12.03.2018

A MUNDIALIZAÇÃO DA ALIMENTAÇÃO



A maior revolução na alimentação humana ocorreu no período moderno com a ruptura no isolamento continental, quando o intercâmbio de produtos de diferentes continentes, ocorrido no bojo da expansão colonial européia, alterou radicalmente a dieta de praticamente todos os povos do mundo. As especiarias asiáticas - pimenta, canela, cravo, noz-moscada -, difundiram-se para a Europa e chegaram aos outros continentes. As plantas alimentícias das Américas: o milho, a batata, o tomate, o amendoim, os pimentões propagaram-se pelo planeta. Gêneros tropicais, como a cana-de-açúcar, o chá, o café e o chocolate, combinaram-se para fornecer um novo padrão de consumo de calorias e de bebidas excitantes, que, ao lado do tabaco, tornaram-se hábitos internacionais. Produtos típicos da Europa mediterrânica como o trigo e a uva acompanharam a colonização de diversos países e o álcool destilado penetrou em todos os continentes. As viagens dos alimentos pela história, seu périplo transoceânico na época das navegações e o seu impacto na constituição da era moderna, com migrações e mestiçagens nunca antes conhecidas, delinearão o percurso deste capítulo.

Os impactos sobre os padrões alimentares foram sentidos de forma diferenciada mas com intensidade análoga na Europa e na América. A chegada, por meio da Europa, de alguns gêneros de origem asiática na América (cana-de-açúcar e algodão) e o seu cultivo em grande escala resultaram no estabelecimento da monocultura de agro-exportação que submeteu seus povos aos interesses dos grandes grupos econômicos internacionais, destruindo estruturas agrárias tradicionais (como a posse comunal da terra), corroendo a agricultura de subsistência e condicionando-os aos preços e demandas do mercado mundial.

O tráfico comercial interoceânico que inaugurou-se no período moderno produziu a acumulação primitiva do capital, alterando profundamente a vida social de todo o mundo. A cultura árabe já vinha transmitindo lentamente, desde a Baixa Idade Média, diversos produtos asiáticos para a alimentação européia, desde as especiarias até produtos tão básicos como o arroz, o sorgo, o algodão, as frutas cítricas, as mangas, a cana-de-açúcar e a berinjela. A expansão do Islã levou tais alimentos para a Europa, as Cruzadas ajudaram a sua difusão e o luxo da nobreza incorporou-os como parte de sua opulência. No momento em que essa alimentação deixou de ser um luxuoso privilégio e começou a expandir-se para diversas camadas sociais surgiu o primeiro mercado mundial, sob a égide sucessiva das especiarias, do açúcar e das bebidas quentes (chocolate, chá e café).

O comércio dos novos gêneros foi o motor do surgimento de novas formações socioeconômicas, como foi o caso do sistema de plantations na América e, ao mesmo tempo, da expansão, num grau nunca antes conhecido, do tráfico de seres humanos. Os capitais criados nesse tráfico triplo - produtos asiáticos para a Europa, escravos africanos para a América, produtos americanos para a Europa e África - alavancaram as transformações no sistema de produção artesanal na Europa. Reuniram-se, então, as condições: a demanda, o produto (algodão) e o capital, para o surgimento da indústria têxtil que deflagrou a Revolução Industrial.

A pimenta moveu as naus dos descobridores e o açúcar produziu a escravidão africana, deslocando massas humanas entre continentes, a ponto de um historiador afirmar que "o açúcar - ou melhor, o grande mercado de commodities que o demandou - foi uma das massivas forças demográficas na história mundial".'

Um exemplo intrigante da influência decisiva da alimentação na história política e econômica é a avidez pelas especiarias, a cuja motivação foram atribuídas diferentes origens. As especia rias são alimentos/drogas, substâncias de consumo gustativo, mas também medicinal e afrodisíaco. Foram atribuídas origens míticas paradisíacas para essas substâncias, que viriam do próprio jardim do Éden, carregadas pelos quatro rios que nele nascem, e que corporificariam as virtudes solares das regiões quentes e desconhecidas do Oriente.

A época moderna deve alguns dos seus elementos fundadores essenciais à ânsia pelas especiarias, que levou ao ciclo das navegações, aos grandes descobrimentos, ao sistema mundial, ao comércio transoceânico e à formação dos modernos impérios europeus. O primeiro destes impérios comerciais foi Portugal, chamado Império da Pimenta. Tendo descoberto primeiro as remotas ilhas Molucas, na Indonésia, único lugar onde nasciam algumas das especiarias (o cravo e a noz-moscada, os portugueses mantiveram um virtual monopólio do seu comércio até serem expulsos pelos holandeses que, por sua vez, foram derrotados pelos ingleses.

Desde o Império Romano a avidez pelas especiarias era grande. O termo "pimenta" originou-se do latim pigmenta, que tinha significado de pigmento. Mais tarde passou a referir-se ao vinho enriquecido na cor e no aroma com especiarias e, por extensão, a qualquer especiaria. Entre os espanhóis, usou-se o termo para as plantas americanas do gênero Capsicum, tanto o tipo doce ou pimentão, como o tipo picante, as diversas pimentas. A pimenta-do-reino (Piper nigrum), originada da Índia, tem seu nome na maior parte das línguas européias, à exceção do português e do espanhol, derivado do termo sânscrito pippali.

Esta necessidade de especiarias foi explicada como sendo necessária para disfarçar a má qualidade da carne, mas Fernand Braudel vai mais fundo, quando refere-se aos "psiquismos olfativos", a uma ânsia por sabores e aromas fortes e misturados, valorizados por orientações médicas que atribuíam-lhes qualidades adequadas aos humores, especialmente de serem afrodisíacos, estimulantes e infusores de calor. Essa volúpia pelos condimentos almiscarados, ambreados, edulcorados e apimentados, originária da época clássica e intensificada a partir da Baixa Idade Média, esgotou-se na Europa do sul em meados do século XVII, quando houve um retorno dos perfumes florais e da alimentação menos temperada. Nas regiões nórdicas permaneceu mais tempo o uso intenso de certos condimentos, o cominho em particular. Nos mundos americano, asiático e africano o gosto dos picantes intensos espalhou-se por diversas culinárias.

As tradicionais plantas aromáticas européias - açafrão, tomilho, manjerona, louro, segurelha, anis, coentro e alho -, usadas desde a Grécia e Roma, juntaram-se com as especiarias asiáticas: pimenta-do-reino, canela, cravo, noz-moscada, cardamomo e gengibre, e com as pimentas americanas e africanas, especialmente as Capsicum, para constituírem e difundirem um arsenal mundial dos estimulantes do gosto.

Essa busca de especiarias, levando à descoberta da América, provocou indiretamente outra revolução nos hábitos alimentares mundiais, colocando em contato espécies que nunca antes tinham sido transplantadas. Os contatos e as influências foram feitos em diversos sentidos: a batata, o milho, o tomate, o amendoim, o pimentão, o feijão e o cacau das Américas difundem-se pelo mundo, junto com o chá da China, o café da Etiópia, a canela do Ceilão, o cravo das Molucas, a pimenta do Malabar e a noz-moscada de Banda, enquanto produtos da dieta européia como o trigo, o vinho e o álcool destilado também espalham-se de sua área original para uma difusão mundial.

Cada um dos produtos de origem americana teve uma história específica na sua expansão para fora do continente de origem. Muitos dos pratos considerados mais tipicamente "regionais" de várias culinárias européias só surgiram após a chegada dos gêneros americanos - pensemos nas massas italianas, por exemplo: o que seria do espaguete sem o tomate? Ou da polenta sem o milho? Alguns, como os pimentões, vieram a influenciar culinárias tão distantes como a africana, a do sudeste asiático e a húngara, onde, moído, tornou-se o condimento mais característico do país: a páprica do gulasb. O tomate, do termo asteca jitomate, foi considerado inicialmente um veneno, que só podia ser consumido após horas de cozimento. Mais tarde, valorizado por italianos e franceses recebeu o nome de pomodoro (maçã dourada) e de pomme d'amour (maçã do amor) passando a ser considerado afrodisíaco. A batata, o milho, o feijão e, entre os animais, o caso singular do peru (seu nome em inglês, turkey, evidencia a via otomana pela qual esta ave de origem sul-americana chegou à Europa e depois aos Estados Unidos), foram sendo adotados lentamente, e só no século XIX incorporaram-se definitivamente à alimentação européia e de grande parte do mundo.

Revolução semelhante somente ocorrera antes quando, em meados do ano 1000, os árabes começaram a fazer uma lenta difusão de uma série de produtos que a Europa até então não conhecia, como o açúcar, a laranja e as próprias especiarias asiáticas, até então seu monopólio comercial. Tais produtos de luxo, naquela época, mantiveram-se, entretanto, restritos à nobreza.

Na história da alimentação moderna assume grande importância a expansão no consumo de diversos produtos de luxo, dos quais o principal, entre as especiarias no século XVI, foi a pimenta. A principal mercadoria do comércio oriental levou Vasco da Gama a circunavegar o cabo da Boa Esperança, em 1498, obtendo o monopólio para os portugueses e, duas décadas depois, buscando um caminho ocidental para as ilhas das especiarias (as Molucas, na Indonésia) que rompesse a exclusividade lusitana, Fernando de Magalhães realizou a primeira volta ao mundo. Após 1650, a pimenta perde importância, mas continua presente, especialmente na Europa do norte.

Os holandeses, ao açambarcarem o tráfico internacional das especiarias desbancando os portugueses, tornaram Amsterdã o principal entreposto de distribuição européia do tráfico das Índias. Para isso, eles dedicaram-se a uma sistemática atividade de extermínio das plantas produtoras de especiarias em todos os lugares, à exceção de certas ilhas onde especializaram o seu cultivo. As árvores de noz-moscada foram restritas à ilha Amboíno, sob pena de morte para quem contrabandeasse sementes, as de cravo, à ilha de Banda, e as de canela, ao Ceilão. O francês Pierre Poivre foi um dos que conseguiu, no século XVIII, subtrair sementes de moscadeiros para a ilha Maurício, possessão francesa no Índico, rompendo o monopólio holandês, atacado também pelos ingleses, que tomam o Ceilão em 1796.

Se a busca das especiarias impulsionou as grandes descobertas marítimas e a adoção do açúcar levou à escravidão africana, os desequilíbrios provocados pelas crises alimentares do século XVIII deflagraram as revoltas que culminaram na Revolução Francesa em 1789, quando os pobres se indignavam com o uso da mais pura farinha de trigo para empoar as perucas da nobreza ao mesmo tempo em que a plebe passava por privação de pão. Da mesma forma, quase um século e meio mais tarde, a Revolução Russa de fevereiro de 1917 será desencadeada sob a consigna de "pão, paz e terra". A alimentação ocupa, como um ator invisível, o cenário dos grandes processos constitutivos da modernidade.

Em outro âmbito, mais imperceptível, dos hábitos e costumes, a alimentação também participa dessa revolução silenciosa que constitui o que foi chamado "processo civilizatório", no qual as maneiras à mesa ocupam tão destacado papel.2 O uso do garfo, a adoção do guardanapo, o prato como a base sob a qual se come substituindo um pão redondo e chato são todos aspectos desses novos costumes, assim como o uso de cadeiras e da mesa, que no Oriente e no mundo árabe não conseguiu substituir o uso de comer ao nível do solo.

Os produtos e as maneiras ocidentais à mesa se espalham por meio das comunidades européias que se estabelecem em diversos pontos da África, da Ásia e da América. Essa difusão é de mão dupla, tornando-se uma fusão com os produtos e costumes locais. A mestiçagem é mais completa nas Américas, onde os três componentes étnicos - europeu, indígena e africano - foram amalgamados. O berço e cadinho primordial dessa fusão foi o Caribe e o vetor desse processo é a atividade de flibusteiros e bucaneiros que, antes de se tornarem os piratas oficiais a serviço da Inglaterra e França para desafiarem o monopólio ibérico das índias ocidentais, eram marginais europeus vivendo à moda indígena, em cuja escola culinária aprenderam as técnicas e adotaram os produtos. O próprio termo boucan significa o método de defumação da carne com lenha verde (semelhante ao moquém dos índios litorâneos do Brasil), assim como barbecue (churrasco) vem das ilhas de Barbacoa.

O papel destacado dos bucaneiros na circulação de produtos, especialmente pelo espaço caraíba (mas chegando até o Índico e o Pacífico), levou à difusão de muitos produtos americanos pelo mundo e, particularmente, na África, das pimentas Capsicum, que passaram a ser conhecidas como Guinea pepper. O amendoim, com origem nas Antilhas, chamado cacau da terra, tlal-cacakuatl, pelos astecas, e de "pistache das ilhas" pelos europeus, também tornou-se um gênero típico na África ocidental, de onde chegou ao Brasil colonial com os escravos e incorporou-se à cozinha baiana, por exemplo, no vatapá.

Tais agentes da mestiçagem, piratas ou navegadores, missionários ou escravos, cumpriram o papel de difusores de produtos e de hábitos globais, realizando a primeira fusão planetária de todos os continentes. Os barcos de Vasco da Gama e de Fernando de Magalhães abriram uma era de unificação global, de "desencravamento planetário". Pela primeira vez todos os povos da Terra entravam em contato abrindo um intercâmbio generalizado dos gêneros de todos os continentes.

Além dos metais preciosos, especialmente o ouro e a prata das Américas, os alimentos foram as principais mercadorias do mercado intercontinental. Alimentos indispensáveis e triviais como o trigo, no comércio mediterrânico e norte-europeu, e exóticos luxos, como as especiarias do Oriente e, mais tarde, o açúcar da América, inicialmente foram consumos suntuários e supérfluos das elites aristocráticas e, depois, tornaram-se necessidades alimentares de massas e um dos motores mais importantes do comércio mundial.


Texto de Henrique Carneiro publicado em "Comida e Sociedade - Uma História da Alimentação", Elsevier Editora, Rio de Janeiro, 2003, excertos do capítulo 8. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.











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