11.22.2018

ALIMENTAÇÃO DOS ROMANOS PODE TER CONTRIBUIDO PARA A QUEDA DO IMPÉRIO.


Em busca de mais pistas sobre a dieta romana, rumamos a norte. Sob o sol intenso do areal de Tróia, a arqueóloga Inês Vaz Pinto caminha em direcção ao maior complexo de salga de peixe conhecido no mundo romano. Construído no século I, este conjunto de ruínas romanas tem inúmeros vestígios de hábitos alimentares. Com o estuário do Sado em fundo, dezenas de tanques de salga encontram-se alinhados.

O complexo chegou a ter 25 oficinas de diferentes dimensões. A maior ultrapassaria mil metros quadrados e capacidade de produção seria de 465 m³. Neles, produziram-se durante um longo período conservas e garum. Para além do património edificado, as campanhas de escavação revelaram artefactos de cerâmica, nomeadamente ânforas, restos de crustáceos e de espinhas de peixe, muitos encontrados em antigas lixeiras da época.

Como todos os impérios, Roma nasceu, floresceu e tombou. O motivo é ainda hoje tema de discussão. Surpreendentemente, a resposta pode também estar… no prato. Uma das hipóteses que a equipa do heroica investiga é a possibilidade de o consumo intensivo de um composto resultante do fervimento de vinho em recipientes de chumbo, do qual resultava um molho similar ao moderno ketchup, muito apreciado para temperos, ter deteriorado significativamente a saúde em diferentes pólos do império.

A hipótese académica foi proposta na década de 1980 num artigo escrito por Jerome Nriagu no prestigiado “New England Journal of Medicine”: o autor sugeriu então que o consumo repetido de vinho fervido ou mosto em recipientes recobertos com uma liga de chumbo e prata, o stagnum, que se tornavam doces  devido à formação de acetato de chumbo, terá jogado um papel considerável no declínio do próprio império pelo envenenamento lento de quem o ingeria. Nriagu foi muito criticado pelo excessivo optimismo das suas generalizações face aos dados da amostra e pela sua certeza (ainda por provar) de que o vinho adocicado era preferido pela aristocracia em prejuízo do “vinho fresco”, mas a verdade é que a sua hipótese não foi totalmente abandonada.

“Sapa, defrutum ou carenum eram produtos com diferentes teores de acetato de chumbo obtidos utilizando tempos diferentes de redução do vinho ou mosto original”, explica Cristina Dias. Escasseiam materiais arqueológicos que suportem a certeza da abundância de recipientes de chumbo no mundo romano (provavelmente porque os revestimentos de chumbo dificilmente resistiriam durante dois mil anos), mas conhecem-se textos clássicos que advogam as “vantagens” do seu uso. Plínio, o Velho, e Columela referem muito explicitamente que os recipientes de bronze afectam a qualidade da bebida, pois produzem uma espécie de “ferrugem”, ao passo que o stagnum não produziria consequências visíveis a olho nu no preparado. Na sua “Naturalis Historia”, Plínio comentou mesmo que o romano médio beberia 1 a 5 litros de vinho por dia.

Sabe-se hoje que o envenenamento por chumbo provoca loucura e degeneração mental, e poderá não ter sido meramente acidental o rol de demências descritas nas crónicas de época. Em artigo de 2010 no “Journal of Chemical Education”, Aravind Reddy e Charles Braun, químicos no Dartmouth College, defenderam que, para além dos revestimentos de chumbo, a aristocracia romana utilizaria igualmente produtos de cosmética com este metal e médicos romanos, como Celsus, usá-lo-iam com frequência nas suas poções e preparados farmacológicos. Juntem-se ainda as escavações arqueológicas em Herculano e as análises osteológicas, que permitiram saber que 6 dos 55 esqueletos testados continham teores de chumbo muito mais altos do que o normal (100 a 200 ppm, em comparação com o padrão 20-50 ppm dos Estados Unidos). A hipótese ganha assim um pouco mais de consistência.

As classes mais altas de Roma, que decidiam os destinos do Império, estariam assim em contacto com materiais de chumbo com mais frequência. Uma das linhas de investigação do heroica tenta perceber a validade desta hipótese: terá algo tão banal como um hábito alimentar ajudado a fragilizar um império? Parte da resposta poderá em breve assomar no horizonte, algures entre as suaves curvas das planícies alentejanas…

Entretanto, de volta a Cádis, o projecto “Flor de Garum” recebeu mais um prémio, alimentando a vontade de sabermos mais sobre o que comiam os romanos e por que motivo as suas iguarias não sobreviveram até aos nossos tempos.


Publicado em setembro de 2014 na edição portuguesa da "National Geographic", serie "Grandes Reportagens" e disponível em https://nationalgeographic.sapo.pt/historia/grandes-reportagens/1421-comida-romanos-set2014?start=2. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.






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