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Lilith |
Embora a autoria do livro do Gênese tenha sido durante muito tempo atribuída a Moisés, hoje aceita-se que a autoria foi de muitos sacerdotes hebreus que durante 400 anos reinterpretaram os mitos antigos e incorporaram o mito da queda de Adão e Eva do Paraíso. Em 400 a.C, na história da tentação de Eva pela serpente, os sacerdotes hebreus mataram dois coelhos com uma cajadada: livraram-se da Deusa, que era diretamente associada à serpente, representando-a nos mitos antigos, e fizeram de Eva e de todas as mulheres o bode expiatório dali por diante.
No período Neolítico, a idéia de criação e manutenção da vida estava associada à Deusa. Na Bíblia, ela foi suplantada pela idéia patriarcal de um Deus como um pai autoritário e punitivo.
Existem diversas interpretações do mito de Adão e Eva, mas em 35 Kreps, B., op. cit. quase todas Eva é a única responsável por todos os males, pois teria sido sua fraqueza que provocou a expulsão do Paraíso. Alguns acham que comer o fruto proibido se trata do ato sexual, e que, tendo descoberto o orgasmo, Adão e Eva acreditaram ser iguais a Deus. Para outros, seria mesmo uma árvore do conhecimento e que o gesto deles significa um pecado de orgulho (que no início vinha à frente dos sete pecados capitais).
O judaísmo jamais considerou o pecado original um erro carnal e, sim, um pecado de conhecimento e competição com Deus. O cristianismo é muito mais severo com a mulher. Eva tenta Adão e, pelo caminho do pecado original, caímos na condição humana com todo seu sofrimento. A mulher é condenada duramente como origem do pecado e da degradação. "Não permito à mulher ensinar nem dominar o homem; que ela se mantenha, portanto, em silêncio. Foi Adão o primeiro a ser modelado. Eva, só depois. E não foi Adão o seduzido e, sim, a mulher, que, seduzida, caiu na transgressão." (Primeira Epístola a Timóteo. 2:2-14).
Nos séculos seguintes, a condenação da Igreja à prática carnal continuou intensa. Desenvolveram uma ideologia potente de negação do sexo, tinham obsessão por superar o apetite sexual: "Para eles a sexualidade representava um perigo gravíssimo e um defeito fatal; encaravam a virgindade como algo que se opunha e vencia a sexualidade, e, infelizmente, não conseguiram perceber que a renúncia não afasta nem anula o desejo."
Eva tornou-se o símbolo da negação do sexo que caracteriza o cristianismo. No século II, o apologista Tertuliano escreveu De virgimbus velandis (Sobre o recato das virgens), no qual observou que as mulheres melhor fariam se usassem roupas de luto, já que eram descendentes de Eva, a causa de toda a miséria humana.
Um dos aspectos mais interessantes do mito de Adão e Eva foi o fato de terem percebido que estavam nus, o que faz uma ligação entre "o bem e o mal" e a sexualidade. "A conseqüência de conhecer o sexo é estabelecer uma separação entre sexualidade e procriação. Deus introduziu inimizade entre a serpente e a mulher" (Gn 3:15). Quando o livro do Gênese foi escrito, a serpente estava claramente associada à deusa da fertilidade e a representava simbolicamente. Por isso, Deus ordenou que a sexualidade livre e desimpedida da deusa da fertilidade fosse proibida para as mulheres, restando a elas a maternidade como única maneira possível de expressar sua sexualidade. A sexualidade da mulher ficou limitada, então, por duas condições: a mulher deveria se subordinar ao marido e dar à luz na dor.
Para santo Agostinho, o homem e a mulher feitos por Deus inicialmente tinham absoluto controle de seus corpos, No Jardim do Éden, se por acaso existiu sexo, certamente foi frio e espaçado, sem erotismo e nenhum êxtase. Seu objetivo seria apenas o de cumprir as exigências do processo reprodutivo. Quando Adão e Eva caíram em pecado, tomaram consciência de impulsos novos e egoístas, isto é, da luxúria, sobre os quais não tinham controle. Imediatamente caíram em si e ficaram envergonhados de sua nudez. Como Adão e Eva não conseguiram controlar sua excitação, rapidamente fizeram tangas com as folhas de figueira, tentando esconder o que agora passava a ser chamado região pudenda (do latim pudere, ficar envergonhado). Santo Agostinho acreditava que os descendentes de Adão e Eva herdaram o desejo sexual incontrolável e a culpa da transgressão original.
Por ainda persistirem na humanidade, pode-se explicar a perversidade e a independência dos órgãos sexuais, a natureza intratável do impulso carnal e a vergonha geralmente suscitada pelo ato do coito.
Sexo e luxúria eram essenciais à doutrina do pecado original, e todo ato sexual praticado pela humanidade, subseqüente à queda, era necessariamente mau, assim como toda criança nascia em pecado. Deus tinha iluminado o primeiro homem e a primeira mulher com um inocente instinto físico, com o propósito de continuar a espécie, mas a luxúria o transformou em algo vergonhoso. Então, a esperança maior de redenção da humanidade consistia em rejeitar o coito, e, assim, a culpa herdada de Adão e Eva. Somente com o celibato — recusa total de sexo — seria possível alcançar o estado de graça que existiu no Jardim do Éden. Os fracos que não o conseguissem deveriam lutar para praticar o sexo sem paixão, ao produzirem a geração seguinte de cristãos.
Um mito traduz as regras de conduta de um grupo social ou religioso. Não tem autor, e seu caráter mais profundo é o poder que exerce sobre nós, geralmente à nossa revelia, no nosso inconsciente. "O mito de Adão e Eva modelou e aterrorizou a vida sexual e moral das gerações seguintes de homens e mulheres tementes a Deus e ainda hoje controla a vida de milhões de cristãos. Essa imagem coletiva poderosa responde pelo sentimento de culpa e pela vergonha que estão profundamente entranhadas nas pessoas e contribuem para o conflito sexual de nossa sociedade pós-cristianismo."
Tertuliano, que costuma ser chamado de "um dos pais da Igreja Cristã", novamente acusa as mulheres: "E você não sabe o que é uma Eva? A sentença de Deus sobre esse seu sexo subsiste até essa era; a culpa também deve subsistir. Você é o caminho de entrada do diabo (...) o primeiro desertor da lei divina; você foi quem persuadiu aquele a quem o diabo não foi suficientemente valente para atacar. Você destruiu com tanta facilidade a imagem de Deus, o homem. Por causa de seu demérito, ou seja, a morte, até mesmo o Filho de Deus teve de morrer."
E as mulheres tentaram se defender das acusações sofridas por quase dois mil anos. Em alguns cartazes das manifestações feministas da década de 1960, estava escrito: "Eva foi falsamente incriminada."
Lilith: o primeiro conflito sexual da história
Eva não foi a primeira mulher de Adão. Antes dela, houve Lilith, mas o amor deles foi conturbado. Quando deitavam na cama para fazer sexo, na posição mais natural — a mulher por baixo e o homem por cima —, Lilith se impacientava e demonstrava seu desagrado. Perguntava a Adão: "Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?" Adão ficava em silêncio, perplexo. Mas Lilith insistia: "Por que ser dominada por você? Eu também fui feita de pó e sou tua igual."
Ela pedia para inverter as posições sexuais para estabelecer uma harmonia que deve significar a igualdade entre os dois corpos e as duas almas. Adão respondia secamente que Lilith era submetida a ele, devia estar simbolicamente sob ele e suportar seu corpo.
Existe uma ordem que não é lícito transgredir. A mulher não aceita essa imposição e se rebela contra Adão. Rompe-se o equilíbrio.
Adão recusa-se a conceder a igualdade significativa à companheira. Lilith pronuncia irritada o nome de Deus e, acusando Adão, afasta-se. Estão descendo as primeiras trevas da noite de sábado. Lilith foi embora.
Adão tem medo, sente que a escuridão o oprime. Parece-lhe que todas as coisas boas se estragam. Acorda, olha em torno e não encontra Lilith. Mais uma vez a companheira desobedeceu à sua ordem.
Dirige-se a Javé: "Procurei em meu leito, à noite, aquela que é o amor de minha alma, procurei e não a encontrei." (Ct 3:1) Pede ajuda ao Pai e o Pai quer saber a causa do litígio, e compreende que a mulher desafiou o homem e, portanto, o divino.
Lilith, afirmou-se, é um demônio. Pelas escrituras, a serpente é um demônio; Lilith é, portanto, o veículo do pecado da transgressão.
A serpente-demônio, ou o próprio demoníaco que existe em Lilith, impele a mulher a fazer algo que o homem não permite: Lilith pede a Inversão das posições sexuais equivalentes aos papéis, enquanto Eva prova da árvore proibida, em obediência à serpente. A serpente, no mundo de Lilith, pode ser equivalente à manifestação do instinto codificado pela pergunta: "Por que devo sempre deitar-me embaixo de ti? Também eu fui feita de pó e por isso sou tua igual." Adão, ao contrário, afasta de si a ameaça.
Lilith pede para ser considerada igual, Eva pensa que não há morte ao assumir a sabedoria interdita. Lilith desobedeceu à supremacia de Adão, Eva desobedeceu à proibição. Ambas assumem um risco mediante um ato.
Javé deu a ordem:
— O desejo da mulher é para seu marido. Volta para ele.
Lilith responde não com a obediência, mas com a recusa. Javé insiste:
— Volta ao desejo, volta a desejar teu marido.
Mas a natureza de Lilith mudou no momento em que blasfemou contra Deus, e não existe mais obediência. Então, Javé manda em direção ao mar Vermelho, para onde ela havia ido, uma formação de anjos. Eles a encontram nas charnecas desertas do mar Arábico onde, segundo a tradição hebraica, a s águas chamam, atraindo como ímã, todos os demônios e espíritos malvados.
Lilith se transformou: não é mais a companheira de Adão. É o demoníaco manifesto, está rodeada por todas as criaturas perversas saídas das trevas. Lilith se recusa a voltar para junto de Adão.
Os anjos voltam ao Éden. Javé já havia decidido punir Lilith, exterminando seus filhos. Lilith, acasalando-se com os diabos, gerava 100 demônios por dia, os Lillin.
Os pequenos demônios foram mortos pela mão implacável de Javé.
A esse cruento extermínio, verdadeira guerra entre o Criador e suas criaturas, se opõe uma vingança de Lilith: ela enfurece seus próprios filhos e, ajudada por outros demônios femininos, segue por todo lugar estrangulando de noite as crianças pequenas nas casas, ou surpreendendo os homens no sono, induzindo-os a mortais abraços.
Não há conclusão para a história: Lilith permanece a própria liberdade endemoninhada.
Do momento em que declara guerra ao Pai, e o Pai a sujeita, desencadeia sua força destrutiva, e desde aquele dia não há mais paz para o homem.
Os filhos de Lilith, pequenos diabos, eram reconhecidos na Bíblia (Nm 6:26): "O Senhor te abençoe em todo ato teu e te proteja dos Lillin."
O mito de Lilith foi encontrado nos escritos sumérios e acadianos e nos testemunhos orais dos rabinos sobre o Gênese. "E o mito de exclusão, da primeira mulher de Adão, igual a ele e não pedaço de sua costela, que se reivindica igual para exercer seu prazer na relação com o homem, que quer manter a relação de igual para igual com o outro-diferente. Depois de sua demonização e exclusão, segue-se a criação de Eva — garantia maior de submissão ao Pai e ao homem."
A mulher: um ser maligno
Deus disse à mulher: "Multiplicarei sobremodo o sofrimento da tua gravidez. Em meio a dores darás à luz filhos, o teu desejo será para o teu marido e ele te governará." (Gn 3:16).
E, então, os homens resolveram seguir essa ordem de Deus. As mulheres, afinal, tão perigosas, tinham mesmo que ser governadas pelo marido. Mais que isso: dominadas, desvalorizadas, escravizadas.
A ética cristã, por causa do valor atribuído à virtude sexual, contribuiu inevitavelmente para degradar a posição da mulher. Sendo vista como tentadora, todas as oportunidades de levar o homem à tentação tinham que ser reduzidas. As mulheres respeitáveis eram cercadas de restrições, e as pecadoras eram tratadas com desrespeito e insultos. O sistema patriarcal fez tudo para escravizar as mulheres. As leis da propriedade e herança foram alteradas contra as mulheres. Só na Revolução Francesa as filhas voltaram a ter o direito à herança.
Nos últimos três mil anos, assistimos, sob diversas formas e em vários lugares, à hierarquização entre homem e mulher ser levada ao extremo. A idéia da guerra dos sexos e de que homem e mulher são inimigos foi reforçada por vários textos que aconselhavam aos homens a tomarem distância daquela que, às vezes, ele pode até chamar de companheira.
O Mahabharata — epopéia que faz um apanhado de crenças e lendas indianas ligadas ao vishnuísmo — apóia completamente essas idéias. "Nunca existiu nada mais culpado do que uma mulher. Na verdade, as mulheres são raízes de todos os males." (38:12)
"O Deus do vento, a morte, as regiões infernais (...) o lado cortante da lâmina, os venenos terríveis, as serpentes e o fogo. Todos coabitam harmoniosamente entre as mulheres." (38:29)
A origem da má natureza feminina seria uma sensualidade desenfreada, impossível de ser satisfeita por um só homem. "As mulheres são ferozes. São dotadas de poderes ferozes (...). Nunca são satisfeitas por somente um ser do sexo oposto (...). Os homens não deveriam absolutamente amá-las. Quem se comportar de outra forma estará certamente correndo para sua perdição."
Os padres da Igreja a associam à serpente e satã. Ela aparece, com freqüência, nos sermões da Idade Média: "A mulher é má, lúbrica, tanto quanto a víbora, escorregadia, tanto quanto a enguia e, além do mais, curiosa, indiscreta, impertinente."
No século XII, o bispo Etienne de Fougère, falando sobre as mulheres, exortava os homens "a mantê-las bem trancadas. Entregues a si mesmas, sua perversidade se expande; elas vão procurar satisfazer seu prazer junto dos empregados, ou então entre si".
O porquê de tanto medo e desconfiança das mulheres é explicitado em dois textos escritos por teólogos muçulmanos nos séculos XII e XV, ainda hoje populares. "Alguns afirmaram que o apetite sexual da mulher é superior ao do homem (...). Parece que, copulando-se noite e dia, durante anos, com a mesma mulher, jamais ela consiga atingir o ponto de saturação. Sua sede de copular nunca é saciada." Ela é associada a uma vagina-ventosa que nunca está satisfeita. A cópula agiria diferente nos dois sexos: desabrocharia a mulher e enfraqueceria o homem. Na análise que faz desses textos, Fatna Ait Sabbah conclui que os únicos machos equipados para fazer frente a essa "mulher-fenda-ventosa" não seriam humanos, mas animais, o burro ou o urso, cujos pênis correspondem melhor aos desejos femininos.
"Inicialmente, os homens apossaram-se de todos os poderes das mulheres, mas com isso perderam a serenidade e sua amizade. A confiança cedeu lugar à desconfiança. Quanto mais os homens têm medo das mulheres, mais tentam submetê-las e mais temem que elas se vinguem. Círculo vicioso do qual talvez só se conseguirá sair pondo fim ao sistema patriarcal."
O temor que os homens sentem da revanche sorrateira das mulheres oprimidas parece não ser de todo sem fundamento. Na Penitenciária Feminina de Kanater, ao norte do Cairo, cerca de 1.100 mulheres, com mantas na cabeça e longas túnicas brancas, cuidam dos filhos pequenos, penduram a roupa lavada para secar e cortam tomates e cebolas para as refeições. As "matadoras de maridos" formam um grupo característico. Evitadas por suas famílias, recebem poucas visitas. São mulheres que cometeram atos terríveis no lar: homicídio com esfaqueamento, escalpelamento, queima ou desmembramento de seus maridos, às vezes deixando partes dos corpos em sacos abandonados em vários pontos da cidade.
Nádia, egípcia de 35 anos, na primeira noite do mês sagrado de jejum muçulmano, o Ramadã, deu um doce a seu marido que o lançou num sono profundo. Logo após, cortou sua cabaça. Ao detetive encarregado do caso declarou que só matou o marido uma vez, mas que ele a matara muitas vezes: abandonando-a e esquecendo-a. Wahiba Wahba Gomaa, 39 anos, não consegue conter as lágrimas quando recorda como o marido, que adorava, começou a trazer prostitutas para casa, espancando-a, quando reclamava. Não podia voltar para a casa dos pais, pois nunca a perdoaram por ter deixado o primeiro marido.
Quando se queixava dos espancamentos à polícia, prendiam o marido durante uma noite, aumentando mais ainda sua fúria. Ao dizer que desejava o divórcio, ouviu como resposta: "Se quer o divórcio, concordarei. Mas essa casa não é sua, nem os móveis, e você não pode levar as crianças. Sairá apenas com a roupa do corpo."
"Quando ele trouxe uma mulher para casa e começou a fumar haxixe" — conta Gomaa —, "fiquei a ponto de explodir. Levantei-me, agarrei-o pelas roupas e sacudi-o. Mas ele era muito mais forte do que eu. Espancou-me. A mulher saiu e ele foi dormir. Bati na sua cabeça com uma enxada. Arrastei-o para banheiro. Ainda estava vivo. Derramei gasolina sobre ele e ateei fogo. Finalmente morreu. Aí tive a sensação de que minha vida estava voltando."
Gomaa, que cumpre pena de 25 anos, conta que acordou as crianças e foi para a delegacia: "Dirigi-me ao delegado, dei-lhe as chaves da casa e disse: 'Procurei-o várias vezes para pedir ajuda. Veja o que aconteceu.'"
Quando trabalhei como psicóloga no Sistema Penitenciário, entrevistei uma mulher de 38 anos, condenada a 12 anos por ter assassinado o marido. Chorando muito, contou que morava com ele, a filha adolescente e a mãe idosa. Era comum ele chegar em casa à noite e, por qualquer motivo, espancar as três. Sempre que, desesperada, ameaçava chamar a polícia, ele ficava ainda mais violento. Não suportando mais, decidiu agir. Colocou estricnina na comida dele.
Temendo ser castigada por Deus, gritava aos prantos que não pretendia matá-lo. "Só queria que ele sentisse muitas dores na barriga."
Vagina: o grande perigo
Sendo os órgãos sexuais de mulheres e homens tão diferentes, tornam-se, de alguma forma, misteriosos para o outro sexo. Embora na mulher possa existir algum temor pelo pênis do homem, nada se compara ao temor que os homens sentem pela vagina. É um perigo ameaçador porque não é visível e porque suas propriedades são estranhas.
"No inconsciente e nos mitos, a vagina é representada alternadamente como uma força devoradora, devastadora, insaciável, uma caverna com dentes, que causa pesadelos e, finalmente, a morte.
Esse medo quase universal é ligado ao do sangue. Primeiro, o sangue menstrual, assustador e doentio, já que é objeto de uma imensa quantidade de tabus, mas também o sangue da defloração, que se acredita trazer azar." 58 Na India, inúmeras lendas falam de mulheres cuja vagina está cheia de dentes que cortam o pênis do homem.
Elisabeth Badinter utiliza a mitologia e as práticas de duas sociedades primitivas para ilustrar o conjunto de angústias que o sexo feminino suscita: os baruya da Nova Guiné e os maori da Nova Zelândia. Os homens baruya, quando pensam no sangue menstrual, expressam um misto de nojo, repulsa e, sobretudo, medo. Consideram o sangue menstrual uma substância suja, como as fezes e a urina. Ele enfraquece as mulheres e destrói a força dos homens ao entrar em contato com seus corpos. Quando uma mulher fica menstruada, ela se refugia numa casa especial do vilarejo e é proibida de preparar com as mãos (impuras) o alimento do marido e da família.
Independentemente do sangue menstrual, a mulher representa um perigo permanente para o homem: "A própria configuração do seu sexo, pelo fato inevitável de ser uma fenda que nunca pode reter totalmente os líquidos que secreta no interior, ou o esperma que o homem nela coloca, deixa cair no chão gotas que vão alimentar os vermes e as serpentes.
Esses animais vão apoderar-se de suas secreções e levá-las para os precipícios abissais, onde vivem as potências ctônicas maléficas (...) que utilizarão essas substâncias para enviar doenças ou morte aos humanos, às plantas cultivadas, aos porcos que se criam."
Pelo seu sexo, a mulher atrai o tempo todo os poderes maléficos. O escoamento do seu sangue menstrual ameaça a virilidade do homem e, conseqüentemente, o domínio dos homens sobre a sociedade. Elas devem evitar passar por cima de qualquer objeto estendido no solo e nunca, sob pena de morte, da lareira da casa, mesmo apagada: seu sexo poderia se abrir e poluir o lugar onde ela cozinha o alimento que vai à boca do homem.
As relações sexuais são cercadas de muitas precauções: não se pode fazer amor na época de desbravar a terra, plantar, cortar a cana para ser fermentada, matar e comer porco, antes que o homem vá para a caça, quando se ajuda a construir uma casa, na época das iniciações masculinas e femininas etc. E proibido também num jardim, nas zonas pantanosas, onde vermes e serpentes são abundantes... Após o nascimento de um filho só é permitido fazer sexo depois que lhe nasçam os primeiros dentes.
No ato sexual, é proibido a mulher ficar por cima do parceiro, pois os líquidos que enchem sua vagina poderiam espalhar-se sobre o ventre do homem. E, mesmo que a mulher chupe o sexo do homem (para se alimentar do esperma benéfico), este jamais deve aproximar sua boca do sexo da mulher, que deixa escorrer líquidos maléficos. Os baruya são afetuosos com as mulheres que lhes são proibidas: mãe, irmãs, tias, primas e sobrinhas, mas são autoritários e violentos com suas esposas. Com as filhas são carinhosos até elas se tornarem adolescentes, depois se distanciam.
Badinter assinala que, entre os baruya, não é tanto a cavidade vaginal que é temida, mas os venenos que ela secreta. Diferentemente de outras sociedades, como os maori, em que é o antro da vagina que provoca mais medo. Seus mitos explicam as razões de tal temor.
O deus Tané cometera incesto com a filha Hiné-Titama, e esta ficou tão desgostosa que se retirou do mundo da luz para o reino da noite. Mudou seu nome para tomar o de Hiné Nui Te Po (Grande Dama da Noite). Agindo dessa maneira, tornava a morte possível.
Foi nesse mundo novo que o semideus Mauí nasceu prematuramente, numa família de quatro meninos. Como sua mãe taranga o envolvesse nos cabelos de seu coque (tikitiki), ele foi chamado Mauí Tikitiki e Taranga. Tendo supostamente tirado a Nova Zelândia do oceano Pacífico, Mauí é conhecido por suas façanhas em toda a Polinésia. Tem fama de ser travesso, curioso e criador. Procurou tornar o homem imortal, tentando assassinar Hiné Nui Te Po.
Partiu, com esse intuito, para o mundo ctoniano, onde morava a deusa dos mortos. Pensava aproveitar o sono desta para entrar em seu corpo pela vagina, seccionar-lhe o coração e sair pela boca. Antes de partir, recomendou que os pássaros que o acompanhavam não fizessem nenhum barulho para não acordar a deusa. Mas, no momento em que passava a cabeça pela vagina de Hiné Nui Te Po, um desses pássaros achou o espetáculo tão engraçado que foi tomado por um riso incontrolável. A Grande Dama da Noite acordou sobressaltada, fechou as coxas e Mauí, o travesso, morreu estrangulado. Depois desse acidente, a morte passou a existir neste mundo.
Nessa história, os órgãos genitais femininos aparecem novamente como devastadores. Para os maori, a vagina é um buraco destruidor.
Badinter relata que, no reino fabuloso do padre Jean, durante toda a Idade Média, acreditava-se que serpentes ficavam na vagina e animais selvagens guardavam sua entrada. Seria um equívoco, contudo, imaginar que o medo do sexo feminino seja particular às sociedades primitivas. As nossas não ficam atrás, como mostra esta canção das salas de espera, cantarolada no início do século XX:
"Pequeno anel de carne, pequena fenda feia,/ Pequeno esfíncter pagão,/ Pequeno canto, sempre úmido, envenenado com ar cálido,/ Pequeno buraco, pequeno nada!// És feia quando ris com teu lábio beiçudo;/ És feia quando dormes!/ Feia, tu, que Deus escondeu nesse ângulo que fede./ Perto dos esgotos do corpo!// Ah! tu podes, para lamber teu beiço rosado/ Reles monstro de orgulho!/ Podes, abrindo tua goela com grenha encrespada/ Bocejar como um caixão.// Ventosa venenosa, abismo insaciável/ Tão funesta e tão querida;/ Quero desprezar-te, a ti, por quem chora e sofre/ O melhor de minha carne.// Quero detestar-te sempre, coisa infame/ Tu, que devolves o bem com o mal;/ Pequeno nada cavado na parte baixa da mulher/ Pequeno buraco, pequeno nada!"
Maria: a chance que as mulheres perderam
Ressurge com o cristianismo a figura da mãe, que havia desaparecido, juntamente com a importância antes dada à terra na procriação, desde o início do patriarcado.
A mãe se torna novamente objeto de culto. Badinter faz uma análise do culto da Virgem Maria, que é revolucionário:
"Se a sociedade patriarcal suprimiu a Deusa-Mãe, substituindo-a, às vezes à força, por um Deus-Pai, guerreiro e ciumento de sua superioridade, a mentalidade popular a recriou sob os traços da Mãe de Deus e dos homens, constantemente invocada, constantemente presente, sempre triunfante."
Da mesma forma que, antes da descoberta da paternidade, se acreditava que a criança era inserida no ventre da mãe, Maria é fecundada como uma Deusa-Mãe por um espírito que nela se insinua.
"Entretanto, se o culto da Virgem Maria constituiu de início uma revolução no meio paternalista, uma tentativa para devolver à mãe seu papel verdadeiro, a Igreja oficial vai logo esvaziar o conteúdo de toda sua significação. Ela fará da Virgem um ser cuja característica feminina só será atestada pelo aspecto da mãe sofredora, sacrificada, passiva e escrava do filho."
No culto da Virgem Maria, poderia ter sido recuperado o prestígio da mulher em todos os seus aspectos, devolvendo à mãe sua importância.
"A mensagem de Cristo em relação às mulheres foi, na verdade, desviada por seus apóstolos, e foram abafados os germes da revolução.
Nesse ponto, vencera a religião do pai, e por muito tempo. A pressão do meio patriarcal era exageradamente forte para que fosse introduzida a menor mudança na condição feminina, e apenas admitida uma melhora na imagem da mulher. O Deus dos patriarcas continuava a triunfar frente àqueles mesmos que tinham seguido Cristo. A lenda de Eva, ainda por muito tempo, ia ocultar a exemplar Maria."
Os "pais" da Igreja encarregam-se de fazer com que Maria seja completamente distante das outras mulheres e, dessa forma, marcam a semelhança destas com Eva. Santo Agostinho definia a mulher como:
"Um animal que não é firme, nem estável, odiável, nutridor de maldade (...) ela é a fonte de todas as discussões, querelas e injustiças." Apesar de Maria passar a ser o maior símbolo de bondade e altruísmo, as mulheres continuaram a ser reprimidas, humilhadas e violentadas.
Texto de Regina Navarro Lins em " A Cama Na Varanda: Arejando Nossas Ideias a Respeito de Amor e Sexo", Editora Best Seller, Rio de Janeiro, 2005, excertos pp.35-41. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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