  do  qual  todos  se  orgulhavam tanto, que muitos dificilmente resistiam ao desejo de iniciar a leitura depois de beber, para agradar de antemão aos legatários e se fazerem estimar.

Sabemos  da  importância  que  em  outras  sociedades  tinham  o  ritual  do  leito  de  morte  e  o  das  últimas  palavras.  Em  Roma  substituíam-nos  o  testamento,  em  que  se manifestava  o  indivíduo  social,  e  depois,  como  veremos,  o  epitáfio,  em  que  se manifestava o que devemos chamar de indivíduo público.

Texto de Paul Veyne em "História da Vida Privada - Volume 1 Do Império Romano ao Ano Mil", tradução de Hildegard Feist, Companhia das Letras,São Paulo, 2009, excertos pp.23-43. Digitalizado, adaptado e ilustrado por Leopoldo Costa.

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