10.28.2018

VESPÚCIO E O BATISMO DA AMÉRICA


O destino do Brasil começou a ser traçado dois meses após a partida de João da Nova para a Índia, quando D. Manoel armou uma nova expedição com o objetivo único de explorar o território que Cabral avistara um ano antes e averiguar que riquezas ele porventura possuiria. No dia 10 de maio de 1501, uma frota de três caravelas, comandada por Gonçalo Coelho, zarpou de Lisboa em direção ao Brasil. A bordo de um dos navios seguia o florentino Américo Vespúcio – a quem se deve o único relato existente dessa viagem. Vespúcio, que até poucas semanas antes servia aos Reis Católicos, Fernando e Isabel, de Aragão e Castela, fora recentemente contratado pela Coroa portuguesa, provavelmente por recomendação de seu conterrâneo, o banqueiro Bartolomeu Marchioni.

Amigo de reis, ministros, embaixadores e banqueiros, tendo convivido com os maiores artistas de seu tempo (e da própria história da humanidade) Américo Vespúcio era rico e culto, mas acabaria se revelando também homem presunçoso, muitas vezes arrogante e capaz de sonegar informações relativas às suas viagens, além de ser conivente com falsificações e versões apócrifas de suas cartas, com o objetivo explícito de “obter alguma fama após a morte”.1 E tal objetivo Vespúcio seria capaz de atingir em proporções muito maiores e impactantes do que ele jamais poderia supor.

Nascido em Ognissanti, um bairro de Florença, em 9 de março de 1454, Vespúcio era o terceiro filho de Anastácio Vespúcio (Vespucci, em italiano) e Lisa di Mini. Sua família era de classe alta e dela faziam parte um embaixador, um bispo e um banqueiro – todos amigos dos poderosos Médici, a família que levara Florença ao apogeu político e financeiro.

Na infância, Vespúcio estudou no Convento de São Marco, em Florença, sob supervisão direta de seu tio, o frade dominicano Giorgio Antonio Vespúcio. Típico homem do Renascimento, sábio helenista e latinista, frade Giorgio também foi o professor particular de Piero Soderini – nobre que iria se tornar o gonfaloneiro (um dos principais mandatários) da República de Florença e que, desde os bancos da escola, era amigo íntimo de Vespúcio.

Aos 17 anos, em 1471, Américo começou a trabalhar como contador na casa comercial e bancária de Lorenzo di Pierfrancesco de Médici. Embora entre 1478 e 1480 Américo tivesse sido secretário de seu tio, Guidantonio Vespúcio, que era embaixador de Florença em Paris, junto à corte de Luís XII (que Américo conheceu pessoalmente), seu trabalho no banco dos Médici era basicamente burocrático. Em 1491, após 20 anos de serviços tediosos, Vespúcio foi enviado para Sevilha, na Espanha, para ser um dos executivos da empresa dirigida por Juanoto Berardi, sócio dos Médici.

Foi após sua chegada à Espanha, em 1491, que Vespúcio começou a se tornar um dos personagens mais controversos da história dos descobrimentos. Ele tinha quase 40 anos de idade. Seu novo patrão, o banqueiro e armador Juanoto Berardi, era um dos principais financiadores das viagens marítimas patrocinadas pelos Reis Católicos. Berardi possivelmente foi o responsável pela armação da esquadra com a qual Colombo descobriu a América em 1492. No ano seguinte, se tornou agente e procurador dos negócios de Colombo junto à corte espanhola.

Foi nessa condição que, em abril de 1495, Berardi se comprometeu a entregar aos reis Fernando e Isabel 12 navios – entre os quais a nau e as duas caravelas com as quais Cristóvão Colombo faria sua terceira viagem ao Novo Mundo, prevista para o início de 1497. Mas Berardi morreu em dezembro de 1495, e a pesada responsabilidade de entregar uma dúzia de embarcações recaiu sobre Vespúcio. Só no início de 1498 Américo conseguiu aprontar os navios – tornando-se, dessa forma, amigo de Colombo.

Em maio de 1498, Cristóvão Colombo partiu da Espanha e, dois meses depois, chegou pela primeira vez à América do Sul. Um ano depois, o próprio Vespúcio decidiu se fazer ao mar. Numa carta posterior, ele iria revelar que estava cansado de notas cambiais e de trâmites burocráticos. Aos 45 anos, achava que novos ares e um pouco de aventura lhe fariam bem. Por isso, embarcou na frota comandada pelo truculento Alonso de Hojeda e zarpou de Cádiz em 18 de maio de 1499. Daquele dia em diante, novos ares e aventura não mais lhe fariam falta.

Aparentemente, Vespúcio horrorizou-se com a brutalidade de Hojeda e decidiu se separar da expedição. Desembarcou na ilha Hispaniola (hoje Haiti/Santo Domingo), no Caribe, após ter visitado o golfo de Pária e o litoral da Venezuela. A bordo de outro navio, retornou à Espanha, aonde chegou nos primeiros dias de junho de 1500, antecipando-se em um mês ao retorno de Hojeda.

No dia 18 de julho de 1500, em Sevilha, Vespúcio redigiu uma carta de 15 páginas endereçada a seu patrão, Lorenzo de Médici. Nela, narrou minuciosamente sua viagem, omitindo o nome de Hojeda e se auto-intitulando o comandante da expedição. Era a primeira das várias cartas e dos muitos exageros que, em breve, fariam a fama de Vespúcio.2

Em fins de 1500, uma cópia dessa correspondência parece ter chegado ao rei D. Manoel, de Portugal, talvez por intermédio do banqueiro Bartolomeu Marchioni. Em janeiro de 1501, D. Manoel enviou a Sevilha o florentino Giuliano del Giocondo, funcionário graduado de Marchioni, com a missão de contratar Vespúcio.

É provável que o orgulhoso D. Manoel estivesse tão interessado em  requisitar os serviços de Vespúcio pelo fato de que, naquele momento, havia grande carência de navegadores experientes em Portugal. Quase todos se encontravam envolvidos em outras missões: Cabral ainda estava em alto-mar, retornando da Índia, para onde João da Nova acabara de zarpar. Dali a poucos dias, Gaspar Corte Real partiria outra vez em direção à América do Norte, deixando Lisboa em 20 de maio de 1501 para seguir a mesma rota que, um ano antes, já o levara ao litoral do Canadá. Vasco da Gama – condecorado como Almirante das Índias – se preparava para retornar ao Oriente, chefiando a chamada “Esquadra da Vingança”, que iria zarpar de Lisboa em 15 de fevereiro de 1502. E o grande Bartolomeu Dias, que em 1488 fora o primeiro navegador a dobrar o cabo da Boa Esperança, estava morto – embora disso D. Manoel ainda não tivesse conhecimento.

Américo Vespúcio chegou a Lisboa em fevereiro de 1501. Manteve um breve contato com o rei D. Manoel e, na segunda semana de maio, partiu para o Brasil. Essa viagem não só eternizaria seu nome como iria provocar uma grande revolução nos conceitos geográficos da Europa.

INTERLÚDIO EM BEZEGUICHE

Com Vespúcio a bordo – provavelmente como cosmógrafo ou, talvez, como piloto – a esquadra comandada por Gonçalo Coelho zarpou rumo às Canárias. Dali, seguiu em direção à baía de Bezeguiche (hoje Dacar), em frente ao arquipélago de Cabo Verde, na África, aonde chegou no dia 2 de junho. Lá, a frota deparou com o navio de Diogo Dias, irmão de Bartolomeu Dias, que, um ano antes, se desgarrara da armada de Cabral, fora parar na Etiópia e agora estava retornando para Portugal com apenas seis homens a bordo. No dia seguinte, por uma extraordinária coincidência, também chegavam àquele mesmo porto africano, vindos de Calicute, dois navios da esquadra de Cabral. Durante 13 dias, as tripulações desses seis navios portugueses permaneceram em Bezeguiche, no Senegal. Os homens de Cabral e de Diogo Dias descansavam das fadigas do mar, enquanto os de Gonçalo Coelho abasteciam os navios de água e lenha para a viagem ao Brasil. Ao longo de duas semanas, os capitães puderam trocar muitas informações.

As notícias que compartilharam lhes deram a certeza de que as terras descobertas na margem oeste do Atlântico deviam fazer parte de um continente. Afinal, em abril de 1500, ao mesmo tempo que Cabral descobria o território que hoje constitui o Brasil, Gaspar Corte Real percorrera as vastidões geladas do Canadá. Pouco antes disso, em companhia de Hojeda, Américo Vespúcio estivera nas Guianas, na Venezuela e no Caribe. Não restavam dúvidas de que aquela vasta extensão de terra – que se prolongava desde 45ºde latitude norte até pelo menos 15º de latitude sul – deveria estar interligada. Começou a nascer o conceito de um Novo Mundo: as terras que Colombo fora o primeiro a vislumbrar em 1492 não eram a Ásia, mas um novo e desconhecido continente.

Para Vespúcio, porém, mais importante do que essa nova visão da geografia planetária – da qual ele se aproveitaria amplamente – foi o fato de que, durante aqueles dias memoráveis em Bezeguiche, ele pôde obter também informações detalhadas sobre a Índia e seu rico comércio de especiarias. Embora agora trabalhasse para o rei D. Manoel, Vespúcio se mantinha extremamente leal ao seu patrão original, Lorenzo de Médici. E nada interessava mais aos Médici e a Florença do que o comércio de pimenta e canela – cujo monopólio estava nas mãos de Veneza, eterna rival e única república europeia que podia negociar diretamente com os turcos de Constantinopla (obtendo, assim, lucros extraordinários com a distribuição das especiarias para o resto da Europa). Fora justamente esse o motivo que levara os banqueiros florentinos e genoveses a financiar as expedições ultramarinas dos portugueses, cujo objetivo era atingir a Índia por mar e furar obloqueio estabelecido pela aliança entre turcos e venezianos.

Vespúcio obteve informações preciosas não da boca dos capitães portugueses, mas através de um dos mais intrigantes personagens da história dos descobrimentos: Gaspar da Gama, também conhecido como Gaspar da Índia. Judeu polonês de caráter errante, Gaspar vivera por anos em Alexandria, no Egito, tendo chegado à Índia por volta de 1470. Em setembro de 1498, ao visitar um dos navios de Vasco da Gama – quando eles estavam ancorados na ilha de Angediva, próxima a Calicute –, foi considerado um espião a serviço dos mercadores árabes e acabou capturado pelos portugueses. Levado para Lisboa, converteu-se ao cristianismo, adotou o sobrenome de seu poderoso padrinho de batismo e passou a circular com desenvoltura pela corte de D. Manoel. Em março de 1500, embarcou como intérprete na frota de Cabral – com o qual estava, agora, retornando da Índia. Depois de longas conversações com Gaspar da Gama, Vespúcio escreveu uma carta de cerca de dez páginas para Lorenzo de Médici. Datou-a em 14 de junho de 1501 e, por um dos navios da frota de Cabral, a enviou para Portugal, de onde ela foi remetida para Florença. No dia seguinte, 15 de junho, enquanto Cabral zarpava para Lisboa, a frota de Gonçalo Coelho partia para o Brasil.3

A PRIMEIRA EXPLORAÇÃO OFICIAL DO BRASIL

Por mais de dois meses, os navios de Gonçalo Coelho enfrentaram primeiro as enervantes calmarias equatoriais do Atlântico e, depois, “o pior tempo que jamais um viajante experimentou, com muitos aguaceiros, turbilhões e tempestades”.4 A tormenta durou mais de dez dias. Então, a 17 de agosto de 1501, quando comida, lenha e água começavam a escassear, a expedição avistou terra. A frota levara 67 dias para fazer o mesmo trajeto que, um ano e meio antes, Pinzón percorrera em apenas 13.

Apesar de Vespúcio afirmar que as três caravelas ancoraram num lugar localizado a 5º de latitude sul – o que remete à foz do rio Mossoró, na praia de Areias Alvas, quase na divisa entre Rio Grande do Norte e Ceará –, o local mais provável do desembarque parece ter sido a praia dos Marcos, no Rio Grande do Norte, cerca de 150 quilômetros ao sul de Areias Alvas.5

Ao desembarcar nessa praia de ondas fortes e areia fofa, os portugueses não viram ninguém. Mas, na manhã do dia seguinte, enquanto os marinheiros enchiam os tonéis de água fresca, colhiam palmitos e cortavam lenha, um grupo de indígenas surgiu no alto de um pequeno morro, próximo à praia. Embora os marujos lhes oferecessem guizos e espelhos, os nativos se recusaram a manter qualquer contato – exatamente como haviam feito os Potiguar encontrados por Pinzón. No dia 19 de agosto, dois marinheiros obtiveram permissão para descer a terra, penetrar na mata e negociar com os nativos. Gonçalo Coelho se comprometeu a aguardá-los durante cinco dias.

Seis dias se passaram e nenhum dos homens retornou aos navios. Então, na manhã de 24 de agosto – quando a frota já se encontrava ancorada havia uma semana – a praia se encheu de mulheres. Gonçalo Coelho enviou a terra dois batéis com alguns homens a bordo. Um grumete desembarcou e foi logo cercado pelas nativas, que “o apalpavam e o examinavam com grande curiosidade”. Quando ele estava no meio delas, uma mulher desceu do monte com um tacape nas mãos, aproximou-se do jovem marinheiro e, pelas costas, lhe desferiu um golpe na nuca.

“Então”, diz Vespúcio, “as outras mulheres imediatamente o arrastaram pelos pés para o monte, ao mesmo tempo que os homens, que estavam escondidos, se precipitavam para a praia armados de arcos, crivando-nos de setas, pondo em tal confusão a nossa gente, que estava com os batéis encalhados na areia, que ninguém acertava lançar mão das armas, devido às flechas que choviam sobre os barcos. Disparamos quatro tiros de bombarda, que não acertaram, mas cujo estrondo os fez fugir para o monte, onde já estavam as mulheres despedaçando o cristão e, enquanto o assavam numa grande fogueira, mostravam-nos seus membros decepados, devorandoos, enquanto os homens faziam sinais, dando a entender que tinham morto e devorado os outros dois cristãos.”

Esse trecho – incluído na famosa Lettera que Vespúcio escreveria em Lisboa em 4 de setembro de 1504, enviando-a para seu amigo de infância Piero Soderini, um dos principais mandatários de Florença – se constituiria na primeira descrição da antropofagia dos nativos da América na qual a vítima era um europeu. Como é fácil supor, a narrativa causou profundo impacto na Europa e transformou a carta num grande sucesso editorial.

Apesar da indignação de seus subordinados – entre eles Vespúcio –, Gonçalo Coelho não permitiu retaliações aos indígenas e determinou que a frota zarpasse mediatamente, dando continuidade à exploração da costa em direção ao sul. Com o calendário litúrgico nas mãos, a expedição foi batizando todos os acidentes geográficos do litoral brasileiro pelos quais cruzou. O primeiro deles foi o cabo de Santo Agostinho, próximo ao Recife, avistado em 28 de agosto, dia consagrado a esse santo. Em 4 de outubro de 1501, a expedição chegou à foz de um grande rio, que, pelo mesmo motivo, batizou de São Francisco. Ali, na atual fronteira entre os estados de Sergipe e Alagoas, os navios teriam permanecido ancorados por quase um mês, sem que até hoje se possa saber o motivo de uma parada tão longa.

Deixando o São Francisco para trás em fins de outubro, em companhia de três indígenas que decidiram juntar-se à expedição, a frota de Gonçalo Coelho chegou, em 1º de novembro de 1501, à baía que batizou de Todos os Santos. Lá, os marinheiros estabeleceram relações amistosas com os nativos. O próprio Vespúcio diria mais tarde, em uma de suas cartas, que, durante essa estadia, havia “comido e dormido durante 27 dias” com “os naturais da terra”. Antes de partir, os portugueses compraram dez cativos que os nativos estavam se preparando para matar e comer em ritual antropofágico. Na volta à Europa, os venderam como escravos.

A próxima parada da frota foi na baía Cabrália, próxima a Porto Seguro, onde, um ano e oito meses antes, o Brasil fora avistado pela primeira vez pelos portugueses. Na praia, assinalada com uma cruz, Gonçalo Coelho recolheu os dois degredados que haviam sido deixados por Cabral. Durante quase dois anos, os Tupiniquim os haviam tratado como hóspedes. De um desses homens, Afonso Ribeiro, Vespúcio iria obter uma descrição detalhada da vida cotidiana e dos hábitos dos nativos do Brasil. Tal depoimento, somado à sua experiência pessoal, lhe serviria de base para a redação de duas cartas.

Em Porto Seguro, naquele início de dezembro, a frota de Gonçalo Coelho também recolheu toras de pau-brasil – a árvore que, em breve, iria definir o nome e o futuro daquele território. Seguindo sua jornada para o sul, as três caravelas chegaram a um local esplendoroso no primeiro dia de 1502. Era uma ampla “boca de mar”, cercada de vastas montanhas recobertas de mata luxuriante. Julgando se tratar da foz de um rio, os exploradores batizaram o lugar com o nome de Rio de Janeiro. Um ano mais tarde, em sua segunda viagem ao Brasil, Vespúcio voltaria ao local – que os nativos chamavam de Guanabara – e ficou tão extasiado com sua beleza quanto da primeira vez.

Cinco dias depois de avistar o Rio de Janeiro, a frota ancorou em outra bela enseada. Como 6 de janeiro é dia de Reis, batizou-a de Angra dos Reis, nome que até hoje se mantém. Os dias estavam quentes, o mar tranquilo e chuvas eventuais refrescavam os homens e realçavam os perfumes exalados pela mata. “Algumas vezes me extasiei com os odores das árvores e das flores e com os sabores dessas frutas e raízes, tanto que pensava comigo estar perto do Paraíso Terrestre”, escreveu Vespúcio. “E o que direi da quantidade de pássaros, das cores das suas plumagens e cantos, quantos são e de quanta beleza? Não quero me estender nisto, pois duvido que me deem crédito.”6

Em fins de janeiro, as caravelas entraram em uma baía ao fundo da qual existia uma ilha, baixa e recoberta por mata muito fechada. Por motivo ainda desconhecido, tal ilha foi chamada de Cananeia,rompendo com o esquema de batizar os acidentes geográficos com o nome dos dias santos. Durante essa passagem por Cananeia no verão de 1502, Gonçalo Coelho teria abandonado ali o mais enigmático degredado da história do Brasil: o homem que, 25 anos mais tarde, ao ser encontrado pela expedição do espanhol Diego Garcia, passaria a ser conhecido como o Bacharel de Cananeia (e cuja vida atribulada será narrada mais adiante.

Cananeia, localizada no litoral sul de São Paulo, iria se tornar um dos locais mais importantes do Brasil na primeira metade do século XVI, e não apenas por causa da presença do Bacharel. Afinal, era exatamente ali que passava a linha estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas – embora isso os portugueses ainda não soubessem.

Mas, com certeza, os integrantes da expedição de Gonçalo Coelho já tinham notado que, a partir de Cabo Frio (uns 200 quilômetros ao norte da cidade do Rio de Janeiro), a costa brasileira começava a se inclinar nitidamente para sudoeste. Esse recuo em direção ao poente deve ter sido observado com preocupação, pois deixava claro que – de acordo com as estipulações de Tordesilhas – aquele vasto território não estaria dentro das possessões da Coroa lusa, mas na zona pertencente à Espanha.

Ao zarpar de Cananeia, em 15 de fevereiro de 1502, com água, mantimentos e lenha suficientes para seis meses de navegação, Gonçalo Coelho e seus comandados pareciam estar conscientes desse fato. Tanto é que, embora seguisse navegando para o sul, a frota foi se afastando do litoral, guinando para leste – em direção à África. Mas a rota seguida a partir de então continua sendo um mistério. Segundo Vespúcio, ao distanciar-se da costa, as caravelas navegaram para sudeste por 49 dias, percorrendo mais de cinco mil quilômetros em alto-mar, sem avistar terra.

Então, a 3 de abril de 1502, despencou uma terrível tempestade austral. Os marinheiros tiveram que arriar rapidamente todas as velas. Com os mastros nus, as caravelas balançaram sobre vagalhões funestos durante 72 intermináveis horas. Os ventos eram gélidos e as noites, muito longas. Segundo Vespúcio, em 6 de abril a escuridão perdurou por 15 horas. A essa altura, a frota estava em meio ao oceano Atlântico, a 53º de latitude sul – equivalente à localização da atual cidade de Punta Arenas, na Patagônia chilena, nos confins do continente americano.

Na manhã de 7 de abril, em meio a um nevoeiro denso, a expedição julgou ter visto terra. “Era uma costa brava”, escreveu Vespúcio, “e nela não avistamos porto nem gente. Mas era tanto o frio que ninguém da frota o podia remediar nem suportá-lo, de modo que, vendo-nos em tanto perigo e tormenta que não enxergavam os navios uns aos outros, pelo grande mar que fazia e pela grande cerração, decidimos partir sem demora a caminho de Portugal.”

Não se sabe que terra é essa que Vespúcio disse ter avistado. Alguns historiadores supõem que fossem as ilhas Geórgias do Sul, que ficam a 54o de latitude sul, uns mil quilômetros a leste das Malvinas. O mais provável, porém, é que Vespúcio e seus homens tenham avistado apenas um iceberg. De fato, naquelas latitudes flutuam imensos blocos de gelo, em cima dos quais pousam albatrozes e gaivotas, ressaltando a impressão de que se trata de ilhas.

De todo modo, a esquadra logo guinou para nordeste. Depois de navegar por pouco mais de um mês, os navios chegaram a Serra Leoa, na costa ocidental da África, no dia 10 de maio de 1502 – um ano exato após a partida de Lisboa. Depois de 15 dias nesse porto africano – onde uma das caravelas, infestada pelo caruncho (inseto similar ao cupim), foi queimada –, os dois navios restantes partiram para os Açores. No dia 22 de julho de 1502, a primeira expedição enviada ao Brasil enfim entrava no porto de Lisboa. Depois de 14 meses de viagem, as notícias que ela trazia eram decepcionantes: na terra descoberta por Cabral, nem ouro nem especiarias haviam sido encontrados. A Coroa logo encontraria uma outra maneira de explorar aquele vasto território ocidental.

A FARSA DE MUNDUS NOVUS

No início de agosto de 1502, uns dez dias após ter desembarcado em Lisboa, Américo Vespúcio tornou a escrever para Lorenzo de Médici narrando os acontecimentos relativos à viagem que fizera sob o comando de Gonçalo Coelho (cujo nome, como de hábito, não citou uma única vez). A carta, de apenas cinco páginas, estava repleta de insinuações sobre a natureza paradisíaca das terras recém-visitadas e fazia uma descrição vivaz, mas comedida, dos espantosos costumes de seus habitantes nativos. Fluente e elegante, a narrativa há de ter entretido o refinado patrão de Vespúcio. Depois de circular entre os Médici, a carta foi arquivada no Códice Strozziano, na biblioteca de Florença, e lá permaneceu esquecida por quase três séculos.7

Em agosto de 1504, porém, um dos primeiros grandes sucessos da história da literatura começou a ser vendido nas feiras e praças de Augsburgo, na Alemanha – e, logo a seguir, nos mercados e nas portas das igrejas de Paris e de Amsterdã, de Roma, de Sevilha e até de Praga. Era um panfleto de 15 páginas, escrito em latim, incrementado por algumas ilustrações e com um título bastante sugestivo: Mundus Novus. Seu autor chamava-se Américo Vespúcio. A narrativa vinha em forma de carta e seu destinatário era Lorenzo di Pierfrancesco de Médici.

O texto de Mundus Novus se concentrava nos aspectos mais sensacionalistas da viagem de Vespúcio. A vida sexual dos indígenas era narrada com profusão de detalhes libidinosos; os rituais tétricos do banquete antropofágico vinham descritos com perturbadora minúcia. Em cada parágrafo havia a evidente preocupação de ressaltar a exuberância daquela parte do mundo, a estranheza de seus animais, o tamanho descomunal de suas árvores, a lascívia e a crueldade de seus habitantes humanos.

num sucesso editorial instantâneo. Só no ano de seu lançamento, a carta atribuída a Vespúcio teve 12 edições consecutivas, totalizando cerca de quatro mil exemplares vendidos – números impressionantes para o século XVI. Antes do fim de 1505, o livro já havia sido traduzido para o alemão, o francês, o italiano, o holandês, o espanhol e o tcheco. Cada edição era enriquecida por novas ilustrações encomendadas pelos editores. As primeiras imagens da América publicadas na Europa foram as gravuras feitas para estimular a vendagem do panfleto assinado por Vespúcio.

E, no entanto, Mundus Novus era uma falsificação feita a partir da carta escrita em Lisboa, em agosto de 1502. A mera comparação entre a narrativa original e o livreto posto à venda em toda a Europa deixa claro que Mundus Novus era uma versão exagerada da carta sóbria e acurada que Vespúcio enviara para Lorenzo de Médici. Escrita em latim vulgar, repleta de contradições geográficas e de erros náuticos primários, Mundus Novus fora publicada com o objetivo de atingir um público interessado em obter informações sobre um mundo misterioso e até então desconhecido. Um novo mundo.

Até que ponto Vespúcio esteve diretamente envolvido com a fraude é uma questão que jamais foi e provavelmente nunca será elucidada. Mas, como ele estava vivo durante o auge do sucesso do livreto, pode-se supor que tenha sido no mínimo omisso, se não de todo conivente, com os exageros publicados em seu nome – os quais jamais desmentiu. Como foi justamente a partir do sucesso de Mundus Novus que o nome de Vespúcio começou a se tornar conhecido em toda a Europa letrada, é pouco provável que os exageros lhe tenham desagradado.

Ainda assim, apesar de Mundus Novus ter ajudado a propagar a ideia de que as terras descobertas por Colombo não eram parte da Ásia, mas um novo continente, não foi essa a carta que acabou fazendo com que o “Novo Mundo” fosse batizado com o nome de Américo Vespúcio. Dois anos e uma nova viagem ao Brasil ainda seriam necessários antes que Vespúcio atingisse plenamente seu objetivo de “obter alguma fama após a morte”.8

O NOVO MUNDO GANHA UM NOVO NOME

De fato, no dia 10 de junho de 1503, 11 meses depois de ter retornado a Portugal, Américo Vespúcio voltou a partir para o Brasil – e outra vez em companhia de Gonçalo Coelho, o comandante com o qual ele havia rompido. A frota era formada por seis caravelas e levava como pilotos João Lopes Carvalho e João de Lisboa, homens que, mais tarde, iriam desempenhar, como se verá, papel importante na história do Brasil. Zarpando de Lisboa, os seis navios seguiram direto para Santiago, uma das ilhas de Cabo Verde, escala normal de quase todas as expedições.

Dali, por determinação de Gonçalo Coelho, a frota navegou para sudeste, em direção a Serra Leoa, para escapar das calmarias equatoriais do Atlântico (nas quais, um ano antes, a expedição anterior ficara retida por quase dois meses). Embora duramente criticada por Vespúcio, a tática deu certo, pois no dia 10 de agosto de 1503, menos de um mês depois de zarpar de Serra Leoa rumo ao Brasil, os navios depararam com uma ilha, “coisa de grande altura no meio do mar, verdadeira maravilha da natureza”.9 Tal ilha foi então batizada de São Lourenço. No ano seguinte, porém, passaria a ser chamada de Fernando de Noronha – em homenagem ao chefe do consórcio que havia arrendado o Brasil, obtendo o monopólio do comércio de pau-brasil, e que havia financiado a expedição.

Ao se aproximar da ilha, o navio de Gonçalo Coelho teria se chocado contra um banco de recifes e encalhado, de acordo com Vespúcio. A tripulação se salvou, mas a caravela não. Então, após transferir cerca de 20 sobreviventes para o navio onde estava Vespúcio (do qual ele próprio seria o capitão) Coelho ordenou que Américo fosse procurar um “bom porto” na ilha – onde, mais tarde, a frota deveria se reencontrar, assim que Coelho tivesse recuperado o que ainda fosse possível salvar do navio.

Por uma semana Vespúcio garante ter permanecido ancorado sozinho em Fernando de Noronha – que ele descreveu como sendo “farta de água fresca e doce, com infinitas árvores, cheia de aves marinhas e terrestres, inumeráveis e tão familiares que se deixavam sem medo apanhar à mão, com duas léguas (aproximadamente 12 quilômetros) de comprimento e uma (6 quilômetros) de largura, em que efetivamente nenhum homem estivera ou hábitara”.10 Só no oitavo dia uma das caravelas da frota chegou ao porto que Vespúcio encontrara – e ainda assim apenas para informar que Gonçalo Coelho e os outros três navios já haviam zarpado em direção ao litoral do Brasil.

Vespúcio diz ter partido então no mesmo rumo, indignado por ter sido deixado para trás e sentindo-se ludibriado pelo capitão-mor. Quatro dias mais tarde, chegou ao cabo de Santo Agostinho, na atual costa de Pernambuco. Dali, seguiu costeando o litoral até entrar, 17 dias mais tarde, na baía de Todos os Santos, que ele e Gonçalo Coelho haviam descoberto um ano antes e onde, supostamente, toda a frota deveria se reencontrar. “Mas esperamos ali bem dois meses e quatro dias e nada aconteceu”, relatou Vespúcio.

Então, julgando que os demais navios haviam se perdido “pela soberba e loucura de nosso capitão”, o florentino decidiu assumir o comando da expedição e dar continuidade à missão da qual ela fora incumbida, “porque a ordem que recebêramos do rei era seguir o rumo da navegação precedente, qualquer que fosse o perigo que houvesse”. Assim, em fins de novembro de 1503, as duas caravelas zarparam para o sul, navegando cerca de 260 léguas, ou aproximadamente 1.600 quilômetros.

Em maio de 1504 chegaram a Cabo Frio, no atual estado do Rio de Janeiro. Ali a expedição permaneceu durante cinco meses, “erguendo uma fortaleza e carregando os navios com pau-brasil”. 11 Apesar de Vespúcio ter usado o termo “fortaleza”, tratava-se apenas de uma feitoria: simples paliçada erguida em torno de um casebre e de algumas roças. Foi o primeiro estabelecimento lusitano no Brasil – um posto avançado da civilização europeia em meio à floresta tropical. Segundo o relato de Vespúcio, 24 homens foram deixados ali, presumivelmente os integrantes da caravela de Gonçalo Coelho que Vespúcio recolhera em Fernando de Noronha. Com eles ficaram 12 bombardas e mantimentos para seis meses.

É possível que, no período em que Vespúcio estava em Cabo Frio, seu desafeto, Gonçalo Coelho, estivesse poucos quilômetros mais ao sul, fundeado na baía de Guanabara. Lá, o comandante da frota também teria decidido construir uma feitoria, já que, a partir de 1504, a expressão “carioca” – que em tupi significa “casa de branco” – passaria a ser associada à baía de Guanabara. Esse estabelecimento teria destino mais auspicioso do que a feitoria de Vespúcio: ele sobreviveu até 1517, quando o navegante Cristóvão Jaques decidiu transferi-lo para a ilha de Itamaracá, em Pernambuco.

Mas não existem provas definitivas de que a chamada “Carioca” tenha sido de fato erguida por Gonçalo Coelho. Alguns historiadores, em especial Fernando Lourenço Fernandes, acreditam que a feitoria de Coelho na verdade ficava na ilha do Gato, hoje ilha do Governador, no fundo da baía de Guanabara e então habitada pelos Temiminó, inimigos dos Tamoio, que ocupavam o restante da baía e logo se tornariam inimigos dos portugueses e aliados dos franceses.

Enquanto o rancho fortificado de Cabo Frio estava sendo construído, Vespúcio organizou uma expedição para explorar a região. Com uma tropa de 30 homens, ele percorreu 40 léguas (uns 250 quilômetros), provavelmente pelo vale do rio São João, até deparar com a barreira da serra dos Órgãos. A marcha durou cerca de um mês. Foi a primeira incursão dos europeus pelo interior do Brasil – mas, além de “broncas tribos nômades”12 vivendo em meio a uma natureza exuberante, Vespúcio não encontrou nada de valor. Então, julgando ter “pacificado toda a gente daquela terra”,13 retornou ao porto onde seus navios estavam ancorados. Deixando para trás o primeiro povoado habitado por europeus no Brasil, ele partiu de volta para Portugal em abril de 1504.

A LETTERA

Em 18 de junho – um ano e oito dias depois de ter deixado Lisboa –, Américo Vespúcio estava de volta à Europa. Como de hábito, tratou de escrever para os nobres florentinos relatando suas experiências no alémmar. Dessa vez, o destinatário da carta era Piero Soderini, um dos mandatários de Florença e amigo de infância de Vespúcio. A correspondência, datada de 4 de setembro de 1504, ficaria conhecida como Lettera a Soderini, ou simplesmente Lettera. Dois anos mais tarde, ao ser publicada em forma de folhetim, ela desfrutaria de um sucesso ainda maior do que o de Mundus Novus. Seu êxito foi tão extraordinário que as terras descobertas por Colombo, e por outros exploradores que o seguiram, passaram a ser chamadas de América.

Ironicamente, a carta que eternizou o nome de Vespúcio seria também responsável por uma avalanche de críticas ao seu comportamento – pelo menos nos círculos eruditos. Afinal, alguns anos após a morte de Vespúcio, a análise detalhada da Lettera faria com que ele passasse a ser acusado de charlatão. O manuscrito original da carta para Soderini nunca foi encontrado. O texto mais próximo da versão original é o folhetim chamado Lettera di Amerigo Vespucci delle isole nuovamente trovate in quatro suoi viaggi (“Carta de Américo Vespúcio sobre as ilhas recentemente achadas em suas quatro viagens”). Desde o título, o livreto fora escrito para provar que Vespúcio havia feito não três, mas quatro viagens ao Novo Mundo.

O mais desconcertante é que a “nova” viagem descrita pela Lettera teria sido feita antes das três expedições nas quais a presença de Vespúcio está comprovada por uma série de documentos (ou seja: a viagem com Alonso de Hojeda em 1499 e as duas expedições com Gonçalo Coelho, em 1501 e 1503). De acordo com a Lettera, Vespúcio teria partido de Cádiz em maio de 1497 e, após navegar por 18 meses, descobrira os litorais de Honduras, México, parte da planície de Yucatan e o sul da Flórida. Ao retornar para a Espanha, em outubro de 1498, teria se tornado, assim, o primeiro europeu a percorrer vastas extensões da América Central e da América do Norte.

Mas hoje está provado que tal viagem nunca se realizou, já que nenhum outro documento e nenhum outro cronista se refere a ela. Américo Vespúcio – ou alguém interessado em glorificar seu nome e enriquecer com a venda dos panfletos que narravam tantas peripécias – simplesmente a inventou, misturando informações tiradas dos diários de Colombo, do livro de Marco Polo e de outras cartas do próprio Vespúcio. Ao contrário de Mundus Novus, porém, as mentiras publicadas na Lettera eram tão flagrantes que a farsa parecia destinada ao fracasso. Tanto é que o folhetim publicado em Florença em julho de 1506 vendeu pouco e não passou da primeira edição. No resto da Europa, porém, aconteceria exatamente o contrário.14

Tudo começou na França. Em fins de 1505, surgira no vilarejo de Saint-Dié, na região dos Vosges, entre Nancy e Estrasburgo, uma pequena academia de eruditos chamada Ginásio Vosgense. Influenciado pelo espírito do Renascimento e contando com o generoso patrocínio do mecenas Renato II, duque de Lorena, um grupo de intelectuais, liderado por um certo Vautrin Lud, decidiu se dedicar ao estudo das questões cosmográficas e das descobertas ultramarinas que tanto empolgavam os humanistas da Europa. Desse grupo fazia parte o matemático, cosmógrafo e desenhista Martin Waldessemüller.

Aproveitando-se das novas técnicas de impressão – inventadas por Johann Gutenberg em 1455 – e do sucesso que as obras geográficas, especialmente os mapas e o livro escrito pelo grego Ptolomeu no início da era cristã estavam obtendo na Europa, o Ginásio Vosgense passou a publicar relatos de viagem. Uma de suas primeiras obras foi justamente uma versão em latim da Lettera a Soderini, lançada com o título de Quatuor Americi Vespucci Navigationes (“As quatro navegações de Américo Vespúcio”). Traduzido do italiano por Jean Basin, com introdução de Mathias Ringmann e mais de dez ilustrações, o livro, lançado em 25 de abril de 1507, foi um sucesso instantâneo. Só no ano de seu lançamento, foi reeditado sete vezes. Em 1508, foram 12 as reedições. Quase dez mil exemplares seriam vendidos na Europa.

Mas não foi só. Para acompanhar essa versão latina da Lettera, o Ginásio Vosgense resolveu publicar também, no mesmo volume, uma Introdução à Cosmografia de Ptolomeu. Embora as novas descobertas feitas por portugueses e espanhóis estivessem derrubando quase todas as teorias desse geógrafo grego que vivera no século I, a obra de Cláudio Ptolomeu, ironicamente, estava em alta. Desde o advento da imprensa, o florescente mercado editorial europeu fora inundado pela publicação de dezenas de edições de livros de geografia clássica. Os 27 mapas que Cláudio Ptolomeu fizera séculos antes – embora ultrapassados – se tornaram um anacronismo rentável.

Por iniciativa do jovem cosmógrafo Martin Waldessemüller, o Ginásio Vosgense decidiu “revisar e ampliar” a obra de Ptolomeu, tendo como base as “descobertas” feitas por Vespúcio. E assim, em um texto que se tornaria profético, Waldessemüller escreveu: “Agora que uma outra parte do mundo, a quarta, foi descoberta por Americum Vesputium, de nada sei que nos possa impedir de que tanto a Ásia como a Europa receberam nomes de mulheres.”

Em um dos mapas que fez para acompanhar o livreto de 52 páginas, Waldessemüller usou pela primeira vez a palavra “América”, colocando-a sobre o território que representa o Brasil, na mesma latitude em que se localiza Porto Seguro. O novo continente estava batizado.

Cristóvão Colombo morrera quase que exatamente um ano antes, em 20 de maio de 1506, amargurado e na miséria. Os eruditos de Saint-Dié não ignoravam suas descobertas. Mas, até pelo menos 1514, muitos geógrafos – Waldessemüller entre eles – acreditavam que as ilhas achadas por Colombo em outubro de 1492 de fato eram os limites ocidentais da Ásia, enquanto que a América do Sul (supostamente descoberta por Vespúcio na viagem de 1497 e de fato explorada por ele próprio entre 1501 e 1504) seria um continente autônomo, totalmente separado delas ou, quando muito, interligado ao arquipélago por um istmo. Foi só depois da descoberta do oceano Pacífico, feita por Vasco Nuñez de Balboa em setembro de 1513, que os cartógrafos do século XVI passaram a ter uma ideia um pouco mais próxima da realidade. E somente após o descobrimento do estreito de Magalhães, em 1519, o quadro geográfico iria adquirir molduras mais definidas.

Em fins de 1513, cedendo às pressões da Coroa castelhana, Martin Waldessemüller retirou sua proposta de batismo. Chegou a sugerir que o Novo Mundo fosse chamado de Colômbia. Mas era tarde demais: as múltiplas ressonâncias da palavra América caíram no gosto popular. Em 1516, até o genial Leonardo da Vinci passaria a  utilizar esse nome, colocando-o em um mapa que preparou a pedido da poderosa família Médici. Vinte anos mais tarde, quando ficou claro que Vespúcio – ou alguém agindo em seu nome, com ou sem conhecimento dele – havia forjado a viagem de 1497, o nome “América” começava a se popularizar na Europa, tendo sido adotado até por cartógrafos portugueses e, embora com muita relutância, aceito até pelos espanhóis. Dessa forma, a “quarta parte do mundo” acabou sendo batizada com o nome de um homem que não fora o seu descobridor. De acordo com um texto escrito em 1900 pelo historiador brasileiro Capistrano de Abreu, “a falsidade e a galanteria” foram “pavoneadas pela imprensa e, por força delas, temos hoje o nome de americanos”.

A UTOPIA

Por volta de 1510, um exemplar da tradução da Lettera feita pelo Ginásio Vosgense foi parar nas mãos do reverendo inglês Thomas Morus. Entusiasmado com a leitura das Quatro viagens, Morus então escreveu seu clássico A Utopia, lançado na Basileia, na Suíça, em latim, em 1516, com a obra sendo editada por ninguém menos que Erasmo de Roterdã. O livro se tornou de imediato um dos clássicos do pensamento humanista e foi dos primeiros a fazer a idealização da América, servindo-se dela como contraponto para uma visão crítica da velha Europa. O Novo Mundo ofereceria, dessa forma, a chance de um recomeço, no qual supostamente não seriam repetidos os erros do passado.

O herói da Utopia é um velho marujo português, Rafael Hitlodeu (ou Hythlodaeus – “contador de histórias”, em grego), que, “jovem ainda, abandonou sua fortuna e, devorado pela paixão de correr o mundo, juntou-se a Américo Vespúcio nas três últimas de suas quatro viagens, cujo relato hoje se lê em quase todo lugar”. Embora fiel companheiro de Vespúcio, ao final da expedição Hitlodeu pediu permissão ao capitão e decidiu que “não retornaria à Europa com ele”, pois resolvera ficar junto com “os 24 homens que foram deixados em uma fortaleza, nos confins do Novo Mundo”.15

Por algum tempo, Hitlodeu viveu na feitoria criada por Vespúcio próximo ao Rio de Janeiro. Mas então ele e cinco companheiros decidiram percorrer o mundo. Primeiro, viajaram para o Oriente, dobrando o cabo da Boa Esperança, tendo alcançado até a Taprobana (as opiniões diferem se se tratava do Ceilão ou de Sumatra, próximo de Málaca). Mas, desiludidos com o que viram lá, empreenderam a viagem de volta, outra vez em direção ao Novo Mundo. Após uma série de desventuras, acabaram chegando à ilha de Utopia – um mundo igualitário, onde os nativos viviam em perfeita harmonia política, social e ecológica.

As indicações dadas por Morus sobre a localização de Utopia permitem supor que ele se baseou na ilha de Fernando de Noronha, descoberta por Vespúcio na mesma viagem na qual ele fundou a feitoria. Na vida real, porém, o destino dos 24 homens deixados por Américo Vespúcio em Cabo Frio nada teve de utópico: eles foram trucidados pelos índios, “por causa dos conflitos havidos entre eles”.16

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Embora nascido em berço de ouro, Américo Vespúcio seria, de início, conhecido apenas como parente de Simonetta Vespúcio, a belíssima adolescente que serviu de modelo para o quadro O Nascimento de Vênus, pintado por Botticelli em 1484. Há indícios de que o próprio Lorenzo de Médici fosse apaixonado por Simonetta.

Simonetta Vespúcio foi eleita “Rainha da Beleza” de Florença em 1471. Ela morreu de tuberculose em 1476, aos 23 anos. O pintor Piero de Cosimo a retratou, de memória, anos depois, e pôs uma serpente em seu pescoço para simbolizar a doença que a vitimara. Na mesma época, outro pintor, Domenico Ghirlandaio, retratou Vespúcio como figurante do quadro Madonna della Misericordia. Este é o único retrato autêntico de Vespúcio.

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A Quarta Parte do Mundo

Foi o historiador Capistrano de Abreu (1853-1927) o primeiro a perceber as extraordinárias repercussões do encontro entre Vespúcio e a frota de Cabral em Bezeguiche. Em 1900, em seu admirável livro O descobrimento do Brasil pelos portugueses, Capistrano dedicou um capítulo inteiro a esse encontro e às suas consequências. De acordo com o historiador cearense, foi graças às informações obtidas em Bezeguiche que Vespúcio pôde concluir que as novas terras descobertas por Colombo não eram a Ásia, mas sim parte de um continente. Foi por isso que, ao retornar à Europa, Américo Vespúcio lançou a tese de que estivera em um “novo mundo”.

Embora várias incorreções geográficas e alguns exageros tenham sido encontrados nas cartas de Vespúcio, o episódio do “banquete antropofágico”, do qual foi vítima um dos marinheiros de seu navio, foi, ao que tudo indica, verídico. Afinal, o caso serviu para ilustrar o mapa conhecido como Kunstman II, feito em 1503 (ou início de 1504). Como a carta na qual Vespúcio descreve o episódio só foi escrita em agosto de 1504, o mapa não pode ter se baseado nas informações de Vespúcio. Para fazer a gravura reproduzida abaixo, o cartógrafo anônimo que desenhou o mapa deve ter sido informado da morte e deglutição do marujo por outro membro da expedição – o que é uma garantia a mais da veracidade do caso.

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O Juramento do Degredado

Ao retornar a Portugal, a bordo de um dos navios da expedição de Gonçalo Coelho, Afonso Ribeiro e o outro degredado (cujo nome se desconhece) prestaram um depoimento juramentado perante o tabelião Valentim Fernandes. O documento, conhecido como Ato Notarial de Valentim Fernandes, datado de 20 de maio de 1503, guarda várias semelhanças com a carta Mundus Novus, que Vespúcio redigiria mais tarde, o que permite supor que o florentino também se baseou no depoimento de Ribeiro para fazer sua vívida descrição dos costumes dos indígenas do Brasil, embora ele próprio assegure ter vivido 27 dias entre eles. De todo modo, Vespúcio raramente citava suas fontes.

Valentim Fernandes, alemão da Morávia, era autor, editor, impressor, tradutor e tabelião público que vivia em Lisboa e fora escudeiro da rainha D.Leonor, mulher do rei D.João II e irmã do rei D.Manoel. O documento original redigido por Fernandes se perdeu e só ficou conhecido a partir da cópia feita em 1504 pelo clérigo alemão Líbero Wigenhoist, que vivia em Colônia.

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Santos Nomes

Quem primeiro propôs a tese de que a expedição de Gonçalo Coelho batizou os acidentes geográficos com o nome do santo do dia foi Francisco de Varnhagen, em 1854. Alguns historiadores discordam dessa teoria, que só seria factível se os navios de Coelho tivessem permanecido ancorados por um mês na foz do rio São Francisco – sem motivo aparente para pausa tão longa. De todo modo, nenhum desses historiadores propôs uma explicação mais engenhosa para justificar a nomenclatura da costa. Quanto à origem do nome “Cananeia”, a tese mais provável é a de que algum integrante da expedição de Gonçalo Coelho tivesse acompanhado Vasco da Gama à Índia em 1498 e, julgando que a ilha, avistada em 27 de janeiro de 1502, no litoral sul de São Paulo, era de tal forma semelhante à região de Cananor (próxima a Calicute, na Índia), sugeriu que ela fosse batizada com nome que fizesse referência a essa similaridade. Outra tese é de que Cananeia só teria sido batizada por Martim Afonso de Sousa em 1531, em homenagem à índia Caniné, uma nativa que se tornara concubina do grande capitão.

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O Naufrágio

Em 1987 as sociedades privadas Una Cultural, presidida pelo historiador e arqueólogo Márcio Werneck da Cunha, e Águas Claras Produções Submarinas, presidida pelo mergulhador Randal Fonseca, se associaram para iniciar as pesquisas subaquáticas em busca dos vestígios da caravela de Gonçalo Coelho, que naufragou nas proximidades da ilha de Fernando de Noronha no dia 10 de agosto de 1503. Em 1992, o então presidente Fernando Collor se interessou pelo projeto e os pesquisadores obtiveram licença do Ibama e do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural para vasculharem as profundezas marinhas em busca dos vestígios do mais antigo naufrágio de navio europeu ocorrido em território brasileiro. De acordo com as investigações de Werneck e Fonseca, o naufrágio teria ocorrido nas cercanias dos recifes atualmente chamados de Espigões, próximos à ilha dos Sinos. Uma camada de dez metros de calcário deve recobrir o que restou do navio.

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A Feitoria

As primeiras feitorias erguidas pelos portugueses no Brasil eram estabelecimentos bastante simples, cercados por uma paliçada de madeira. Em 1986 os historiadores Márcio Werneck da Cunha e Penha da Silva Leite encontraram a base de uma muralha de pedra em Cabo Frio que julgaram ser vestígios da feitoria de Vespúcio, que teria, assim, pelo menos os alicerces feitos de rocha. Ainda não está comprovado que se trata das ruínas do mais antigo estabelecimento europeu fundado no Brasil, mas, de qualquer modo, Werneck e Silva Leite conseguiram que o local fosse registrado junto à Divisão de Proteção Legal do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC).

Notas

1 – “fama após a morte”: citação da carta que Vespúcio enviou de Lisboa para Lourenço de Pierfrancesco de Médici em agosto de 1502. O original dessa carta, que deu origem ao panfleto Mundus Novus, está no chamado Códice Strozziano 318, da Biblioteca Nacional de Florença. A íntegra da carta foi publicada por T. O.Marcondes de Souza em Amerigo Vespucci e Suas Viagens.

2 – Da carta que Vespúcio escreveu em Sevilha em 18 de junho de 1500 e enviou para Lourenço de Médici existe apenas a cópia arquivada no Códice Riccardiano 1910. Esse Códice está na Biblioteca Riccardiana de Florença, que pertenceu ao marquês Riccardi. O códice foi organizado em 1514 por Piero Vaglienti e reúne cópias de 33 cartas de viagem redigidas pelos próprios viajantes ou por seus financiadores. Além de três cartas de Vespúcio, o códice possui também cópias de cartas escritas por Bartolomeu Marchioni, Girolamo Sernige e Piero Rondinelli. A referida carta de Vespúcio foi publicada pela primeira vez em 1745, por Angelo Bandini.

3 – A cópia da carta que Vespúcio enviou de Cabo Verde para Lorenzo de Médici também está no Códice Riccardiano 1910. Foi publicada pela primeira vez pelo conde Baldelli Bonn, em 1827.

4 – “turbilhões e tempestades”: citação de uma carta sem data que Vespúcio também enviou para Lorenzo de Médici. A cópia dessa carta também está no Códice Strozziano 318, da Biblioteca Nacional de Florença.

5 – Max Justo Guedes é o principal defensor da tese de que a frota de Vespúcio ancorou na atual praia de Areias Alvas. Os argumentos de Justo Guedes – navegador experiente – são sólidos e respeitáveis. Vários outros historiadores, no entanto, acham que o desembarque de Vespúcio se deu na praia dos Marcos. O principal defensor dessa tese é Moacir Soares Pereira, autor de A Navegação de 1501 ao Brasil e Américo Vespúcio.

6 – “duvido que me deem crédito”: citação da carta Mundus Novus. Essa é apenas uma das várias insinuações de Vespúcio de que o Brasil era um local paradisíaco. Noutro trecho da mesma carta, Vespúcio afirma taxativamente: “Em verdade, se o paraíso terrestre está localizado em alguma parte da terra, julgo que não dista muito dessa região.”

7 – Conforme dito na nota 4, o Códice Strozziano 318 é um conjunto de documentos que pertence ao acervo da Biblioteca Nacional de Florença.

8 a 11 – citações de cartas de Vespúcio.

12 – “broncas tribos nômades”: citação de Capistrano de Abreu, no livro O Descobrimento do Brasil.

13 – “gente daquela terra”: citação da Lettera a Soderini.

14 – As informações sobre a vendagem das cartas de Vespúcio foram obtidas no livro Amerigo Vespucci e Suas Viagens, de Marcondes de Souza.

15 – Citações de A Utopia, de Thomas Morus, tradução de Paulo Neves, edição da L&PM (Porto Alegre, 1998).

16 – “desordens havidas entre eles”: citação de Islario General de Todas las Islas del Mundo, de Alonso de Santa Cruz. Santa Cruz foi o cosmógrafo da expedição de Sebastião Caboto que chegou ao Brasil em 1526. Seu livro, descoberto e publicado por Francisco de Varnhagen em 1865, foi escrito em 1527 e é o primeiro a fazer referência ao destino dos 24 homens deixados por Vespúcio em Cabo Frio. Santa Cruz não cita suas fontes.

Texto de Eduardo Bueno em "Náufragos, Traficantes e Degredados", Estação Brasil/GMT Editores Ltda, Rio de Janeiro, 2016, excertos pp.33-56. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa. 

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