10.22.2018

AS MULHERES E OS LIVROS: VIDAS QUE SE CONTAM...

Mary Del Priore
Da cultura do impresso, um conhecido historiador deu duas definições. A primeira, clássica, apoia-se nas transformações profundas provocadas em todos os domínios da vida pública ou privada, em todos os recônditos da existência material ou espiritual pela descoberta e, posteriormente, o emprego de múltiplas e novas técnicas de reprodução de textos. Essas, evidentemente, permitiram uma circulação do escrito em escala inédita porque, ao mesmo tempo em que abaixavam o custo de fabricação do livro, multiplicando-o em mil exemplares da tiragem que substituía uma mesma e única cópia, tais técnicas abreviaram o prazo de sua produção, pois antes, os livros eram copiados à mão. Desde Gutemberg, culturas inteiras das sociedades ocidentais podem ser consideradas como culturas do impresso pois que os produtos das imprensas e das composições tipográficas não eram mais reservados, como na China ou na Coréia aos usos da administração real mas penetraram todas as escalas da pirâmide social. A segunda, diz respeito ao conjunto de gestos produzidos pela produção da escrita; a passagem da leitura oral, para a leitura silenciosa é um deles. Gesto, diga-se, que permitiu ao leitor mergulhar na intimidade radical que é a leitura, tornando-a silenciosa e visual.

A pergunta com que podemos começar a rastrear a presença das mulheres entre os livros é: onde estavam elas, entre o fim da Idade Média e o século XVIII, momento em que o ocidente cristão começa a tentar domesticar o multiplicado número de textos que o livro manuscrito colocou em circulação, colocando, igualmente em ordem o mundo do escrito? Fizeram parte do profundo e por vezes dolorido trabalho de inquietação que significou assinar um texto, uma poesia, uma obra? Quando, graças às viagens ultramarinas, dilatou-se o espaço europeu incentivando trocas comerciais e culturais, livros e outros impressos não viajam, eles também? E o que eles nos contaram sobre mulheres desta e de outras épocas? Como ajudaram a colonizar nossa terra, pelo escrito e a palavra? Houve leitoras, no Brasil? Quem foram nossas escritoras? O acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro permite a qualquer leitor ou pesquisador responder essas e outras perguntas sobre as relações entre as mulheres e o livro. Mas comecemos do começo.

Novo Mundo, velhas imagens sobre a mulher

Num livro intitulado 'A mulher na expansão ibérica portuguesa', o renomado historiador inglês Charles Boxer, narra as peripécias daquelas que partiram acompanhando seus maridos, capitães das
praças conquistadas aos mouros no norte da África Ocidental ou das que vieram como degredadas, raparigas solteiras ou prostitutas para as Américas. De mulheres leitoras ou alfabetizadas pouco fala, se não para referir-se a certo caso paradigmático: a famosa mexicana do período colonial, Soro Juana Inês de la Cruz, considerada a “mais importante figura literária da América Colonial Hispânica” . Criança precoce, de curiosidade insaciável, Juana entrou para um convento em 1667, tomando o véu dois anos depois, com a idade de dezoito anos. Intelectualmente, informa- nos Boxer, era superior ao meio em que se movia, dentro ou fora de sua cela, copiosamente fornida com uma biblioteca de 4000 volumes. Além de escrever obras poéticas, tinha excelentes noções de línguas, filosofia, teologia, astronomia e pintura, tornando-se conhecida como “a Décima Musa”. Com a idade de quatorze anos confrontou-se com os quarenta homens mais eruditos da cidade do México, surpreendendo-os. Não obstante ser muito admirada, Juana ressentia-se da própria inaptidão em levar os homens a apreciarem melhor a riqueza intelectual das mulheres em geral, “essas - que segundo ela - eram pobres almas consideradas tão ineptas”. Numa ode datada de 1683, dedicada a outra “literata”, a madrilenha Duquesa de Aveiro, Soror Juana glorifica a amiga por provar que a inteligência nada tinha a ver com o sexo (“...que probáis que no es el sexo de la inteligência parte”). Em outros conventos, na América espanhola, encontramos muitas outras mulheres afeitas aos livros e às letras. Mas e na América portuguesa?

Entre nós, sempre foram poucos e dispersos os livros, como sugerem os primeiros testemunhos deixados pelo século XVI. Informa- nos Luís Carlos Vilaltal  que o número de proprietários de livros era extremamente pequeno e que dentre os parcos exemplares que possuíam, a maioria eram referentes à religião como é o caso do Fios Sanctorum, do Floro Cristiano ou de Imagens da Vida Cristã, de Meitor Pinto, obras cuja finalidade básica era narrar a vida dos santos, vidas consideradas um exemplo a ser seguido pelos fiéis e, sobretudo, pelas devotas da Igreja católica. Quanto à literatura, nesses primeiros cem anos de colonização um romance fazia sucesso entre as mulheres leitoras que eram, como os livros, raríssimas. Trata-se de Diana, romance pastoril de autoria do poeta Jorge de Montemor, escrito cm 1559 e logo incluído no rol dos livros proibidos pela Inquisição. Conta-nos Ronaldo Vainfas, que considerado livro desonesto pelos censores do Santo Ofício, Diana narrava os amores de duas moças, sugerindo uma sensibilidade homossexual ao mesmo tempo intensa e cândida. Não a toa, foi uma das razões da perseguição do temido tribunal à esposa do contador da fazenda d’el Rei na Bahia, Paula de Siqueira. Essa, além de infamada de praticar os amores sugeridos em Diana, gabava-se: “que tinha muito gosto de lê-lo”, e por sua vontade o leria sempre, “não fosse por sabê-lo quase todo de cor”. Diana era livro obrigatório nas livrarias de senhores de engenho do Nordeste, que junto com cartas de jogar ajudavam a passar o tempo, ao som do ranger dolente do moinho do engenho.

Analisando inventários e testamentos referentes à Mariana, MG, no século XVIII, Vilalta descobriu que dentre os proprietários de bibliotecas nos quais sobressaíam-se clérigos, militares, advogados, cirurgiões e mercadores, as mulheres representavam 10,22%. E bom lembrar que o baixo índice de mulheres possuidoras de livros e afeitas à leitura encontra explicação na resistência que a educação feminina encontrava nesses tempos. Enquanto no restante da Europa, escolas públicas e paroquiais assim como conventos femininos começavam a formar leitoras, oferecendo às meninas um curriculum onde elas aprendessem, nem que minimamente, os rudimentos da escrita e da leitura entre “outras habilidades do gênero”, em Portugal, de onde vinham todas as influências que sofríamos, a instrução feminina era assunto menor. Escrito em 1532, a obra A instrução de uma mulher crista, de Juan Luís Vives, por exemplo, obra de grande repercussão entre adeptos do renascimento na Península Ibérica, apesar de defender a educação de meninas, negava-lhes o direito de serem mestras. Mulheres, admoestava o autor, não deviam ensinar porque frágeis, tagarelas e indiscretas. O conhecimento adquirido no contato com livros devia ser coisa guardada para si e não exibido em conversas com homens: “quero que aprenda para saber, não para mostrar aos outros que sabe”, martelava. Enfim, humanistas como Vives, pareciam estar mais interessados na formação da mulher cristã do que em sua educação. A historiadora Leila Algranti confirma que mesmo nos séculos XVII e XVIII, as poucas obras manuseadas por mulheres, mais tinham a ver com sua educação espiritual e moral do que com sua vida prática.

Em Portugal da primeira metade do século XVIII, diz a mesma autora, o ambiente era muito desfavorável à educação de meninas não havendo colégios nem para as filhas de nobres'  A primeira escola de meninas surge em 1782, no convento da Visitação. O preconceito contra as mulheres instruídas era bastante arraigado e as “sabichonas”, ridicularizadas. Um autor do período, o cavaleiro de Oliveira, conta que o poeta e ensaísta d. Francisco Manuel de Mello fora chamado ao convento de Odivelas por uma religiosa que não se conformava com o juízo que este fazia sobre as mulheres. A freira depois de exaustivamente demonstrar no locutório parte de seus conhecimentos perguntou-lhe: “Julga-me capaz apenas, senhor d. Francisco, de arrumar bem um baú de roupas?”. Resposta do irônico entrevistado: “Minha senhora, julgo-a em condições de poder arrumar até dois baús”! .

Quando se pensa em Ilustração portuguesa e reformas pombalinas do ensino, explica Algranti, dois nomes ganham destaque: Luís Verney (1713-92) e Antônio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1782). O primeiro, ao publicar O verdadeiro método de estudar (1746)» marcava o início do movimento das Luzes em Portugal. No final dessa obra considerada, na época, tào polêmica, o autor apresenta um modesto apêndice sobre a “Instrução das Mulheres”. O segundo, com seu Tratado para educação da mocidade, para servir de guia nas reformas propostas pelo marquês de Pombal, dedicou às meninas um brevíssimo espaço, justificando-se: a custo incluíra o assunto pois, afinal, elas teriam que educar seus filhos, irmãos c maridos. Apenas. Embora não tenham esquecido da educação feminina, ambos os autores trazem poucas contribuições no sentido de valorizar o papel da leitura ou da escrita entre as mulheres.

Oferecendo-lhes um curriculum que, se comparado ao dos rapazes, é bem reduzido, preocupam-se mais em adverti-las de que deviam ter um mínimo de educação para conversar com os maridos. A razão? Eles não precisariam mais buscar divertimentos fora. O tema, contudo, não passava desapercebido. Teresa Margarida da Silva Orta, uma brasileira que foi morar em Portugal aos cinco anos com a autora de Aventuras de Diófanes (1777), prevenia o leitor no prólogo de seu livro: “Lembra-te que é de mulher, que nas tristes sombras da ignorância suspira...”.

Somente nos finais do século XVIII é que a educação feminina começa a merecer um olhar mais favorável, olhar que é marcado pela importância da sociabilidade entre os sexos. Mulheres iniciam-se, então, nas línguas vivas, ao invés do latim, na literatura, na conversação social e leitura de obras dedicadas as boas maneiras e a etiqueta. Eram novos tempos, e a mulher educada se tornava moda na metrópole.

Na Colônia, ecos desse esforço chegavam com atraso. Quando da elaboração, em 1798, dos estatutos do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória, para freiras e meninas de família, em Recife, o bispo Azeredo Coutinho continuava afirmando que apenas as mulheres destinadas â vida religiosa deviam aprender latim e música; “pois as que iriam viver para o marido, os filhos e o governo da casa se limitavam a aprender a ler, escrever e contar, coser e bordar’.

“Ler e escrever”: a recomendação do zeloso prelado não era, todavia, novidade. Embora o ensino das primeiras letras fosse oficialmente voltado para as populações masculinas, mães imitavam as imagens de Sant’Ana, Bíblia entre as mãos, e ensinavam às suas meninas, os rudimentos da leitura. Há dezenas de testamentos do século XVII nos quais as mulheres pediam aos seus testadores e curadores de bens que ensinassem bons costumes, as primeiras orações e as primeiras letras às suas filhas. Tudo indica que sem possuir bibliotecas, ou sem ter o hábito de importar livros da metrópole, nossas avós do passado fossem capazes de ler livros sacros, vidas de santos ou de fazer contas que lhes permitissem organizar a vida doméstica. A Senhora Sant’Ana, livro aberto entre os dedos, ensinando a ler à pequena e curiosa Maria, não era considerada a protetora dos lares? Suas imagens em tamanho pequeno ou grande, enfeitava e inspirava oratórios domésticos ou altares, de Minas Gerais a Pernambuco. Em muitas delas, a representação faz crer que mãe e filha leem juntas em voz alta, ou que a Virgem repete e gesticula para sua atenta mestra . Mais. Se, como comprovou Rubens Borba de Moraes, as poucas bibliotecas particulares existentes na América portuguesa possuíam obras como as As novelas exemplares de Cervantes, o Fralsantonio, de Viluegas, ou a Historia e vida dei tacaño lhamado Buscón, romance burlesco publicado em 1626, além de cartilhas pastoris, segredos da natureza e outros, é bem provável que uma jovem mais curiosa e sabedora dos rudimentos da leitura, tenha manuseado ou devorado tais volumes.

Em todas as culturas é preciso tirar a matéria dos sonhos de algum lugar. E se essa matéria não nascia da leitura de livros impressos, ela pode perfeitamente ter saído de folhetos de cordel - os chamados pliegos sueltos - importados às toneladas da Península Ibérica. Histórias apaixonantes como a da Princesa Magalona, romance de fidelidade e amor inabalável, recheado de cenas de torneios, viagens, saudades, prisão, cativeiro, caridade e final apoteótico, faziam sonhar as mulheres do séculos XVI e XVII. A Porcina, por exemplo, era o elogio da casta, fiel e sofredora  esposa, tudo enfrentando para tornar-se digna do nome ilustre de “mulher casada”. Tais novelas em verso, segundo Luís da Câmara Cascudo eram contadas por mulheres nos serões noturnos, nos quais fiavam ou costuravam, para enganar o tempo. O isolamento da vida familiar, as raríssimas saídas noturnas alimentavam o hábito de ler à luz da candeia enquanto se trabalhava nas obras manuais ou se aguardava o sono chegar: “e uma mulher da casa, já velha, que vira e ouvira muitas cousas, por mais anciã, dizia sempre que a ela pertencia aquele ofício”.

Que outras mulheres liam? As freiras, certamente. Madre Jacinta de São José, fundadora do convento de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XVIII, gostava de obras místicas, livros sobre a vida exemplar dos santos, coleções de orações, ladainhas e novenários. Seguia, portanto, a risca as advertências de Santa Teresa presentes nas Constituições do Carmelo: “Cuide a priora para que haja bons livros [...] porque é tão importante para o sustento da alma como o comer para o corpo”. No Recolhimento da Divina Providência, em São Paulo, à mesma época, as freirinhas e as mulheres ai recolhidas percorriam as páginas do Tesouro dos cristãos. Exercícios de Piedade, Diretório de oração mental. Instrução crista além das obras da já mencionada mexicana, soror Juana Ines de La Cruz.

O mais impressionante todavia, foi que dos conventos coloniais brotou a primeira obra escrita por uma africana. Fundadora do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto na capital, Rosa Egipcíaca da Vera Cruz, ex-escrava procedente da Costa da Mina e ex-prostituta reuniu centenas de páginas manuscritas de um edificante livro: Sagrada Teologia do Amor de Deus, Luz Brilhante das Almas Peregrinas, lastimavelmente queimado às vésperas de sua detenção pelo Santo Ofício da Inquisição. A pioneira escritora negra desapareceu, em 1761, nos cárceres da temida instituição. Duas autoras coloniais, merecem destaque: Angela do Amaral Lisboa, (1725-1753) cega de nascimento, considerada a primeira brasileira a ter seus trabalhos impressos.

Protegida do governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire, teve seus versos compostos na tipografia de curta duração instalada durante seu governo. Rita Joana de Souza (1696-1718), pernambucana de Olinda, deixou inéditos dois trabalhos - um de história e outro de filosofia - escritos quando tinha menos de 22 anos.

Virando as páginas, mudando a história...

Sabe-se que mesmo no século XIX, a precariedade dos centros educativos, a instrução primária de curta duração e má qualidade e o estado de ignorância em que as mulheres eram mantidas foram alvo de críticas de viajantes estrangeiros, vindos de países onde as diferenças de educação entre os gêneros quase não mais existia. A ênfase na vida doméstica e o escravismo só faziam agravar o “ritmo lento e pouco imaginativo no qual se desenrolava a vida das senhoras no Brasil”. O inglês John Mawe, por exemplo, nelas acusava a falta de educação e de recursos de espírito além dos conhecimentos superficiais. Segundo o mesmo observador, ocupavam-se de trabalhos leves que nada tinham a ver com o que se aprendia na escola. Ao contrário, a instrução poderia colocar em risco o esquema de controle sobre esposas e filhas cujo apetite intelectual deixava a desejar; não deveriam dedicar-se à leitura, nem precisavam escrever porque “poderiam fazer mau uso da arte”.

Lindley tampouco as via ler: “poucas mulheres podem ler”, anotava, taxativo. Elizabeth Agassiz, confirmou que no Norte Amazônica, elas deixavam escoar uma existência fanada, “sem livros, nem cultura de qualquer espécie”. Um naturalista americano, Herbert H. Smith, anotou que na segunda metade do século Dezenove, pais sensatos reclamavam da falta de educação de suas filhas. Tais críticas, contudo, não elucidam se nossas avós já sabiam ler ou não. E muito provável que não tivessem um padrão de educação ideal, tal como já existia na Europa ou nos Estados Unidos, com múltiplas disciplinas e sem diferenças quanto à educação que era dada aos homens.

Mas nada, contudo, as impedia de saber ler. As escolas para meninas de elite começavam a multiplicar-se. Em 1814, anúncios na Gaveta do Rio, indicavam a presença de professores particulares que as ensinavam “ler, escrever e contar”. De passagem por Recife, o francês Tollenare observou que os preconceitos sobre a educação feminina começavam a diminuir. Abertas para as influências europeias - leia-se, as modas e os modismos - as jovens educadas por freiras não se contentavam mais em aprender só “a costurar c a ler”. No Rio de Janeiro, livros eram oferecidos em lojas nas quais também, comerciava-se toda a sorte de quinquilharias: cartas de jogar, cera da índia, tinta de escrever, estampas e desenhos, lustres, encerados e tapetes, vidros da Boêmia, imagens sacras e móveis europeus. Eram livros de pintura, de viagens, atlas, dicionários históricos, geográficos e mitológicos junto com xailes, leques e objetos de prata. É de se imaginar que as compradoras de tais artigos tão femininos, acabassem por manuseá-los. O número da Gazeta do Rio de Janeiro, anunciava por sua vez um produto irresistível: leitoras interessadas em magia poderiam achar livros sobre a matéria “na loja da Gazeta”. Entre outros, a Defesa de Cecília Faragó acusada de feiticeira por 1$280, o Breve tratado sobre as ações do Demônio, por 1$280, a 'História das Imaginações Extravagantes' de Oufle, o célebre mago francês por 2$400.

De passagem pelo Brasil em 1822, a inglesa Maria Graham pode travar contato com uma dessas discretas mulheres leitoras. Uma delas, a jovem Dona Carlota, filha, filha do poderoso Brás Carneiro Leão e de Dona Ana Francisca Maciel da Costa, baronesa de São Salvador de Campos de Goitacases, especial por “seu talento e cultura acima de suas companheiras”, levou a viajante a conhecer a biblioteca do desembargador da Relação do Rio de Janeiro, composta por livros de direito, história e literatura geral, principalmente inglesa e francesa. “Travei conhecimento —conta-nos a viajante - com diversos autores portugueses e Dona Carlota, que lê admiravelmente bem, fez-me o favor de ler alguns dos mais belos versos de Dinís e emprestar-me suas obras”. Referia-se a Antônio Dinís da Cruz e Silva. Outras mulheres que lhe chamaram atenção foram a esposa do ministro da Fazenda Manuel Jacinto, “the most pleasant woman ” e a Marquesa de Aguiar, considerada “bem educada, para uma portuguesa”. A biblioteca de José Bonifácio, “provida de livros em todas as línguas”, impressionou-a vivamente e com a imperatriz Dona Leopoldina, no dia dos anos de D. Pedro, diz ter conversado “um bom pedaço (...) sobre autores ingleses e especialmente acerca das novelas escocesas”.Embora possuidora de uma imensa biblioteca com obras de naturalistas e relatórios de viajantes, D. Teresa Cristina era mesmo ávida consumidora dos romances de José de Alencar. As mulheres da família imperial, liam e gostavam de livros. A jovem D. Francisca, em viagem á França em companhia de seu recém-esposo, o príncipe de Joinville, deliciando-se com as aventuras de D. Quixote, confessava á Baronesa de Langsdorff: “- Gosto muito de ler, a senhora vê? Em São Cristovão eu lia também”.

As novelas eram o grande sucesso, não apenas entre as mulheres da família imperial, mas entre outras leitoras.; novelas de “grande merecimento”, “acabadas de sair à luz”, mui galantes e divertidas” eram anunciadas por catálogos ou em anúncios de jornais. Marlise Meyer informa que a partir de 1816 “pode-se falar em explosão de novelas” entre nós. Narradas por autores, na sua grande maioria, anônimos, nelas, cruzavam-se “histórias” várias, sicilianas, inglesas, turcas, napolitanas, de ilustres aventureiros ou misteriosos desconhecidos. Virtudes e desgraças mil. Esposos que nào o eram, óríaos perdidos ou abandonados, Joaninhas e Susaninhas, condessas, Anas de ...., salteadores, cavernas, subterrâneas, ruínas, capelas permitiam evocar o famoso romance “negro” inglês (...) e muitíssimos títulos recorrentes, em edições várias: Sinclair das Ilhas, Amanda e Oscar e Celestina, ou Os esposos sem o serem. Que leitora não gostaria desses envolventes assuntos?

Em 26 de setembro de 1843 um anúncio do Jornal do Comércio dá o toque da presença da verdadeira novidade do momento, anunciador da erupçào prestes a sacudir a imprensa cabocla: “quem tiver a obra Mysíères de Paris, por Eugène Sue, e quiser vendê-la, dirija-se à rua do Ouvidor, 87, loja de Mongie”. Segundo Meyer, o folhetim, em volume, em francês, já devia estar em franca circulação no Brasil. Enquanto isso, a Casa do Livro Azul, anunciava no começo do ano de 1844, a prata da casa: “O filho do pescador: Novela feita para o entretenimento de uma moça bonita, cuja ação se passa no Rio, no lugar chamado Copacabana, composta por A. Teixeira”

Entre 1839 e 1842 os folhetins-romance são praticamente cotidianos no Jornal do Comércio. Devorados pelas mulheres, o assunto era até frutos de comentário em jornais outros. É o caso, por exemplo, de A Vida Fluminense referindo-se “as leitoras do herói Rocambole”. O fato é confirmado por Machado de Assis que registrou: “é a curiosidade das filhas de família que leem todos os dias o folhetim do Jornal do Comércio, cada qual mais doida para chegar ao fim da história. E a curiosidade de uma mulher é como uma mariposa ao redor da luz: não descansa enquanto não se satisfaz.

Segundo Tânia Quintaneiro, em algo a educação feminina e o hábito da leitura deve ter melhorado nos anos trinta, pois então viajantes já falam na existência de “internatos para moças dirigidos segundo os mesmos princípios dos seus similares na Inglaterra”. No Rio de Janeiro, capital e a maior cidade do Império, a rede escolar compreendia, na década de 60, quarenta e seis escolas primárias para ambos os sexos. Havia, também escolas particulares que disputavam com governantas estrangeiras a educação das meninas brasileiras pertencentes às famílias de posses, como a já citada Dona Carlota. Em 1855, Miss Donovan, Mme. Choulet, Matilde Keatinge Mme. Halbout instruíam-nas em casa até os dezessete ou dezoito anos; outros pais, preferiam mandá-las para o exterior. Ordens religiosas instaladas no Brasil em diversas capitais também recebiam, sob o regime de internato, um grande número de jovens de várias partes da província.

Vontade de aprender não lhes faltava. Elizabeth Agassiz comentou entusiasmada que quando, nos finais dos anos 60, franqueou-se às mulheres “o ensino popular”, ensino que “admitia livremente todos quantos queiram escutar e aprender”, houve uma resposta imediata das interessadas. Orgulhosa, ela explica: “a princípio a presença de senhoras foi julgada impossível, como sendo demasiada inovação nos hábitos nacionais; mas esse preconceito foi logo vencido e as portas se abriram para todos, à moda da Nova Inglaterra”. Este fato, segundo Quintaneiro, foi igualmente registrado nas memórias de uma intelectual feminista norte americana, que insta a que as mulheres “que desejam o bem para seu próprio sexo” não esqueçam da  insistência com que o cientista (Agassiz) solicitou ao Imperador a permissão para que as damas pudessem assistir à palestra. Segundo ela, abria-se, tardia mas finalmente para as mulheres sui-americanas “o sagrado domínio da ciência”.

E o que seguiam lendo? Orientadas por maridos e confessores, os tradicionais livros de oração, tratados morais que pareciam a Elizabeth Agassiz cheios de “banalidades sentimentais e frases feitas”. Mas não só. Nossas irmãs do passado já devoravam os romancistas franceses de Balzac, Eugène Sue, Dumas, pai e filho, George Sand. Liam também as já mencionadas “intrigas em pacotilhas e folhetins de jornais”, criticados por um viajante mais severo, não levando em conta, que foram tais leituras que criaram um público feminino para o romance, na Europa. Como bem diz Roger Chartier, lá “o romance foi lido e relido, memorizado, citado e recitado. Os leitores eram tomados pelos textos que liam; eles viviam o texto, identificando-se com os personagens e com a trama. Toda a sua sensibilidade estava engajada nesta nova forma de leitura intensiva. Leitores, (que eram frequentemente mulheres) eram incapazes de controlar suas emoções e suas lágrimas” ". Isso certamente aconteceu quando as leitoras tiveram acesso, em 1844, à tradução portuguesa de Os miseráveis de Víctor Hugo ou de A moreninha de Joaquim Manuel de Macedo à venda na inaugurada Livraria Garnier (1854) livraria que chegava a instituir até rifas para incrementar a leitura. Veja-se, por exemplo, o trecho abaixo de um romance-folhetim de época em que a personagem identifica-se com o conteúdo de suas leituras. A história é simples: D. Rita, viúva de posses modestas, sonha com um marido rico para a filha, e sofre de enxaquecas. Nesses dias,

‘proibia que lhe falasse, gritava com a filha que deleitava-se com romances cortados em tiras sujas e encardidas de rodapés (...) Julia levantava-se tarde; sentia um prazer vago em estar sempre deitada e, com os folhetins debaixo do travesseiro, Ha sempre antes de levantar-se; identificava-se naquela leitura„ tinha interesse nas mortes dos personagens, tornava-se cúmplice nos assassinatos e nos adultérios; sentia- se apaixonada e com desejos de fazer o mesmo } a tarde, vinha para a janela, esperava a noitinha; o namorado passava e d. Rita sentada na sala de jantar não a via receber uma carta e falar debruçada ...) lia à noite a carta e, com expansões exageradas imitadas dos romances, sentia lágrimas, o coração apertava-se-lhe ”.

A mulher, explica Meyer, a “gentil leitora”, é o destinatário “natural” do romance. Repetiu-se no Brasil aquela “situação de leitura” a que se refere Roger Chartier, largamente representada na pintura pré- romântica, que multiplicou as “cenas de leitura feminina”, sendo típica aquela que mostra uma mulher jovem, recostada languidamente, livro no colo, olhos perdidos, envolvida pelos efeitos emocionais da leitura romanesca.

Gilberto Freyre lembra que, no Nordeste, contra as senhoras afrancesadas da primeira metade do século XIX que liam romancescezinhos inocentes, o Padre Lopes Gama bradava como se elas fossem pecadoras terríveis. Para o padre-mestre, a boa mãe de família não devia preocupar-se se não com a administração de sua casa. “O que estraga os costumes, o que perverte a moral é, por exemplo, a leitura de tanta novela corruptora, onde se ensina a filha a iludir a vigilância de seus pais para gozar de seu amante, à esposa a bigodear o esposo etc. etc. O que corrompe horrivelmente os costumes é a leitura dos folhetinhos, como o Citador, a carta apócrifa de Tayllerand ao papa, as Liras de José Anastásio e a praga de quadros com moças nuas, de Vênus saindo do banho, de Vênus e Adonis etc. etc., que todos os dias se despacham nas nossas alfândegas.

Comentando as mudanças de costumes na passagem do patriarcado rural para o urbano na mesma região, Freyre sublinha as consequências de tais leituras entre as jovens: “Bem dizia em 1885 D. Ana Ribeiro de Góis Bettencourt, ilustre colaboradora baiana do Almanaque de lembranças Luso-Brasileiro, alarmada com as tendências românticas das novas gerações - principalmente com as meninas fugindo de casa com os namorados - que convinha aos pais evitar as más influências junto às pobres mocinhas. O mau teatro. Os maus romances. As más leituras. Os romances de José de Alencar, por exemplo, com “certas cenas um pouco desnudadas” e “certos perfis de mulheres altivas e caprichosas [...) que podem seduzir a uma jovem inexperiente, levando-a a querer imitar esses tipos inconvenientes na vida real”. Romances ainda mais dissolutos estavam aparecendo; autores ainda mais perigosos escrevendo livros, chegando alguns até a pretender que “a união dos sexos promovida somente pelo amor seja tão santa e pura como a que a religião e a sociedade consagra”. E ainda mais, santo Deus! a “desculparem o adultério da mulher!”. Contra o que D. Ana Ribeiro recomendava os romances de Escrich e os que ela própria escrevera: A filha de Jehte e o Anjo do Perdão ”

A queixa de alguns viajante, como a formulada por Elizabeth Agassiz, ao manifestar seu desapontamento face à ausência de livros nas casas brasileiras, não significa que as mulheres nào lessem. Não espantou-se Maria Graham ao ser apresentada “a uma vulgar bas bleu da terra, na pessoa de Dona Maria Clara; lê bastante, - anotou a viajante - especialmente filosofia e política [...] Faz circular as novidades literárias”?

Dona Maria Clara, uma exceção? Nem tanto. Na província acanhada de Rio Grande de São Pedro, às vésperas da Independência, Delfina Benigna da Cunha (1791-1857), publicava em 1834 um livro: “Poesias dedicadas às senhoras rio-grandense’. Embora as opções de trabalho para o sexo feminino fossem pequenas, senhoras ofereciam-se, em jornais como O mensageiro,, para alfabetizar crianças. Ouras, engajadas na luta entre governo e farroupilhas, defendiam o Império como jornalistas, caso, por exemplo, de Maria Josefa Barreto que fustigou os inimigos do governo num jornal por ela fundado: Belona irada contra os partidários de Momo. Em 1837, Ana Eurídice Eufrosina de Barandas publicava O Ramalhete ou Piores escolhidas no jardim da Imaginação, e num texto ai incluído, discutia o papel das mulheres na tensão política que rasgava os pampas. O texto de Ana Barandas, surpreende pela veemência na defesa da participação política feminina, em sua vertente mais radical, assim como na denúncia da opressão masculina como causadora dos “defeitos da mulher”.

A fundação de O jornal das Senhoras em 1852, em muito pode ter colaborado para a leitura de informações úteis e editoriais em torno de outros assuntos que começavam a despertar a atenção das mulheres. Atenção, mas também, ação. Muitas, já letradas ou formadas por Escolas Normais, iam participar diretamente da vida do país, colaborando ou escrevendo na imprensa. Esse foi o caso de Ana Aurora do Amaral Lisboa, abolicionista, republicana e federalista gaúcha, inflamada redatora da Reforma, jornal que fazia oposição a Júlio de Castilho. Ou de Andradina América Andrada de Oliveira, feminista, autora do livro de contos Preludiando e editora do jornal Escrínio, editado em Bagé, depois em Santa Maria durante nove anos consecutivos.

Em Divórcio?, obra na qual Andradina apontava a opressão das mulheres através dos tempos, a autora reuniu várias cartas em que esposas e maridos contavam seus infortúnios no casamento, acrescentando-lhes duas cartas em que fazia o elogio do feminismo, capaz de abrir os olhos do sexo então considerado frágil. Entre os finais do século XIX e as primeiras décadas do século XX multiplicam-se escritoras e textos de autoria feminina. Segundo Pedro Maia Soares, romantismo adolescente, poesia de circunstância, parnasianismo escolar, textos sentimentais de suposta sensibilidade feminina enchiam as páginas dos jornaizinhos literários dirigidos por mulheres.

No Rio Grande do Sul, destacavam-se Violeta (1878) em Rio Grande, dirigido por Julieta de Melo Monteiro; Saudade (1880), em Jaguarão, de Maria Amália F.C; A Grinalda (1896), em Porto Alegre de Maria da Cunha; O Orvalho, em Livramento, de Alaíde Ulrich e Matilde Ulrich Filha; Pena (1909) em Santa Maria, de Regina Lobato, entre outros.

O mais importante deles foi o Corymbo, caixa de ressonância do feminismo brasileiro, editado pelas irmãs Revocata Heloísa de Melo e Julieta de Melo Monteiro. Sua longevidade fez história: sessenta anos, A Pena (1884-1860) com diversa periodicidade mas sem interrupções. Ênfase na educação feminina, independência da mulher pelo trabalho, preocupações progressistas pelas classes trabalhadoras, valorização das “caídas”, ou seja, das desvirginadas, inquietação frente à I Guerra Mundial, o direito ao voto, elogios a 'sufrageties' e anarquistas são algumas das muitas teclas nas quais batiam seus editoriais e artigos.

O Rio de janeiro, a partir de meados do século XIX, assistiu também ao surgimento de uma infinidade de jornais e revistas dedicados à mulher e a família: Este tipo de imprensa, dividiu com a leitura de romances e folhetins a esfera privada e íntima na qual vivia maior parte do público feminino. Alguns desses periódicos tentaram estabelecer um diálogo com as leitoras, abrindo suas colunas à participação destas. É o caso de Iracema, periódico literário e recreativo dedicado ao belo sexo e publicado a partir de 1902. No artigo intitulado “Conversa com as Moças”, explicita seu programa:

“Caras leitoras, (...) Não viemos aqui para sermos jornalistas, mas sim, um fim mais nobre temos em mente, cultivar as letras e a inteligência [...] Demos o título Iracema por ser dedicado a vós (...) As nossas colunas acham-se à vossa disposição e esperamos que vós não as recusareis, honrando-nos com a vossa presença”.

O Correio das Modas, em 1839, o Espelho Fluminense, em 1843, o Recreio do Bello Sexo, em 1856, a Biblioteca das Famílias, em 1874, O Beijo, em 1900, o Jornal das Senhoras, em 1904, embora redigidos por homens, estavam abertos à participação das leitoras. Em seu primeiro número, o Sexo Feminino, semanário fundado em 1873 por Francisca Senhorinha da Motta Diniz em Campanha da Princesa e transferido em 1875 para o Rio de Janeiro, afirmava:

“O século XIX, século das Luzes, não se fundará sem que os homens se convençam de que mais da metade dos males que os oprimem é devido ao descuido que eles têm tido na educação das mulheres, e ao falso suposto de pensarem que a mulher não passa de um “traste da casa” (...) Em vez de os pais de família mandarem ensinar suas filhas a coser, engomar, lavar, cozinhar, varrer a casa, etc., etc., mandem-lhes ensinar a ler, escrever, contra, gramática da língua nacional...”

A educação feminina é ainda tema de outro periódico, denominado A Família, jornal literário dedicado à educação da mãe de família, fundado em São Paulo em 1888 por Josephina Alvarez de Azevedo e transferido para o Rio um ano mais tarde. Em seu número-programa D. Josephina critica a falta de um ideal mais nobre que servisse de base à educação até então destinada às mulheres.


Texto de Mary Del Priore em http://www.academiacearensedeletras.org.br/revista/Colecao_Diversos/Mulher_Literatura/ACL_A_Mulher_na_Literatura_16_As_mulheres_e_os_livros_vidas_que_se_contam_MARY_DEL_PRIORE.pdf.Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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