11.13.2018

O FIM DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL



A extinção da escravatura foi encaminhada por etapas até o final, em 1888. A maior controvérsia quanto às medidas legais não ocorreu em 1888, mas quando o governo imperial propôs a chamada Lei do Ventre Livre, em 1871. A proposta declarava livres os filhos de mulher escrava nascidos apôs a lei, os.quais ficariam em poder dos senhores de suas mães até a idade de oito anos. A partir dessa idade, os senhores podiam optar entre receber do Estado uma indenização ou utilizar os serviços do menor até completar 21 anos. O projeto partiu de um gabinete conservador, presidido pelo Visconde do Rio Branco, arrebatando desse modo a bandeira do abolicionismo das mãos dos liberais.

O que teria levado o governo a propor uma lei que, sem ter nada de revolucionária, criava problemas nas relações com sua base social de apoio?

A explicação mais razoável é de que a iniciativa resultou de uma opção pessoal do imperador e de seus conselheiros. Embora não estivessem ocorrendo insurreições de escravos, considerava-se nos círculos dirigentes, logo após a Guerra do Paraguai, que o Brasil sofria de uma fraqueza básica em sua frente interna, pois não podia contar com a lealdade de uma grande parceia da população. O encaminhamento da questão servil, mesmo ferindo interesses econômicos importantes, era visto como um mal menor diante desse problema e do risco potencial de revoltas de escravos.

A classe social dominante, pelo contrario, via no projeto um grave risco de subversão da ordem. Libertar escravos por um ato de generosidade do senhor levava os beneficiados ao reconhecimento e à obediência. Abrir caminho à liberdade por força da lei gerava nos escravos a ideia de um direito, o que conduziria o pais à guerra entre as raças.

As posições dos deputados em torno do projeto afinal aprovado são bastante reveladoras. Enquanto os representantes do Nordeste votaram maciçamente a favor da proposta (39 votos a favor e 6 contra), os do Centro-Sul inverteram essa tendência (30 votos contra e 12 a favor). Isso refletia, em parte, o fato de que o tráfico interprovincial vinha diminuindo a dependência do Nordeste com relação à mão-de-obra escrava.

Havia também outro dado importante, relativo à profissão. Um numero significativo de deputados era constituído de funcionários públicos, especial mente magistrados. Esse grupo, que em sua maioria provinha do Nordeste e do Norte, seguia a orientação do governo e votou em peso com ele. Do ponto de vista partidário, não houve uma nítida divisão do voto de liberais e conservadores. Deputados dos dois partidos, indistintamente, votaram a favor ou contra o projeto.

Na prática, a lei de 1871 produziu escassos efeitos. Poucos meninos foram entregues ao poder público e os donos de escravos continuaram a usar seus serviços.

A partir da década de 1880, o movimento abolicionista ganhou força, com a aparição de associações, jornais e o avanço da propaganda. Gente.de condição social diversa participou das campanhas abolicionistas. Entre varias figuras'de elite, destacou-se Joaquim Nabuco, importante parlamentar e escritor, oriundo de uma família de políticos e grandes proprietários rurais de Pernambuco. Entre as pessoas negras ou mestiças, de origem pobre, os nomes mais conhecidos são os de José do Patrocínio, André Rebouças e Luis Gama.

Patrocínio era filho de um padre, que também era fazendeiro dono de escravos, e de uma negra vendedora de frutas. Foi proprietário da Gazeta da Tarde, jornal abolicionista do Rio de Janeiro, ficando famoso por seus discursos emocionados.

O engenheiro Rebouças representava o tipo oposto, uma figura retraída, professor de botânica, cálculo e geometria da Escola Politécnica da Corte. Ele ligava o fim da escravidão ao estabelecimento de uma “democracia rural”, defendendo a distribuição das terras para os escravos libertados e a criação de um imposto territorial que forçasse a venda e subdivisão dos latifúndios.

Luis Gama tem uma biografia de novela. Seu pai pertencia a uma rica família portuguesa da Bahia e sua mãe Luísa Mahin, na afirmação orgulhosa do filho, “era uma negra africana livre que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã”. Gama foi vendido ilegalmente como escravo pelo pai empobrecido, sendo enviado para o Rio e depois para Santos. Junto com outros cem escravos, descalço e faminto, subiu a Serra do Mar. Fugiu da casa de seu senhor, tornou-se soldado e, mais tarde, poeta, advogado e jornalista em São Paulo.

Enquanto o abolicionismo crescia, as províncias do Norte se desinteressavam da manutenção do sistema escravista, a ponto de o Ceará ter declarado extinta a escravidão por conta própria, em 1884. Nesse quadro, ocorreu em 1885 a aprovação da Lei dos Sexagenários, também chamada de Lei Saraiva- Cotejipe. Proposta por um gabinete liberal presidido pelo conselheiro Saraiva, a medida foi aprovada no Senado quando os conservadores, tendo à frente o Barão de Cotejipe, haviam voltado ao poder. Em tinhas gerais, ela concedia liberdade aos cativos maiores de sessenta anos e estabelecia normas para a libertação gradual de todos os escravos, mediante indenização. A lei foi pensada como forma de se deter o abolicionismo radical e não alcançou seu objetivo.

Entre 1885 e 1888, apôs uma breve parada, a campanha abolicionista ganhou ímpeto. O fato mais importante agora era a desorganização do trabalho nas fazendas paulistas, provocada pela fuga em massa de escravos. Ativistas liderados por Antonio Bento, membro de uma família rica de São Paulo, partiam para as fazendas e cidades do interior, incentivando os atos de rebeldia. Em pouco tempo, Santos converteu-se no centro onde se abrigavam os escravos fugidos. Nesse ínterim, como vimos, a elite cafeeira paulista apressou o funcionamento do plano de imigração, percebendo que o sistema escravista se desagregava rapidamente.

No ano de 1888, apegavam-se à escravidão apenas os representantes das velhas zonas cafeeiras do Vale do Paraíba, cujas fortunas em declínio se concentravam nos escravos. Um projeto preparado pelo senador conservador de São Paulo, Antonio Prado, ligado ao Oeste Paulista, tentou ainda contemporizar. Previa a imediata libertação dos escravos, sujeita à indenização e prestação de serviços por três meses, de modo a assegurar a próxima colheita.

Diante da oposição dos liberais, o presidente do Conselho, o conservador João Alfredo, decidiu propor a Abolição sem restrições. A iniciativa foi aprovada por grande maioria parlamentar, sendo sancionada a 13 de maio de 1888 pela Princesa Isabel, que se encontrava na regência do trono. Dos nove deputados que votaram contra o projeto, oito representavam a província do Rio de Janeiro. No Senado, o Barão de Cotejipe chefiou a frágil resistência, lançando uma ameaça: “Daqui a pouco se pedirá a divisão das terras e o Estado poderá decretar a expropriação sem indenização”.

O destino dos ex-escravos variou de acordo com a região do país. No Nordeste, transformaram-se, em regra, em dependentes dos grandes proprietários. O Maranhão representou uma exceção, pois ai os libertos abandonaram as fazendas e se instalaram nas terras desocupadas como posseiros.

No Vale do Paraíba, os antigos escravos viraram parceiros nas fazendas de café em decadência e, mais tarde, pequenos sitiantes ou peões para cuidar do gado.

A fuga em massa foi característica dos últimos anos que antecederam a Abolição no Oeste Paulista. Mesmo assim o fluxo de negros para a cidade de São Paulo e outras regiões durou pelo menos dez anos.

Nos centras urbanos de São Paulo e do Rio de Janeiro, a situação variou. Enquanto em São Paulo os empregos estáveis foram ocupados pelos trabalhadores imigrantes; relegando-se os ex-escravos aos serviços irregulares e mal pagos, no Rio o quadro foi algo diverso. Tendo em vista a tradição de emprego de negros escravos e livres nas oficinas artesanais e manufaturas, assim como o menor peso da imigração, o trabalhador negro teve ai oportunidades relativamente maiores. Por exemplo, eram negros cerca de 30% dos trabalhadores fabris cariocas em 1891, ao passa que só os imigrantes ocupavam 84% dos empregos na indústria paulistana em 1893. No Rio Grande do Sul ocorreu, como em São Paulo, um processo de substituição de escravos ou ex-escravos por imigrantes nas oportunidades de trabalho regular.

Apesar das variações de acordo com as diferentes regiões do país, a abolição da escravatura nâo eliminou o problema do negro. A opção pelo trabalhador imigrante, nas áreas regionais mais dinâmicas da economia, e as escassas oportunidades abertas ao ex-escravo, em outras áreas, resultaram em uma profunda desigualdade social da população negra. Fruto em parte do preconceito, essa desigualdade acabou por reforçar o próprio preconceito contra o negro. Sobretudo nas regiões de forte imigração, ele foi considerado um ser inferior, perigoso, vadio e propenso ao crime; mas útil quando subserviente.

AS CONTROVÉRSIAS SOBRE A ESCRAVIDÃO

Poucos temas da história brasileira têm sido tão discutidos e investigados como a escravidão. Há apaixonadas controvérsias sobre os índices de mortalidade de escravos na travessia do Atlântico, sobre as possibilidades de organização familiar dos escravos, sobre o significado das alforrias, ou seja, da libertação de cativos anterior a 1888, sobre a chamada “brecha camponesa”, sobre a condição do escravo em situações de trabalho diversas etc.

A controvérsia permitiu dar maior substância à constatação de que o sistema escravista não se sustentou apenas pela violência aberta, embora esta fosse fundamental. Ele teve uma longa vida também por sua abrangência, pela diferenciação entre escravos, pelas expectativas reais ou imaginárias de alcançar a liberdade. Já vimos como os escravos se distinguiam segundo a nacionalidade, o tempo de permanência no pais quando africanos, a cor da pele, o tipo de atividade. Examinaremos agora, na impossibilidade de abordar todas as questões, duas das mais significativas: a questão da “brecha camponesa” e a das alforrias.

A existência de uma “brecha camponesa” é sustentada pelos autores, com Ciro Cardoso à frente, que destacam a importância do setor dedicado ao mercado interno, na economia brasileira colonial e do século XIX. A tese parte da constatação de que nas fazendas de cana, e sobretudo de café, os escravos tiveram permissão de trabalhar em quintais próximos a suas cabanas ou em pequenos lotes de terra, produzindo gêneros alimentícios para seu sustento e para venda no mercado. Essa permissão teria se generalizado, a ponto de se converter em um costume. Desse modo, afirma-se que, ao produzir por conta própria para o mercado, o escravo se tomou também um camponês, abrindo uma brecha no sistema escravista. A constatação aponta ainda para o fato de que, embora o escravo fosse juridicamente uma coisa, acabava, na prática das relações sociais, por ter certos direitos derivados do costume.

Existe, porém, controvérsia sobre o vulto da produção escrava para o mercado, havendo autores, como Jacob Gorender, que, sem negar sua existência, consideram-na pouco relevante.

O problema da alforria é suscitado pela existência de um grande numero de escravos libertos nas colônias espanholas e no Brasil, em comparação com as possessões inglesas e francesas.

De fato, apesar da precariedade dos números, constatamos que, no fim do período colonial, os libertos ou livres representavam 42% da população de origem africana (negros ou mulatos) e 27,8% do total da população brasileira, enquanto os escravos correspondiam a 38,1% desse total. Segundo os dados do recenseamento de 1872, libertos ou livres eram 73% da população de origem africana e 43% do total da população brasileira, sendo escravos 15% deste total. Livres eram negros ou mulatos jâ nascidos em liberdade; libertos eram escravos que obtiveram a liberdade no curso da vida. As alforrias ocorriam quando o próprio escravo ou um terceiro comprava sua liberdade ou quando o senhor decidia libertá-lo, O fato de que o maior numero de alforrias, mediante pagamento, tenha ocorrido nas cidades indica que nelas existia maior possibilidade de o escravo juntar economias.

Uma explicação fácil para os atos de libertação por iniciativa dos senhores é a de que eram libertados apenas velhos e doentes, por razões econômicas. Entretanto, alguns estudos poem em duvida essa hipótese. Por exemplo, uma pesquisa que abrangia 7 mil libertos em Salvador, entre 1684 e 1785, revelou que a idade média dos beneficiados era de apenas quinze anos.

Isso não quer dizer que se deviam eliminar as considerações econômicas entre as causas do grande numero de alforrias. Os estudos existentes sugerem que, na comparação entre zonas de economia em expansão e zonas em decadência, havia mais alforrias nestas do que nas primeiras.

Lembremos porém que razões afetivas podem ter pesado fortemente nos atos de libertação, pois, na divisão entre sexos, constata-se uma nítida predominância de mulheres. Assim, na cidade do Rio de Janeiro, entre 1807 e 1831, as mulheres constituíram 64% dos alforriados. Essa proporção é bastante alta se considerarmos que a proporção de homens na população escrava era bem superior à de mulheres.

E importante salientar que os libertos não tinham condição idêntica à da população livre. Até 1865, a alforria mediante pagamento ou gratuita podia ser revogada pelo antigo senhor sob a simples alegação de ingratidão. Além disso, no papel ou na prática, a libertação, em muitos casos, era acompanhada de uma série de restrições, como a de prestar serviços ao dono por um certo tempo. A legislação posterior a 1870 incorporou alias esse costume, ao determinar a liberdade de crianças e velhos sob condição.

Outro fato digno de nota é o de que, embora encontremos libertos em ações rebeldes da população negra, isso não era muito comum, porque eles ficaram em uma posição intermediária entre livres e escravos, aproximando- se socialmente dos brancos pobres. As alforrias suavizaram assim o choque racial direto. Finalmente, cabe ressaltar que, em certas condições de forte presença da população negra, os alforriados tiveram um papel importante de preservação comunitária. O caso mais típico é o da Bahia, onde os libertos no século XIX asseguraram a existência de uma comunidade que combinou culturas africanas e europeias.

Texto de Boris Fausto em "História do Brasil", Editora da Universidade de São Paulo/ Fundação do Desenvolvimento da Educação, São Paulo, 1995, excertos pp. 217-227. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.






















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