1.05.2019
PSICANÁLISE NAS HISTÓRIAS INFANTIS - UM LOBO NA CAMINHO
Chapeuzinho Vermelho, Dama Duende, João-Sem-Medo e Os Três Porquinhos Perda da inocência – Curiosidade sexual infantil – Fantasias de sedução por um adulto – Fantasia de incorporação – O papel do medo na construção da função paterna.
– Para que esses olhos tão grandes?
– Para te ver melhor, minha netinha.
– Para que estas orelhas tão grandes?
– Para te escutar melhor, minha netinha.
– E para que esta boca tão grande?
– Para te comer melhor, minha netinha!
Esse diálogo é escutado há gerações, e o leitor certamente o conhece: faz parte do conto Chapeuzinho Vermelho. Se toda a narrativa tem seu clímax, poucas têm uma cadência tão boa até atingi-lo como esta. Ao final desse diálogo, a criança que ouve a história já está ele-trizada, pendente do destino da menina que será devorada, capaz de prever cada frase, que sabe de cor e exige que a cada vez seja repetida de forma idêntica.
Ao longo dos últimos séculos, desde Perrault,1 que a compilou do folclore no século XVII, essa história foi sendo suavizada. Sua primeira versão francesa em papel (1697) não contém um bom final para a menina: depois do diálogo clássico, ela é definitivamente devorada. O texto de Perrault tem um caráter de fábula moral, ensina que quem transgride as regras se expõe ao perigo, é punido e fim de história. Inclusive algumas versões de Perrault trazem uns versinhos finais que alertam as meninas ingênuas sobre o perigo dos lobos de fala mansa:
Vemos aqui que as meninas e, sobretudo, as mocinhas lindas, elegantes e finas, não devem a qualquer um escutar. E se fazem-no, não é surpresa, que do lobo virem o jantar. Falo “do” lobo, pois nem todos eles são de fato equiparáveis. Alguns são até muito amáveis, serenos, sem fel nem irritação. Esses doces lobos, com toda a educação, acompanham as jovens senhoritas pelos becos afora e além do portão. Mas ai! Esses lobos gentis e prestimosos são, entre todos, os mais perigosos.2
Cento e sessenta anos depois (1857), os irmãos Grimm escreveram uma continuação da história, que lhe empresta um caráter de conto de fadas.3 Nesta, após Chapeuzinho ter sido devorada, um lenhador que estava passando em frente à casa da avó da menina escutou o ronco do lobo que dormia de barriga cheia. Ele entrou e cortou-lhe a barriga, retirando a avó e a neta vivas de seu ventre; após, os três preencheram o espaço vazio do estômago do animal com pedras. O lobo acordou com sede a acabou afundando na água que pretendia beber, morrendo da mesma forma que em O Lobo e os Sete Cabritinhos.
Apesar de os finais das histórias de Perrault e dos irmãos Grimm diferirem, seus inícios são bastante similares. Temos uma menina adorável, conhecida de todos pelo capuz vermelho, presenteado pela avó, o qual andava sempre vestindo. Um dia, sua mãe pede-lhe que leve uns bolinhos e vinho (ou manteiga) para sua avó que vivia na floresta. Em Grimm, essa ordem é acompanhada de um pequeno sermão:
Trate de sair agora mesmo, antes que o sol fique quente demais, e, quando estiver na floresta, olhe para a frente como uma boa menina e não se desvie do caminho. Senão pode cair e quebrar a garrafa, e não sobrará nada para a avó. E quando entrar, não se esqueça de dizer bom-dia e não fique bisbilhotando pelos cantos da casa.
Disposta a obedecer, Chapeuzinho pega o caminho conforme lhe fora indicado, mas encontra-se com o Lobo. As várias versões frisam que ela não teve medo, pois não sabia do perigo que corria com ele. No primeiro diálogo dos dois, cheio de gentilezas, ele toma a iniciativa e lhe pergunta aonde ela vai. Prontamente a menina conta ao Lobo sua missão, seu trajeto e a localização precisa da casa da avó.
O ardiloso animal elabora então um plano para devorar não uma, mas duas criaturas. Para isso precisa de tempo, então faz Chapeuzinho ver como o sol está lindo e quantas flores há para colher pelo caminho. A menina se entusiasma com a proposta, se distrai com as flores e admirando borboletas, e ele consegue chegar antes à casa da avó. Já na história de Perrault, o lobo desafia Chapeuzinho para uma corrida até seu objetivo, sendo que lhe indica o caminho mais longo e vai pelo mais curto tratar de seus assuntos com a vovó. Em todas as versões, Chapeuzinho não cumpre seu trajeto de uma forma direta. Seja pelas flores e borboletas do caminho, seja pelo prazer de uma corrida, ela não leva sua tarefa totalmente a sério, cumpre-a brincando.
De qualquer maneira, o Lobo chega antes à casa da avó, anuncia-se como sendo a neta e aproveita para devorar a velha sem delongas, vestindo suas roupas de dormir e deitando-se em sua cama, à espera da menina. Chapeuzinho chega depois, e, nesse momento, ocorre o clássico segundo diálogo – reproduzido acima –, que é sempre o clímax da narrativa. Por mais variações que a história possa produzir, essas falas são como um núcleo permanente.
Numa edição comentada e ilustrada dos contos de fadas, Maria Tatar disponibiliza uma curiosa versão, de feitio mais antigo, dessa história. Ela foi compilada a partir de narrativas orais, na França, em 1885; portanto, quando já existiam disponíveis para o público as versões impressas de Grimm e Perrault. O conto chama-se A História da Avó 4 e tem as características das narrativas folclóricas, não originalmente direcionadas para as crianças. Por isso, não há nele nenhuma mensagem pedagógica subliminar, nem preocupação em suprimir os elementos grotescos.
A História da Avó merece um comentário, pois está fora do padrão habitual. O começo é igual, mas mais sucinto, sem o sermão materno, que está totalmente ausente. O diálogo com o Lobo é breve, apenas este pergunta por onde ela vai e segue o outro caminho correndo para chegar antes. Devora a avó, mas não toda, deixa um pouco de carne e uma garrafa de sangue para depois. Quando Chapeuzinho chega, ele pede-lhe para deixar a cesta na despensa e a convida com a carne e o vinho (ou melhor, o sangue) que estão na prateleira. No fundo da cena, um gato falante comenta que é preciso ser uma porca para comer da carne da avó e beber o seu sangue. A menina não parece dar importância a essa observação, mas está atenta ao convite do Lobo para irem para a cama:
"Tire a roupa, minha filha, e venha para a cama comigo. A cada peça de roupa que ela tira, pergunta para o Lobo onde colocar, ele responde sempre o mesmo: Jogue no fogo, minha filha, não vai precisar mais dela."
O strip-tease é detalhado, quanto ao avental, ao vestido, ao corpete, a anágua e finalmente as meias, e mais minucioso será, quanto mais o narrador quiser acentuar as tintas eróticas da cena. Quando ela finalmente deita, depois do diálogo conhecido sobre as partes grandes e peludas do corpo do Lobo, a menina tem uma súbita vontade de urinar e pede para se aliviar lá fora, ao que o Lobo responde que faça na cama mesmo. A menina insiste, e ele deixa-a sair, mas com um cordão amarrado no pé. A menina amarra o cordão numa árvore e dispara para casa tão rápido que o Lobo não a alcança.
Desde essa narrativa da tradição oral – que consideramos a mais antiga –, passando por Perrault, até a história como é contada hoje – praticamente a versão dos Grimm –, os aspectos mais eróticos (em que Chapeuzinho se despe para entrar na cama do lobo-vovozinha) e canibalísticos (quando, antes de comer a menina, o lobo lhe serve a carne e o sangue da avó) foram sendo suprimidos, substituídos e suavizados.
Apesar das modificações, ao longo desse processo, ficou preservada a existência de um diálogo, em que a vítima faz perguntas, parecendo desconfiada, mas ingenuamente se entrega à bocarra de seu algoz. Por mais máscaras que se ponha para suavizar a violência do relato, a menina será engolida, e a tensão da narrativa provém da percepção das crianças ouvintes, que antecipam o perigo, ao passo que a menina se deixa enganar.
Mas se existiram tantas maneiras de contar essa história, numas a menina se salva, noutras é devorada, por vezes precisa de ajuda, por outras foge sozinha, como entender que reconheçamos todas como Chapeuzinho Vermelho? Na verdade, como em outros contos, todas as formas são válidas, inclusive as modernas visivelmente moderadas, pois estas são as necessárias para nossa sensibilidade atual. Todas as narrativas mantêm o essencial, por isso são reconhecidas, afinal o que faz um conto são os elementos em jogo, não necessariamente os seus desfechos. O conto da Chapeuzinho contém um drama sobre a perda da inocência, e isso está preservado em todas as versões.
Chapeuzinho é uma criança com a ingenuidade de quem não sabe – e ainda não suporta saber – sobre o sexo, mas sua intuição lhe diz que há algo a mais que anima os seres humanos. Embora ela leve doces para a vovozinha, parecendo que na vida comer é a maior satisfação e a solução para todos os males (vovó ficará boa da doença), ela encontra no caminho outros encantos: a lábia lupina, as flores, as borboletas e o prazer de brincar. Ela representa a transição da aparente inocência infantil para o conhecimento da existência das práticas sexuais adultas, que surgem na vida da criança às vezes através de uma sedução imaginada ou, em casos graves e traumáticos, vivida.
O apelo dessa história é forte, porque todos já fomos alguma vez Chapeuzinho Vermelho, quer dizer, descobrimos que as demandas sexuais existem e passamos a investigar no que nos dizem respeito. Curiosos, mas despreparados, corremos o risco de ser convocados ao papel de objeto de um desejo erótico antes de estarmos sequer remotamente prontos para tal. Que desse drama uma menina seja a protagonista parece normal, mesmo para a identificação dos homens, pois sempre que houver uma criança submetida à sedução por um adulto, seja de que sexo for, ficará feminizada em decorrência da passividade própria do ato. Isso não quer dizer que um menino perderá sua masculinidade a partir de um incidente desses, mas sim que, naquele momento, estará vivendo algo que pode ser compreendido a partir do ponto de vista da entrega sexual feminina.
O que quer Chapeuzinho?
a época da criação da teoria psicanalítica, uma das descobertas freudianas mais difíceis de absorver, por uma sociedade que já nos precede em um século, foi a da sexualidade infantil. Freud atribui a ignorância desse aspecto da vida das crianças a dois fatores: a um preconceito moral e à amnésia “que na maioria das pessoas (mas não em todas!) encobre os primeiros anos da infância, até os 6 ou 8 anos”.5 Talvez deveríamos conjecturar que não se trata de uma amnésia total, mas de uma memória seletiva.
Na análise de um adulto, através das associações, temos acesso a um numeroso acervo de fantasias eróticas infantis. Nelas podemos constatar tanto o caráter sexualizado que a criança percebe nos vínculos amorosos familiares, assim como a erotização de manipulações medicinais e de higiene. Também é possível evocar, ao longo de uma análise, as fantasias que a criança fabrica para seu uso masturbatório, normalmente formatadas de acordo com as teorias sexuais que possui na ocasião, portanto privilegiando as partes do corpo mais importantes para a criança pequena que para o adulto: a boca e o ânus.
Outra forma de manter a memória desses velhos prazeres certamente fica aos cuidados das manifestações culturais. Tal papel cabe certamente à lembrança de alguma artista opulenta que tenha povoado a imaginação dos pequenos, a algum trecho de livro, conversa ou filme que as crianças tenham conseguido coletar, mas histórias infantis como essa também oportunizam a expressão do quanto as crianças se sentem atraídas por esse desconhecido tentador que é o sexo. A menina dessa história adverte quanto aos riscos que as crianças correm graças à sua inocência e à maldade de alguns lobos perversos, mas também ilustra o quanto elas podem vir a se expor em função da curiosidade e dos desejos eróticos confusos, mas imperiosos, que guardam em seu interior.
Assim, fica difícil interpretar a atitude de Chapeuzinho de dar confiança para um estranho como pura ingenuidade. Em quaisquer das versões, mesmo nas bem comportadas que chegaram até nossos dias, percebe-se sutilmente, sob a trama desse conto, que entre o Lobo e sua presa há um diálogo que não se restringe à iminente devoração, a conversa tem uma inequívoca coloração erótica.
Chapeuzinho Vermelho é uma história que pode até incumbir-se das seqüelas psíquicas do desmame e ajudar a organizar as fobias necessárias, mas é principalmente evocativa de uma corrente erótica que perpassa a relação da criança com seus adultos. Diante desse timbre sensual do amor familiar, a criança pequena é tão ingênua quanto Chapeuzinho, mas também tão ousada quanto ela. A menina pode não saber que jogo está sendo jogado, mas é inegável seu interesse em participar.
Apesar de perceber que vovó estava muito estranha, ela entra no jogo de palavras e se deixa devorar pelo lobo. Aliás, trata-se de uma conversa de mútua sedução, plena de preliminares. Sem destacar seu caráter de tentação erótica, seria incompreensível pensar por que o lobo não a comeu com a mesma objetividade que o fez com a vovozinha... Em vez disso, ele e a menina ficam travando um duelo verbal, totalmente dispensável se Chapeuzinho não passasse de um bocado de carne tenra.
Em A História da Avó, a menina, depois de despida, escapa porque insiste com o Lobo para que a deixe sair para urinar, ao que ele acede se ela for amarrada com um fio de lã, recurso de que ela se livra com facilidade. Ora, bem sabemos, pelos dramas que circundam o controle esfincteriano – a tirada das fraldas – e pelos repetitivos casos de enurese noturna – incontinência urinária –, que fazer xixi em hora e lugar inconvenientes é, muitas vezes, manifestação de uma excitação sexual irrefreável para a criança.6
A vontade de urinar está freqüentemente associada ao prazer das meninas e se mistura com os primórdios da masturbação feminina. Na versão folclórica do conto, então, é indiscutível que Chapeuzinho ficou excitada com aquela conversa e com o strip-tease. Embora os relatos mais modernos não tenham essas partes picantes, restaram o diálogo sedutor e o fato de que o lobo recebe a menina na cama.
Seria pouco pensar que do pai só se espera o papel do Lobo no sentido de colocar as coisas no seu lugar e impor as leis. Sabemos que ele também tem seus atrativos, principalmente para as Chapeuzinhos Vermelhos que ele tem em casa. Os meninos também vão se interessar por ele, como veremos em João e o Pé de Feijão (Capítulo VIII), a seu modo, mas as meninas usarão também as armas femininas da sedução para conquistar para si a atenção do pai. É por isso que elas se deixam cativar nos diálogos com ele, que desobedecem à mãe. O pai deve ser temível, como o Lobo, mas para a menina é importante fantasiar que ele também a deseja e a corteja. Essa questão da importância do desejo paterno torna-se relevante mais tarde, quando a menina entra na adolescência (como veremos adiante), mas o idílio já é bem antigo, desde os rudimentos da feminilidade de cada filha.
Três gerações de mulheres estão envolvidas no conto: a filha, a mãe e a avó. Se o Lobo puder também ser considerado uma forma de simbolizar aspectos do desejo paterno, veremos que ele se interessa justamente por aquelas que não pode nem deve seduzir na vida real. O lobo-pai teria de se restringir às mulheres da sua geração, sem assuntos a tratar com crianças e senhoras com idade para ser sua mãe.
É exatamente isso que a criança está tentando decodificar na organização sexual da vida adulta. Quem pode casar com quem e por que os velhos e as crianças parecem estar fora desse tema? Querem compreender sobre o amor, quem se submete a quem e qual dessas submissões (vista na ótica infantil, é claro) é sexual. A Chapeuzinho tem em comum com a avó o fato de estar fora do comércio sexual, se o pai não respeita essa ordem, é natural que vá comer a avó também, afinal todas as mulheres da família seriam então dele.
Os aspectos eróticos tão latentes quanto insistentes da história dão conta de uma corrente sensual que se estabelece entre a criança e seus progenitores, mas não deixa de se ater aos velhos conhecidos: a boca e o prazer oral. Ao mesmo tempo que o conto funciona dentro do antigo registro oral, tão cômodo para a criança, observa certas percepções novas, ainda não passíveis de serem decodificadas, que balançam o esquema de organização psíquica primordial. O prazer da conversa e de brincar entre as flores se interpõe ao tema da comida. Sua missão era levar comida para a vovó, como se daí proviesse a forma única de agrado possível, mas eis que no caminho o mundo se revela bem maior que as guloseimas que cabem na cesta.
Não é difícil perceber que Chapeuzinho está cativada por algo que não compreende, mas sente. Nesse sentido, são muito ilustrativas as gravuras clássicas de Gustave Doré7 que retratam o primeiro encontro da menina com o lobo na floresta e os dois deitados lado a lado na cama. Em ambos desenhos, Chapeuzinho olha para o lobo fixamente, entre intrigada e hipnotizada. Há uma mútua sedução implícita. O que seduz e fascina a menina não é certamente a beleza do lobo, de quem não podemos afirmar que seja um galã, são suas segundas intenções. Afinal, o predador podia ter devorado sua tenra presa num canto qualquer da floresta. Distraída colhendo flores e correndo atrás de borboletas, era fácil de ser emboscada, mesmo assim ele a atraiu para a cama, para lá lhe passar sua conversa mole antes de devorá-la.8
Chapeuzinho está interessada em saber no que ele está interessado, poderíamos dizer que é o desejo dele que a intriga. Mas gostaríamos de frisar que, para a menina, isso é mais uma curiosidade, digamos, teórica, que a pretensão de chegar a algum tipo de envolvimento erótico com seu sedutor. Um abismo separa as intenções de um pedófilo da capacidade de compreensão da criança de quem ele se aproveita. Infelizmente, para as pobres vítimas desse crime, é justamente essa inocência curiosa que seduz o abusador: o contraste entre a condição adulta de seu propósito e a infantilidade da vítima.
O conto Chapeuzinho Vermelho trabalha o tema da sexualidade infantil dentro do território do possível e necessário para as crianças pequenas. Ter uma sexualidade, sabê-la e exercê-la são três coisas bem distintas. Esta última possibilidade somente se inaugura com a adolescência, enquanto a infância oscila entre as duas anteriores. Chapeuzinho é útil para aqueles que sentem que a têm, estão curiosos com seu significado, mas ainda não estão prontos para explicitar esse conhecimento.9
Curiosidade sexual
Apesar de existirem diferentes versões, há poucas histórias similares à de Chapeuzinho. Os contos de fadas são extremamente repetitivos, uma leitura mais extensiva nesse território revela que uma mesma fórmula aparece, com variações apenas superficiais, sob vários títulos. Nesse sentido, Chapeuzinho é ímpar. Mas existe uma exceção: uma história curta, narrada pelos irmãos Grimm, que pode evocar traços de Chapeuzinho, chamada Dama Duende.10
Nele, uma menina, que já é desobediente e teimosa, pede aos pais para conhecer a Dama Duende, uma senhora de má fama. Ouve-se dizer que em sua casa ocorrem prodígios, a menina então é atraída por isso e tem muita curiosidade de ver tais maravilhas, não explicitadas no conto. Seus pais a proíbem terminantemente de ir lá, inclusive ameaçam de não reconhecê-la mais como filha, mas tal advertência pouco surte efeito, ela vai mesmo assim.
O desfecho é rápido, a menina entra na casa da Dama Duende e quando chega diante da propriamente dita já está pálida de medo. O que se sucede é um diálogo que lembra o diálogo de Chapeuzinho com o Lobo. Neste conto, a menina já está amedrontada e não quer crer no que seus olhos já viram: a casa se revela um lugar diabólico, com figuras masculinas aterrorizantes. A Dama Duende é de uma crueldade impassível, transforma a menina num pedaço de lenha que imediatamente é consumido pelo fogo.
A moral da história é tão breve quanto o conto: não se deve ser desobediente e não se deve buscar nada com as pessoas más. Mas, falando em tentação, o que essa menina desobediente procurava? Que lugar é este que, apesar do medo, dá má fama e da advertência categórica dos pais, não deixava de atraí-la? Talvez a melhor pista seja o seu destino, virar um objeto a ser consumido pelo fogo. Na versão A História da Avó, existe um fogo aceso que consome as roupas de Chapeuzinho, aqui a própria menina se torna um objeto a alimentar as chamas. O fogo em questão é um recorrente símbolo do desejo sexual e do ato sexual. Não falamos apenas do popularmente conhecido fogo da paixão, é bom lembrar também que existe a crença popular de que criança que brinca com fogo se urina na cama.
Outra história dos Grimm que mistura os elementos do medo e da curiosidade sexual é João-Sem-Medo.11 Este personagem não se assusta com nada e, por isso, passa reclamando: “Ah, se eu pudesse tremer de medo!”.
Aqui nos afastamos de Chapeuzinho, mas a temática é a mesma: o enigma diante de sensações do mundo adulto, ou seja, o que é o sexo e, principalmente, como não temê-lo. Como o maior desejo de João-Sem-Medo é encontrar algo que lhe permita viver essa sensação que os outros têm e parece ter-lhe sido vedada, não lhe resta alternativa senão sair pelo mundo em busca de um encontro com o medo. Em seu caminho, por sorte, encontra um castelo encantado, assombrado por toda a classe de diabos e fantasmas, e quem conseguir desencantá-lo terá as graças do rei e sua filha como esposa.
Até os diabos se assustam com a coragem de João: ele fica as três noites – o tempo que um pretendente devia passar ali dentro – se divertindo com as tentativas dos seres das trevas em expulsá-lo. Por fim, os fantasmas se dão por vencidos e saem do castelo, que pode ser habitado por homens novamente. O herói ganha a princesa como prêmio, porém segue frustrado porque ainda não conseguiu tremer de medo. A criada de sua recém-esposa tem uma idéia: quando ele está na cama dormindo com sua mulher, ela lhe joga em cima uma tina de água com peixes vivos. Este susto, que desta vez o colhe no lugar certo, na cama com uma mulher, produz-lhe a sensação tão almejada, finalmente treme de medo.
Bettelheim encontra o sentido deste conto compreendendo-o a partir do seu fim, que o re-significa: a busca de João, o que lhe faltava sentir, não era o medo, mas os tremores e afetos relacionados ao sexo. Era esse o efeito que ele buscava, cuja ausência lhe impedia de se sentir um homem completo. Afinal, é na cama e a partir de uma sensação produzida pela ação de uma mulher – no caso, a criada é uma duplicação da esposa – que ele sente o que nunca sentira.
João-Sem-Medo partiu para o mundo movido pela curiosidade sexual, mas, como já era jovem, pôde afinal se divertir, não foi devorado nem consumido pelas chamas. Já estava longe da época em que o prazer dependia da boca, são os peixinhos pulando em sua pele, escorregando juntamente com a água fria que o excitam.
O significado mais completo do conto seria uma advertência: não adianta a coragem na vida sem a coragem na cama, sem isso não se é adulto. Muitas vezes, um bom desempenho diante dos desafios da vida não implica que tivemos a coragem de enfrentar os fantasmas que nos assombram entre os lençóis.
Comer e ser comido
Em Os Três Porquinhos,12 conto da tradição inglesa, também há um encontro dos personagens com o lobo, mas esta história ressalta outro significado desse evento: a fantasia de incorporação. Aqui, o risco de ser devorado é o tema central, enquanto em Chapeuzinho é um significado associado ao tema da curiosidade sexual, como analisamos acima.
Neste conto, chega um dia em que os três irmãos porquinhos estão em idade de sair de casa, pois sua mãe já não tem meios de sustentá-los. Partem então separados, seguindo caminhos diferentes. A primeira providência de cada um é conseguir uma casa para morar, o primeiro faz a sua rapidamente com um pouco de palha que recebe de um homem no caminho. O segundo pede e ganha, também de um homem que encontra, um pouco de gravetos e com isso faz a sua casa, levemente mais robusta que a do irmão anterior. Por fim, o terceiro porquinho dispensa mais tempo para fazer sua casa, pois ela é feita da maneira mais sólida possível, é construída de tijolos, que também ganhou de um desconhecido no caminho. Todos recebem, portanto, alguma ajuda (um homem que lhes fornece o material necessário), o que varia entre eles é a disponibilidade para o trabalho.
Quando o lobo entra em cena, os porquinhos já têm onde se abrigar. O primeiro corre até sua casa e se esconde, mas o lobo com facilidade sopra a casa pelos ares e devora o porquinho. O segundo dos irmãos tem o mesmo destino, o lobo simplesmente tem de soprar um pouco mais. É apenas no terceiro porquinho que a história toma outro rumo. O lobo sopra, mas não derruba a casa. Já que suas ameaças de nada valem – “vou assoprar, bufar, e sua casa vou derrubar!” –, procura então outra maneira.
Usando a mesma lábia que surtiu tão bom efeito com Chapeuzinho Vermelho, ele tenta seduzir o porquinho com indicações de onde existem apetitosas iguarias para ele. O porquinho escuta e vai buscar a comida, mas sempre se antecipando ao lobo, que não consegue nada com suas armadilhas, a não ser perder maçãs e nabos para o espertinho. Por fim, o lobo apela para uma medida extrema, tenta entrar pela chaminé da casa do porquinho; dessa vez, este também estava preparado, e o lobo tem o seu fim dentro de uma panela de água fervente. Nesta história inglesa, o porquinho come ensopado de lobo no jantar, ou seja, quem veio comer acabou devorado.
Os Três Porquinhos têm a simplicidade que as crianças bem pequenas apreciam, sem muitos personagens, os bons de um lado e um malvado de outro. A trama, porém, embora simples, toca a fundo as crianças pequenas, que afinal um dia terão de sair de casa e proteger-se sozinhas. Nessa história mais antiga, os dois primeiros são devorados, mas nas versões contemporâneas todos se salvam: a cada investida do lobo, a casa é derrubada e eles correm para se abrigar na casa do irmão.
Embora os porquinhos não sejam tão ingênuos quanto a menina, ambas as histórias compartilham certa decodificação oral do mundo – dividida entre os que comem e os que são comidos –, que ainda persiste um bom tempo após o desmame. O porquinho pode ser pensado como sendo três em um. O trio daria espaço para a evolução do personagem, representando sucessivos momentos. Inicialmente desprotegidos, à mercê de serem devorados, o porquinho e a criança aprendem a criar empecilhos que os separem da mãe, diferenciando sua vontade da dela. Como situávamos nos capítulos anteriores, a separação da criança, o trabalho de se compreender como um indivíduo é progressivo e bastante marcado por estratégias de defesa, como se recusar a comer e negar-se a fazer o que lhe é solicitado. Sucessivas paredes, cada vez mais bem construídas, demarcarão os territórios entre a criança e seus adultos.
A arma do lobo é sempre a boca, afinal, o sopro é uma força que provém dali e, de certa maneira, também a lábia em querer enganar vem do mesmo lugar. A boca cumpre múltiplas funções quando se é muito pequeno, além de fonte de saciedade, prazer e conhecimento, ela é uma espécie de portal. Os trânsitos que ainda restam entre o bebê e sua mãe, uma vez que a comunicação umbilical foi cortada, terão passagem prioritária pela boca. O olhar é uma fonte muito importante de vínculo. Em função do que vê, o bebê pode se tranqüilizar – “que bom, mamãe chegou” – ou inquietar-se –“Perigo! Perigo! Ela pegou a bolsa, ela vai sair!”. Mas só aquilo que se engole é factualmente passível de ser possuído e controlado.
Embora ainda não compreenda conscientemente, a criança procede como se soubesse que sua primeira morada é o ventre materno. Por sua vez, o raciocínio de que se possa entrar e sair de dentro do outro não é nada estranho para alguém que há pouco se alimentava diretamente do corpo de sua mãe. Se aquele líquido morno sai diretamente dos seios dela para sua boca, outros trânsitos de dentro de um para o outro também são imaginariamente possíveis. Mas eis que vem o lobo para lembrar que essa história não é tão simples assim.
No imaginário infantil, o lobo e as bruxas gulosas – tal qual a de João e Maria – assustam mais que as bruxas ciumentas – como as encontráveis em Rapunzel, Branca de Neve e A Bela Adormecida –, que geralmente aparecem depois. Estas últimas são mais complexas, assim como vai ficando a vida depois que as relações passam a ser claramente entre pessoas inteiras e não mais entre bocas. Quando as bruxas ciumentas reinam, já há uma família inteira, há uma criança que sabe que vai crescer e já pode se colocar questões relativas à ambivalência de sentimentos e à fragilidade dos pais. O primeiro perseguidor, o papão da primeira infância, freqüentemente pertence ao gênero masculino, tendo no lobo seu ancestral mais famoso, tanto que até hoje se fala dele. Mas na vida dos pequenos o lobo não está só, pode ter a companhia do Papai Noel, que não traz só presentes, são muitas as crianças que o temem; do bicho-papão, que geralmente mora em baixo da cama, mas freqüenta outros cantos escuros; do palhaço, o terror dos aniversários; do cachorro, que, como o lobo, vaga pelas ruas pronto para cravar os dentes afiados nas criancinhas; e de outros, ao sabor do freguês. A bruxa também é assustadora, mas ela não costuma sair das histórias para aterrorizar o cotidiano dos pequenos, ou pelo menos é mais raro encontrar uma bruxa incumbida do papel de objeto fóbico.
Em relação aos três porquinhos, vence aquele que melhor soube prever e se proteger, que construiu a casa de tijolos. São histórias que dão conta da necessidade de proteção da criança diante de perigos que ela ainda não decodifica bem, mas desconfia que deve aprender a evitar. Os Três Porquinhos possui também agregado um aspecto de fábula moral, mostrando que a perseverança vence, que o mundo não é só brincar, que o trabalho árduo é recompensador e que crescer é saber cuidar de si.
No desenho da Disney referente a esse conto, há uma provocação interessante à figura do lobo, pois os porquinhos ganham uma trilha sonora onde cantam de forma desafiadora: “Quem tem medo do lobo mau, lobo mau, lobo mau?”, provocando seu perseguidor, como um toureiro. O porquinho não se contenta em fugir e procede como a criança que pede a repetição do conto, no incansável prazer de ter medo. Graças ao lobo, a criança poderá simbolizar o medo de desaparecer dentro do corpo da mãe, como os alimentos desaparecem dentro de sua boca, indo morar em sua barriga.
São tempos de uma subjetividade simples, uma época em que é conveniente a invocação de um intermediário entre a mãe e a criança, esse é precisamente o lobo. Quem já brincou com pequenos, pouco mais que bebês deambulantes, descobriu que se esconder e ser encontrado é muito divertido para eles.
Após aguardarem ofegantes, escondidos debaixo de uma coberta ou atrás de uma cortina, eles gritam nervosos e eufóricos quando são descobertos e saem correndo, como porquinhos gritões. O momento de espera sob os panos, antes de serem descobertos, é equivalente à expectativa que acompanha o diálogo com o lobo e o objetivo da criança com essa brincadeira é sentir medo. Mas por que uma criança gostaria ou precisaria sentir medo?
Para que sentir medo?
Se a criança não soubesse que há um lobo-adulto rondando lá fora, não teria tranqüilidade para ficar oculta sob o tecido, teria medo de nunca sair de lá. É o lobo que a fará sair de seu esconderijo. O terror mais primitivo é o de ser enterrado vivo nas entranhas da mãe. Por isso, a maior parte das crianças elegerá alguma figura apavorante para seu uso pessoal, conhecida pelos psicanalistas como objeto fóbico. Sua forma varia bastante, mas a certeza é que o mundo ficará geograficamente mapeado conforme sua presença ou ausência. Os objetos fóbicos mais comuns são aqueles fáceis de ser encontrados no dia-a-dia e nos lugares freqüentados pelas crianças. Nenhuma delas terá terror a pingüins... A não ser que more no Pólo Sul.
Sabendo-se qual é o perigo e onde fica, o mundo se torna mais previsível e tranqüilo. O pior medo é despertado quando não conhecemos bem os contornos do que nos apavora, por isso, o terror habita na escuridão. A fobia que normalmente se manifesta na infância é um recurso de defesa contra uma forma de medo muito mais terrível, que é a angústia: essa sensação de que algo indefinível e não-localizável nos ameaça. Ao escolher um algoz como um cão ou um palhaço, podemos controlar esse sentimento de forma bem mais eficiente do que se formos tomados por ele.13
Algumas formas de angústia são relativas a sentir-se dissolvido nesse outro maior que pode nos conter, nos engolir. Após Chapeuzinho ter sucumbido a tão aterrorizante destino, surge, na versão dos Grimm, o caçador que a tirará de lá. Essa figura faz um contraponto como um aspecto do lobo que é uma ameaça primordial.
Parece contraditório, mas a figura do lobo abre espaço, ao mesmo tempo, para representar o risco da incorporação ao corpo materno, assim como seu oposto, a personificação de um objeto fóbico que lhe ajude a circular no mundo externo. A lógica da história como dizíamos é das mais primitivas: “é visível que o lobo está interessado, mas se alguém quer algo de mim, quem sabe pode ser que queira me engolir”, esse poderia ser o tipo de raciocínio de Chapeuzinho diante do lobo. Por isso, o caçador tem que fazer um parto, já que é nascendo que se sai do ventre materno.
A cena do bebê alimentando-se ao seio reproduz por fora a situação que o cordão umbilical estabelecia por dentro, de um fluido que liga o corpo de mãe e filho como se fossem um só. A partir dela, a criança iniciará um segundo parto, dessa vez psíquico. O desmame é um nascimento subjetivo, no qual o mais importante é a garantia para a criança de que seu corpo e sua pessoa são uma unidade indivisível e separada do corpo materno. É importante ressaltar que esse processo não ocorrerá somente com crianças alimentadas ao seio, seus esquemas se reproduzirão também com aquelas que usaram mamadeira e precisam transitar para outras formas de alimento, mais ativas e que exigem que a criança coma fora do colo.
A pantomima da colher transformada em aviãozinho que as mães fazem, marcando ruidosamente a viagem do alimento do prato à boca, é denotativa dessa separação. Seja no seio ou na mamadeira, o ato de se alimentar era de aconchego, mas com a chegada do prato e da colher há um mundo, cheio de instrumentos frios e duros, que se interpõe entre mãe e filho. Só de avião para cobrir uma distância tão nova e assustadora. Por isso, o desmame, no sentido subjetivo que lhe atribuímos, é um processo longo, almejado e temido pela criança, do qual o medo do lobo é um recurso defensivo auxiliar.
O pedido das crianças para escutar o conto da Chapeuzinho repetidas vezes justifica-se pelo prazer de encontrar o lobo, constatar a ameaça real que ele contém e assustar-se, para bem de tranqüilizar-se. É por isso que o objeto fóbico tem no pai seu melhor representante. O pai ocupa a mãe, ao exigir seu quinhão no interesse dela, oferecendo-lhe prazeres adultos que o bebê não pode lhe dar, fazendo com que muitas vezes ela se desconcentre da criança. É claro que o trabalho dela, assim como as preocupações mundanas com o dinheiro, com a vida social e cultural, produz o mesmo efeito; mas se há alguém disponível para ser culpabilizado por retirar da criança a atenção da mãe, este é o pai, afinal é com ele que ela dorme. Nada mais compreensível então que se alicercem em sua figura as representações do objeto fóbico, que será conclamado para rondar do lado de fora da casinha do porquinho.
Para os pequenos, que conhecem a boca como fonte primeira de prazer, é fácil pensar que aquilo que os adultos fazem quando estão a sós se relaciona com se morder uns aos outros. Essa conclusão se impõe porque ele decodificará tal modalidade a partir do seu desejo de mordiscar e abocanhar o seio, que são formas carinhosas de devoração. Os adultos, em uma certa sabedoria inconsciente, logo descobrem o imenso prazer que infunde no seu bebê a brincadeira de beijar a barriguinha como se fossem comê-los.
O lobo não é um bicho tão grande e raramente ataca o homem, então por que ele foi escolhido para esse papel desabonador? Acreditamos que justamente por ser a versão maligna do cachorro: ambos partilham a mesma carga genética, conforme a raça, quase a mesma aparência, e podem cruzar entre si. Enfim, um é a versão doméstica, e o outro, a versão selvagem do canídeo. Tão iguais e tão diferentes, o lobo e o cão mostram-se propícios para suportar a metáfora do perigo associado ao amor incestuoso, afinal, é algo tão familiar e próximo, como os pais, que pode ser vivido de maneira selvagem e distante, tal qual os desejos inconfessáveis e incompreensíveis que se imiscuem na relação com eles.
Entre as tantas interpretações possíveis da história de Chapeuzinho, pode-se pensar que ela seja alusiva ao potencial de sedução contido nas relações com os adultos. Sendo assim, é natural que estes, vividos até então como protetores, revelem seu lado obscuro: alguém que segue sendo o mesmo, mas que mostra sua face selvagem. Como o cão doméstico se presta para encarnar a fera de que necessitamos invocar em determinados momentos (aquelas crianças que se desesperam quando vêm um, aferrando-se ao colo mais próximo), o lobo é, em definitivo, essa versão selvagem do perigo doméstico, uma prova de que o papai bonzinho que se tem em casa pode tornar-se uma figura ameaçadora e temível.
Chapeuzinhos quando (não) crescem...
Existem adultos que são completamente alheios às sutilezas eróticas que estão presentes na vida cotidiana (certamente o leitor conhecerá a história de alguém próximo que seja assim). São aquelas mulheres ou homens que nunca percebem quando estão sendo olhados, dificilmente arranjam parceiros em função de que não sabem, nem rudimentarmente, praticar o jogo da sedução e se queixam de serem invisíveis, quando na verdade são é cegos para este assunto.
Quando enfim algo acontece para esse tipo de inocentes, eles põem tudo a perder por só entenderem as coisas depois da noite ter passado. Muitas vezes, se envolvem em relacionamentos em que são usados das mais diversas formas, já que a passividade infantil é a única modalidade de relação que têm a oferecer e sempre há quem tire proveito disso. Possuem uma ingenuidade crônica, a experiência parece nunca ser cumulativa, estão sempre repetindo seus erros, incapazes de aprender como funciona o jogo sexual. Com alguma freqüência, essa inocência militante se estende para os territórios fora do amor, fica complicado trabalhar e estudar, já que raramente percebem os subtextos que estão implícitos na comunicação entre as pessoas, nas instituições que freqüentam, enfim são imunes a quaisquer sutilezas.
A ingenuidade adulta é uma patologia das mais sérias, causa uma série de embaraços, atrapalha ou inviabiliza a vida amorosa das pessoas envolvidas e, pior, geralmente não é reconhecida como um grande problema. A pessoa que a possui se sente pura e boa, enquanto os outros é que são cheios de hipocrisia e intenções escusas. Pois bem, uma provável fonte dessa ingenuidade provém de uma recusa inconsciente em admitir o preponderante papel do sexo na nossa vida.
Ao longo do crescimento, há uma série de idas e vindas a respeito dessa questão. O período de latência, por exemplo, é um momento de suspensão da problemática. Algo como: não quero saber disso, pelo menos neste momento, tenho coisas mais importantes para me ocupar. Depois de ter passado pelo intenso drama amoroso e erótico do Complexo de Édipo,14 que torna as crianças até os 4, 5 anos tão difíceis de lidar, finalmente as exigências eróticas e as disputas de poder dão uma trégua.
Na verdade, é um armistício merecido, pois a longa batalha anterior estabeleceu o lugar das coisas. Quando a latência chega, os pais diminuíram amorosamente de tamanho e aumentaram sua estatura em autoridade, a própria criança já não se sente tão central na vida deles. Muitos vínculos de dependência mais primitiva, que envolviam tanto física e espiritualmente pais e filhos, estão se dissolvendo nessa ocasião. Graças a isso, sobra energia para se alfabetizar, voltar-se para os amigos, para a escola. Tudo vai bem até que a puberdade termina com a trégua, traz novamente à cena desejos incompreensíveis, modifica o corpo, erotiza a vida.
Essa postura latente vida afora é inviável, pois não cabe mais no quadro do adulto: seu corpo é sexuado, os calores do desejo invadem seu corpo, quer seja na fantasia masturbatória quer, nos piores casos, sob a forma de uma angústia que o deixa desamparado. Essas almas puras querem ser celibatárias como os latentes, mas terminam fazendo o papel da avestruz que esconde a cabeça no buraco, deixando exposto o enorme corpo. Dentro desse esquema, quando a vida lhes impõe um papel sexual, vão oferecer o que têm: sua ingenuidade. Ser uma assustada Chapeuzinho é até onde vai a sexualidade de quem não quer saber nada do assunto.
Acima de tudo, essas pessoas não querem saber da diferença dos sexos, já que o amor e o exercício da sexualidade são movidos por uma sensação de que somos incompletos, uma metade em busca da outra. A diferença dos sexos, que partilha os seres com base em uma grande divisão de identidade, nos coloca a priori diante da impossibilidade de pertencer aos dois times. O desejo sexual é mais variado do que isso, ele permite que tanto a identificação (masculina ou feminina), assim como o tipo de objeto escolhido para amar (homossexual ou heterossexual), faça combinatórias diversas, pessoais e intransferíveis. Mas há um ponto de partida com o qual não podemos deixar de lidar: em condições normais nascemos fisicamente sexuados, pertencentes a uma das metades.
Aceitar a diferença dos sexos traz, como decorrência, a perda não só da inocência, como também da onipotência infantil. É difícil aceitar que há algo em nós que sempre dependerá do outro para ser conquistado. Uma vez sexuados, seremos para sempre incompletos. Por mais que um homem se conecte com seu lado feminino e vice-versa, sempre será o outro lado. Amar é... ser incompleto. Por isso, essa ingenuidade é defendida com unhas e dentes, para voltar a ser algo tão valioso como acreditávamos ser quando bebês e perdê-la é ficar à mercê do amor. Homens ou mulheres, por mais principescos ou poderosos que sejam, se estiverem em busca de algum amor, estarão lidando com a incompletude.
Notas
1. PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1989.
2. Da obra original de Perrault (Histoires ou Contes du Temps Passe, Avec des Moralités. Paris: Barbin, 1697), in TATAR, Maria. Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. É interessante observar que esses versinhos finais foram suprimidos das edições atuais de contos de Perrault.
3. GRIMM, Jacob e Wilhem. Contos de Grimm. Belo Horizonte: Ed. Villa Rica, 1994.
4. Conforme Maria Tatar: A História da Avó foi contada por Louis e François Briffaut, em Nièvre, 1885. Publicada originalmente por Paul Delarue em Lês Contes Merveieux de Perrault et la Tradition Populaire”, “Bulletin Folklorique de l’Îlle-de France” (1951). Ibidem p. 335. Essas fontes sugerem que, embora A História da Avó tenha chegado até nós graças a uma pesquisa posterior àquelas que propiciaram as compilações mais tradicionais, como as de Perrault e dos irmãos Grimm, ela é resultante de uma pesquisa dentro de parâmetros de rigor histórico que nos autorizam a considerar esta versão mais antiga que as anteriores.
5. FREUD, Sigmund. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905). Obras Completas, vol. VII, p.163. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
6. Surpreendentemente, a enurese é um sintoma cuja cura responde bastante bem a uma intervenção moderadamente severa por parte da família. Uma explicação plausível para esse fenômeno deve-se ao fato de a criança receber a reprimenda como a bem-vinda proibição de se entregar a uma forma de satisfação sexual que, embora sinta, é muito pesada para carregar. Trocando em miúdos, ela sente um prazer sexual de alguma forma conexo com coisas que os adultos fazem e sobre as quais ela não sabe bem o que são. Essas sensações corporais estranhas e boas, de alguma forma, se associam a seus pais, porém ela não tem registro possível para tal desejo, porque é proibido e complicado demais. Por isso, se urina em sonhos ou mesmo segura o xixi até que sua saída explode como forma de prazer. Quando lhe é proibido urinar em qualquer lugar, embora pareça um contra-senso proibir algo que tem motivações inconscientes, muitas vezes, a criança consegue controlar-se; é como se ela fosse excluída de um circuito de prazer muito complicado para ela mesma. Algo semelhante ao que sentimos quando ficamos impedidos de comparecer a um compromisso desejado, mas que temíamos enfrentar.
7. Ver em PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1989, p.53 e 24.
8. No Capítulo VI do livro O Pensamento Selvagem, Levi-Strauss demonstra as pontes entre os tabus sexuais e alimentares: “Todas as sociedades concebem uma analogia entre as relações sexuais e a alimentação... (...) Em todo o canto do mundo, o pensamento humano parece conceber uma analogia tão estreita entre o ato de copular e o de comer que muitas línguas designam essas duas coisas pela mesma palavra.” É na base disso que, explica o autor, os tabus geralmente se estabelecem sobre estes campos, ou seja, as regras que estabelecem quem poderá casar-se com quem, deslizam-se metaforicamente para “quem come quem”, redundando nas práticas de restrições alimentares, ou seja, o que se pode e não se pode comer. In: LEVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem, São Paulo: Editora Nacional e Editora da USP, 1970.
9. “Ao mesmo tempo que a vida sexual da criança chega a sua primeira florescência, entre os três e os cinco anos, também se inicia nela a atividade que se inscreve na pulsão de saber ou de investigar. (...) Constatamos pela psicanálise que, na criança, a pulsão de saber é atraída, de maneira insuspeita-damente precoce e inesperadamente intensa, pelos problemas sexuais, e talvez seja até despertada por eles”. In: FREUD, Sigmund. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade(1905). Obras completas vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1989. p.182.
10. GRIMM, Jacob & Wilhelm. Todos los Cuentos de los Hermanos Grimm. Madri: Coedição Editorial Rudolf Steiner, Mandala Ediciones, Editorial Antroposófica, 2000.
11. Na versão brasileira, o conto chama-se História do Jovem Que Saiu pelo Mundo para Aprender o Que É o Medo. In GRIMM, Jacob & Wilhem. Contos de Grimm. Belo Horizonte: Ed. Villa Rica, 1994.
12. JAKOBS, Joseph. Contos de Fadas Ingleses. São Paulo: Landy Editora, 2002.
13. Voltaremos a este assunto no Capítulo XIV, analisando o personagem Cascão, de Maurício de Sousa.
14. É como os psicanalistas chamam o triângulo amoroso em que os filhos pequenos se envolvem com seus pais. O filho amará o progenitor do sexo oposto e disputará sua preferência com o do mesmo sexo. Este primeiro amor deixará seqüelas pelo resto da vida. Freud utilizou-se da trama da tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles, como metáfora desse triângulo.
Texto de Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso em "Fadas no Divã - Psicanálise Nas Histórias Infantis", Artmed, Porto Alegre, 2006, capítulo III. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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