9.26.2018

O CICLO DO GADO



Os ciclos do Pau Brasil e do Açúcar caracterizaram o transoceanismo dos colonos portugueses, os quais cuidavam auferir o máximo para retornarem à Metrópole "Ricos e honrados". Desinteressados de qualquer tentativa de fixação em regiões mais afastadas do mar, durante longo tempo permaneceram no litoral sobretudo Leste e Nordeste, o que suscitou a irônica observação de Frei Vicente do Salvador: “Sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de arranhando como caranguejos". Realizando-se, contudo, as grandes entradas e bandeiras, devassou-se o misterioso sertão e nele se incrementou a criação de gado, atividade essencialmente fixadora de populações, e, consequentemente, poderoso fator de povoamento.

Colonos e bandeirantes procuraram levar para os seus agrupamentos iniciais o gado de que precisavam para o amanho da terra, o trabalho das minas e o sustento diário, não contando a sua validade nas indústrias nascentes, como a do açúcar. Introduzido em diversas capitanias hereditárias, bem assim na própria sede do governo-geral. durante o século XVI (procedia quase sempre das ilhas portuguesas do Atlântico, sobretudo Cabo Verde), espalhou-se pela costa baiana dado o esforço de grandes criadores, como Garcia d’Ávila, estendendo- se depois ao Recife, onde se notabilizaram como pecuaristas os Dias d'Ávila, descendentes daquele pioneiro. Conquistado o Sergipe nas últimas décadas do século XVI, nele se delimitaram logo inúmeras sesmarias, utilizadas para a criação de gado: do Recôncavo Baiano multiplicaram-se os currais em direção ao São Francisco, atingindo-se, com a transposição deste rio, os afluentes da margem direita do Parnaíba e depois o interior do Maranhão. Simultaneamente, de Pernambuco avançou outra serie de fazendas de criação, chegando também ao Piauí e interior aranhense através das serras de Borborema, Cariris e Ibiapaba. Destarte, em 1711 Antonil-Andreoni registrava mais de 500 currais nos sertões da Bahia, com cerca de 500.000 cabeças de gado; e, nos currais dependentes de Pernambuco, maior número de currais, com aproximadamente em seguida outras regiões, estenderam-se os currais pelo norte de Minas, o curso médio do São Francisco (durante muito tempo cognominado o "rio dos currais" e o rio das Velhas. Conforme ensina o professor Hélio Vianna, a maior significação do Ciclo do Gado " é a que lhe advém da circunstância de ter proporcionado a ligação geográfica dos movimentos de expansão partidos da Bahia e de São Vicente, de Pernambuco e do Maranhão. Unidos, no norte de Minas, no primeiro caso, no interior do Piauí, no segundo, por intermédio dos 'passadores de gado', processou-se a verdadeira união terrestre do Sul, Centro, Leste e Nordeste". Em outros termos: o desenvolvimento da pecuária forçou a colonização, que com a indústria açucareira se concentrara nos litorais de São Vicente, Bahia e Pernambuco, a deslocar-se para o interior.

Por isso, no Ciclo do Gado as maiores fazendas prosperaram nos sertões nordestinos, nas caatingas nos terrados, no Vale do São Francisco, nos chapadões de Mato Grosso e de Goiás; e vários povoados nasceram da afluência do gado para venda nas feiras periódicas, entre as quais a de Pedras do Fogo, na Paraíba, e a de Feira de Santana, na Bahia. Movimentando-se, o gado conquistou o interior e alargou as fronteiras do país, em virtude de uma ocupação econômica efetiva. Como os bandeirantes do Sul, também foram os criadores os “fundadores horizontais do Brasil”. “Realmente, diz ainda o Professor Hélio Vianna, foi a criação de gado o motivo econômico da integração do Sertão à formação brasileira. Tornando fixos os novos núcleos de população, em tão grande área espalhados, forneceu-lhes a autonomia que, embora permitisse o insulamento da vida sertaneja, condicionou, também, a expansão pelo imenso território que viria unir, de modo efetivo, a dilatação litorânea antes processada pelo Leste e Nordeste, à interna, que em busca das minas de ouro se realizou pelo Centro do País". E, no Sul foi também o gado considerável elemento de fixação dos primeiros núcleos de povoamento: “Nos campos hoje paranaenses de Curitiba, Guarapuava e Palmas, nos catarinenses de Lajes, como nas Vacarias e Campanha do Rio Grande de São Pedro, os currais povoadores, aqui denominados estâncias proporcionaram a estável base econômica, necessária à estável base economica necessária à vida de novos núcleos"

As fazendas de gado estendiam-se geralmente umas  três léguas ao comprido de um rio, com cerca de meia légua de largura em cada margem.Entre uma fazenda e outra havia uma área de aproximadamente uma légua , onde não se levantavam construções, nem nada se plantava ou criava; nem nada se plantava ou criava; mantida  de comum acordo, era uma ampla divisa para evitar confusões nos rebanhos. "Adquirida a terra para uma fazenda, diz Capistrano de Abreu, o trabalho primeiro era acostumar o gado ao novo pasto o que exigia algum tempo bastante gente; depois, ficava tudo entregue ao vaqueiro. A este cabia amansar e ferrar os bezerros, curá-los das bicheiras, queimar os campos alternadamente na estação apropriada, extinguir onças e morcegos, conhecer as escolhidas pelo gado para ruminar gregariamente, abrir cacimbas e bebedouros”. O vaqueiro de que fala Capistrano não era o proprietário da fazenda em geral possuidor de várias fazendas, este visitava suas terras esporadicamente mantendo residência no litoral. Depois de quatro ou cinco anos de trabalho é que o vaqueiro começava a ser realmente pago pelos seus esforços: de quatro crias cabia-lhe uma, o que lhe proporcionava o ensejo de logo depois fundar fazenda por conta própria. "O gado vacum dispensava a proximidade da praia, diz ainda Capistrano de Abreu, pois como as vítimas dos bandeirantes (os índios) a si próprio transportava das maiores distâncias, e ainda com mais comodidade; dava-se bem nas regiões impróprias ao cultivo da cana, quer pela ingratidão do solo, quer pela pobreza das matas sem as quais as fornalhas não podiam laborar; pedia pessoal diminuto, sem traquejamento especial, consideração de alta valia num país de população rala; quase abolia capitais, capital fixo e circulante a um tempo, multiplicando-se sem interstício; fornecia alimentação constante, superior aos mariscos, aos peixes e outros bichos, de terra e água, usados na marinha. De tudo pagava-se apenas em sal; forneciam suficiente sal os numerosos barreiros do sertão" Entretanto, invadiam os criadores inclusive as regiões litorâneas, tendo a própria Metrópole proibido, por uma carta Régia de 1701, o estabelecimento de fazendas de criação numa faixa de dez léguas da costa: com isso atendia reclamações dos senhores de engenho desgostosos com os estragos que fazia o gado nos canaviais. Segundo parece, contudo, a Carta Régia de 1701 nem sempre foi respeitada. Fato econômico relevante determinado pelo Ciclo do Gado foi o relativo ao comércio externo de couros e sola, durante fase dilatada a que Capistrano denominou a Época do Couro.

Em princípios do século XVIII Antonil-Andreoni assinalou a exportação de 110.000 meios de sola para o Reino e para o Rio da Prata, no valor de 201:800$000, o que representava o quarto lugar na lista das remessas brasileiras, somente superadas pelas do açúcar, do ouro e do fumo. No último quartel do séc. XVIII assumem grande importância as “charqueadas” (estabelecimentos onde se fazia a salgadura e secagem da carne) do Rio Grande do Sul, que irão abastecer o país inteiro, substituindo, em grande parte a produção nordestina arruinada pelas secas e de qualidade inferior. A carne-seca ou “charque” era um dos elementos básicos da alimentação das classes menos favorecidas e dos escravos.

Texto organizado pelo Departamento Editorial das Edições Melhoramentos com redação de Brasil Bandecchi, Leonardo Arroyo e Ubiratan Rosa em "Novo Dicionário de História do Brasil", Editora Melhoramentos, São Paulo, 1970, excertos pp.169-171. Digitalizado, adaptado e ilustrado por Leopoldo Costa.

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