4.12.2019

A MALDIÇÃO DA CASA DE BRAGANÇA

Armas da Casa de Bragança
1. D. Maria I

Uma antiga lenda portuguesa dizia que o primogênito dos Bragança nunca empunharia o cetro. Contava essa lenda que um frade franciscano, indo pedir esmolas a d. João IV (1604-56), rei de Portugal, quando este ainda era o quarto duque de Bragança, foi despedido com um pontapé. O frade rogou-lhe então uma praga: que a descendência dos Bragança nunca passaria pelo primogênito. E, de fato, tanto d. João VI quanto d. Pedro I e d. Pedro II tornaram-se herdeiros do trono por conta da morte de seus irmãos mais velhos.

O marquês de Pombal tinha o príncipe d. José, irmão mais velho de d. João, em alta conta. Chegou mesmo a tramar com o avô deles, o rei d. José I, para fazê-lo seu sucessor em detrimento da mãe, d. Maria. O projeto não seguiu adiante, e, com a morte do rei, d. Maria subiu ao trono, e Pombal caiu em desgraça. O futuro brilhante que se vislumbrava para d. José foi abortado por sua morte prematura, em 11 de setembro de 1788, vitimado pela varíola. Seu irmão mais novo, d. João, tornou-se assim o herdeiro do trono português.

O reinado de d. Maria I seria marcado por um permanente esforço para negar e anular todo vestígio de espírito pombalino que estivesse associado à administração do reino português, o que foi na verdade um passo atrás, pois o marquês de Pombal promoveu uma verdadeira renovação cultural, política e econômica durante os 27 anos em que ele serviu ao rei d. José I. Razões econômicas motivaram a expulsão dos jesuítas, estrategicamente planejada para proteger as fronteiras do Brasil, expandidas pelos bandeirantes e sacramentadas pelo Tratado de Madri (1750). Fronteiras que eram então ameaçadas pela ação dos padres espanhóis e portugueses em suas missões tanto no norte quanto no sul do Brasil. A reação dos jesuítas das Missões, que, junto com os índios missionados, pegaram em armas para impedir a desocupação prevista no tratado, foi o pretexto para sua total expulsão do Império português. A partir de Portugal, essa aversão contra os membros da ordem criada por santo Inácio se espalharia por todas as cortes da Europa: a França, a Espanha e os demais países europeus também os expulsaram, e o Vaticano extinguiu a ordem em 1773.

Kenneth Maxwell chama a atenção para o caráter reativo dos grandes feitos da política de Pombal. Graças ao terremoto de Lisboa, ele foi levado a reerguer a cidade a partir de uma perspectiva urbanística nova. Diante da tragédia que apavorou e paralisou o rei, o ministro arregaçou as mangas e pôs-se a trabalhar na reconstrução de Lisboa, disposto a fazê-la mais bela e mais grandiosa do que jamais fora. Nessa tarefa, Pombal empreendeu uma verdadeira campanha, repensando o traçado das ruas, a planta dos palácios reais e sua localização. Por causa da expulsão dos jesuítas, ele teve de reformar o sistema de educação português, até então controlado e orientado pela ordem de Santo Inácio. Essa reforma do ensino representou verdadeira revolução, estimulando a valorização das ciências exatas e a reformulação das cadeiras de teologia e filosofia.

Desse ponto de vista, o reinado de d. Maria I (1777-92), extremamente religiosa e de natureza impressionável, representou um notável retrocesso. A rainha encheu a corte de padres, e seu fanatismo estimulou uma onda de religiosidade e superstição. Quando ladrões entraram numa igreja e espalharam hóstias pelo chão, ela decretou nove dias de luto, adiou todos os negócios públicos e acompanhou a pé, empunhando uma vela, a procissão de penitência que percorreu toda Lisboa. Um dos primeiros sintomas de sua loucura foi a obsessão com as penas eternas que seu pai, o rei d. José I, deveria estar sofrendo por ter permitido que Pombal perseguisse os jesuítas. Em sua imaginação, ela via o pai como “um monte de carvão calcinado, negro e horrível sobre um pedestal de ferro fundido, que uma multidão de pavorosos fantasmas ameaçava derrubar”.

A morte do marido, em 1785, sucedida pela do filho mais velho, em 1788, e todo o processo revolucionário que sacudia a Europa naquele final de século — cujos ruídos chegaram à colônia americana, provocando a Inconfidência Mineira — também contribuíram para a alienação mental da rainha. Para tratá-la, veio de Londres um dos mais renomados psiquiatras da época, médico do rei da Inglaterra, Jorge III, que enlouquecera em 1788. De nada adiantaram, no entanto, os “remédios evacuantes” do dr. Willis. D. Maria I foi afastada do trono em 1792, cabendo a partir de então o fardo de reinar em seu nome ao filho d. João. Em 1799, foi declarada louca sem esperança de cura, e d. João tornou-se príncipe regente.

2. Carlota Joaquina

Uma característica da política do reinado de d. Maria I e de seu tio e marido, d. Pedro III, foi a busca de um entendimento com a Espanha, o que deu origem ao Tratado de Santo Ildefonso, assinado em outubro de 1777, em que se delimitavam as zonas portuguesa e espanhola na América do Sul. Em março do ano seguinte era assinado em Madri o Tratado do Prado, pelo qual ficaram acertados os casamentos de d. João com d. Carlota Joaquina e da irmã dele, d. Mariana Vitória, com o príncipe espanhol d. Gabriel. O casamento de d. João se realizou em 1785, quando a noiva tinha dez anos de idade, e só se consumou em 1790.

Carlota Joaquina nascera em uma corte animada. Seu avô, Carlos III, e depois sua mãe, Maria Luísa — considerada por alguns autores como a mais imoral das rainhas da Espanha —, haviam levado um pouco de luz e alegria à inquisitorial Espanha dos Filipe. Carlota sabia dançar o minueto e as danças espanholas, além de tocar harpa e viola. Era uma menina inquieta, arteira, inteligente, com uma sede insaciável de divertimento. Nos primeiros tempos do casamento, ela, que trouxera consigo um grupo alegre e barulhento de moças, procurou animar a corte portuguesa com festas à moda da Espanha, onde se dançava ao som das castanholas.

Mas com o passar do tempo e com as reviravoltas das relações entre Portugal e Espanha, Carlota começou a revelar uma personalidade prepotente, intrigante e ambiciosa. O diplomata inglês William Beckford, que a conheceu muito jovem, dá testemunho de suas incessantes intrigas, políticas e privadas — seus extravagantes favoritismos e seus atos desumanos de crueldade. Carlota Joaquina também demonstraria desde cedo um grande pendor para o ódio, e, como diz Marais Cheke, “seu pacato, indolente e desajeitado marido foi a primeira pessoa a quem odiou, e o fez com a peculiar intensidade com que se odeia alguém que se despreza, mas de quem se depende”.

Desde que, com a morte do irmão e com a Regência, o destino de d. João mudou mudando também o dela, Carlota procurou intrometer-se nos assuntos de Estado, influenciando as decisões do marido. Mas — instruída pelos pais, com os quais se correspondia — seus interesses foram sempre os da Coroa espanhola, e esses nem sempre coincidiram com os de Portugal. Sua situação se tornou particularmente delicada a partir de 1796, quando a Espanha se aproximou da República Francesa e declarou guerra à Inglaterra, tradicional aliada de Portugal. Com a subida de Napoleão Bonaparte ao poder como primeiro cônsul, a Espanha, apoiada pela França, tomou, em 1801, a província portuguesa de Olivença e declarou guerra a Portugal.

Foi durante esse período que Carlota Joaquina começou a organizar em torno de si um partido secreto composto por nobres e eclesiásticos portugueses que, tal como ela, defendiam uma maior integração entre a Coroa portuguesa e a espanhola. Cientes de que Carlota mantinha uma correspondência secreta com Madri, ou seja, com o pai, que era então aliado de Napoleão, d. João e seu gabinete evitariam pô-la a par das decisões. Em contrapartida, ela adotaria uma atitude de inflexível hostilidade não só em relação ao marido mas a todos os seus ministros, sem exceção. Como diz Marcus Cheke:

"Suas mordazes pilhérias chegavam-lhes aos ouvidos fazendo que se pusessem a detestá-la tanto quanto já dela desconfiavam. Por isso, tacitamente de acordo com o príncipe regente, adotaram a única tática para a qual ela não poderia encontrar resposta: boicotaram-na — alijaram-na da política".

No começo de 1805, d. João mergulhara em profunda melancolia. Os sintomas pareciam com os que tinham antecedido à loucura da mãe, e ele se recolhera a Mafra, onde vivia cercado de frades. Carlota Joaquina envolveu-se em uma conspiração absurda para que d. João fosse declarado incapaz de cuidar dos assuntos de Estado, afastado do trono, e ela assumisse a Regência. As cartas que escreveu aos pais pedindo apoio para o golpe eram absolutamente mentirosas. Diziam que o príncipe estava tão louco quanto a mãe, e que a corte e o povo estavam dispostos a empunhar armas em favor de suas pretensões.

A verdade era que a imperturbável bonacheirice e a infalível bondade de d. João o tornavam universalmente popular, em contraste com a impopularidade de sua mulher. O golpe de Carlota fracassou; d. João, cujo anjo da guarda estava sempre alerta para protegê-lo de situações como essa, reapareceu na corte lisboeta a tempo de abortá-lo. O casamento de d. João e d. Carlota, que nunca fora muito feliz, a partir de então entraria em colapso total. Desejando evitar maior escândalo, o príncipe regente não consentiu que se abrisse devassa para castigar os conspiradores, limitando-se a passar a viver separado da mulher, encontrando-a apenas nas situações em que a etiqueta da corte obrigava. Ao longo de tantos anos de casamento, a aversão e o desdém que Carlota Joaquina nutria pelo marido cresceram até abranger toda a nação portuguesa.

Carlota Joaquina é um daqueles personagens da história do Brasil que conseguem obter opinião unânime entre quase todos os autores. Dos mais eruditos, como Otávio Tarqüínio e Oliveira Lima, passando pelos cronistas subsidiários da história do Brasil mais amena, como Luís Edmundo, Viriato Correia e Paulo Setúbal, até chegar aos adeptos da história sensacionalista, como Assis Cintra, todos a descrevem da mesma maneira, variando apenas os adjetivos. Carlota era baixa, quase anã (tinha menos de 1,5 metro), manca, com uma espádua mais alta que a outra, tinha a pele do rosto grossa e marcada pela bexiga, nariz vermelho, olhos miúdos e injetados, queixo de quebra-nozes e lábios muito finos e arroxeados, adornados por um buço espesso e que, quando se abriam, deixavam à mostra dentes enormes, “desiguais como a flauta de Pã”. Não era muito limpa, e na velhice vestia-se como uma bruxa, usando sobre a saia duas bolsas de couro compridas que iam até os joelhos e estavam sempre cheias de rapé e de relíquias, ossos, cabelos e outras coisas do gênero que de vez em quando beijava. A marquesa de Abrantes, mulher do general francês Philipe Junot — que a conheceu na mocidade, vestida em um rico traje de seda indiano bordado de ouro e prata —, assim a descreve:

"Seus cabelos sujos e revoltos ostentavam um diadema de pérolas e brilhantes de extraordinária beleza. Seu vestido era adornado por pérolas de inestimável valor. Trazia às orelhas um par de brincos como nunca vi iguais em ninguém: dois brilhantes em forma de pêra, do comprimento do meu polegar, e de um brilho mais límpido que o do cristal. Eram jóias soberbas e maravilhosas. Mas o rosto que emolduravam era tão horrível que lhes eclipsava a beleza. Tive a impressão de estar diante de algum ser estranho à nossa espécie. […] Não podia convencer-me de que ela era uma mulher e, entretanto, sabia de fatos nessa época que provavam fartamente o contrário".

É possível que a vivacidade de d. Carlota Joaquina suprisse, para alguns homens, a falta de atrativos físicos, pois ficaram na história os seus inúmeros casos amorosos. Carlota nunca teve pejo de misturar amor com política. Teria se insinuado a Junot quando este foi embaixador da França em Lisboa. Não é por acaso que a descrição mais cruel do aspecto físico de Carlota Joaquina, com aquele veneno que só as mulheres conseguem destilar quando o objetivo é destruir uma rival, tenha sido deixada por mme. Junot. Do casamento com d. João, nasceram-lhe seis mulheres e três homens. Em 1793, d. Maria Teresa; d. Antônio, em 1795; d. Maria Isabel, em 1797; d. Pedro, em 1798; d. Maria Francisca de Assis, em 1800; d. Isabel Maria, em 1801; d. Miguel, em 1802; d. Maria Assunção, em 1805; e d. Ana de Jesus, em 1806. Destes, segundo a maledicência da época, apenas os seis primeiros seriam filhos de d. João. O nascimento da última filha, Ana de Jesus, só seria saudado com as solenidades de praxe um ano depois.

3. D. João

D. João assumiu a Regência do reino de Portugal em 1799, aos 38 anos de idade. Segundo a marquesa de Abrantes — que achava a família real portuguesa a mais feia do mundo —, d. João era baixo, gordo e moreno. Tinha a cabeça grande demais para o corpo, os cabelos quase encarapinhados. O lábio inferior grosso e caído dava-lhe um ar abobalhado. Suas coxas e pernas eram muito gordas, e ele tinha mãos e pés muito pequenos. Outro estrangeiro que o conheceu depois que voltou para Portugal, em 1821, conta que era dificílimo entendê-lo, pois devido à falta dos dentes sua articulação era defeituosa, e ele dava uma espécie de grunhido a cada palavra. Esse cacoete, completa o estrangeiro, “parece ser nele um modo de expressar satisfação, pois a cada uma das minhas respostas grunhia mais ou menos de acordo com o maior ou menor agrado que sentia”.

O gosto pela higiene também não era muito forte no monarca. Não havia memória, nem em Lisboa nem no Rio de Janeiro, de d. João ter tomado um banho de corpo inteiro. No Brasil, apenas quando um carrapato mordeu sua perna, infeccionando-a, aderiu aos banhos de mar, tidos como medicinais. Vestia-se com desmazelo. Suas roupas, sempre gastas, com grandes nódoas de gordura, eram usadas até caírem de podres. Os criados aproveitavam as suas longas sestas para remendá-las sobre o próprio corpo do monarca. Era extremamente glutão, e a lenda dos franguinhos que passou à história pitoresca foi registrada por vários viajantes. Trazia-os sempre nos bolsos do casaco, comia-os com freqüência mesmo entre as refeições, e eram especialmente preparados para ele por um cozinheiro francês, já sem os ossos, para facilitar-lhe o trabalho.

Muito tímido e afável, d. João à primeira vista passava por tolo. O general francês Jean Lannes, que serviu em Lisboa entre 1801 e 1804, dizia que o príncipe regente era “uma total nulidade. Sua única ocupação é a caça, e seu único prazer é cantar acompanhado ao alaúde e ser elogiado por sua performance”. Mas o diplomata britânico William Beckford, que o conhecera em 1794, achou-o sagaz e muito articulado, com uma notável facilidade para expressar-se, registrando que “um curioso estilo de humor nacional dava mais sabor às suas pilhérias”.

D. João possuía também certa distinção natural que, aliada a uma cativante expressão de benevolência, impressionava favoravelmente a maioria dos estrangeiros. Segundo Otávio Tarqüínio, ele não tinha a mais leve sombra de amor à novidade, aprazendo-se com a rotina, com a monotonia, com a repetição. A enorme capacidade de adaptar-se às mais opostas circunstâncias que demonstrou ao longo de seu reinado denunciava o oportunista, com uma grande disposição de subsistir. Herdara de seus maiores a predileção pela música sacra, e dizem os contemporâneos que, graças ao empenho do príncipe regente, a música de igreja que se fazia em Portugal era a melhor da Europa. Outra atividade em que se comprazia, antes que o excesso de peso e as hemorróidas o impossibilitassem, era a caça, especialmente a caça com falcões.

Medroso até o pânico, segundo o representante da Áustria no Rio de Janeiro, o barão Wenzel de Mareschal, d. João, “em caso de perigo, perde não só a vontade, mas todas as faculdades”. Por isso era facilmente impressionável, e os auxiliares que lhe conheciam essa fraqueza fabricavam oportunamente conspirações necessárias para amedrontá-lo e arrancar-lhe decisões. O ambiente político estimularia o seu caráter naturalmente desconfiado, e, tendo em casa uma mulher que durante quase todo o casamento estava pronta a tentar derrubá-lo, mantinha para com os seus a mesma desconfiança que nutria em relação aos estrangeiros. Estava sempre em guarda, orientando suas ações por uma excessiva cautela, preferindo protelar, adiar além do limite decisões fundamentais.

Mas era também muito cioso de sua posição, ciumento de seu trono, gostava de ser rei e suportaria as maiores humilhações para conservar a coroa. Embora a indecisão e a indolência fossem os seus traços mais característicos, não era desprovido de certa perspicácia, que o capacitava a adotar o caminho certo nas crises tanto políticas como domésticas. Soube, ao contrário do filho, cercar-se de homens sábios e prudentes, e não se deixaria dominar de modo definitivo por nenhuma facção, preferindo alternar a seu lado ministros ora simpáticos à Inglaterra, ora simpáticos à França, conforme pendesse a balança do poder na Europa para um dos dois lados. Enfrentava os ministros estrangeiros das nações mais poderosas com resignação e complacência. Preferia usar de astúcia a empregar a força, pois que esta nem de fato nem por natureza tinha, evitando as atitudes frontais, os compromissos irremovíveis. Neill Macaulay ressalta, no entanto, que, se considerarmos a posição precária de Portugal, espremido entre um continente dominado pelo Exército francês e um oceano governado pela Marinha britânica, encontraremos mais motivos para apreciar a habilidade política de d. João.

4. Nascimento e infância de d. Pedro

No dia 12 de outubro de 1798, a bordo da corveta William, ancorada no Tejo, que esperava tempo bom para seguir viagem até os Estados Unidos, Hipólito da Costa — que se destacaria a partir de 1808 com a publicação do Correio Braziliense, o primeiro jornal brasileiro — anotou em seu diário:

"Hoje, pelas oito horas da manhã, salvaram todas as torres e vasos de guerra, e se embandeiraram, não sendo dia de festa, ou gala grande na corte; é muito provável, e quase certo, que a princesa tivesse o seu bom sucesso, porque há quatro dias está com dores".

Suposição que se pôde confirmar no dia seguinte:

"Ontem, ao meio-dia, às trindades e à meia-noite, salvaram todas as torres e vasos de guerra e se iluminou toda a cidade. Hoje de manhã tornou a haver salva, e indo a terra soube que S. Alteza tinha dado à luz um menino".

O príncipe que nasceu naquele dia foi batizado com o extenso nome de Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Serafim de Bragança e Bourbon. Era o quarto filho de d. João e d. Carlota Joaquina, e o segundo varão. Quando o primogênito, d. Antônio, nascido em 1785, morreu, em 1801, ele se tornou o segundo na linha de sucessão da avó, d. Maria I — atrás apenas do pai. Mme. Junot, que o conheceu aos sete anos, tão rigorosa na avaliação das deficiências estéticas da família real portuguesa, diria que na família Bragança só havia uma pessoa bonita: o pequeno d. Pedro. O menino, esperto e de olhos muito vivos, que desde pequeno gostava de brincar de soldado, deve ter ficado muito impressionado com a figura imponente do general Junot e com o belíssimo uniforme de general-comandante dos hussardos com que ele se apresentou a d. João. No dia seguinte, o príncipe regente mandou um criado à casa de Junot pedir-lhe o uniforme emprestado. Queria copiar o modelo para fazer um igual para ele e outro para o filho.

Em 1795, devido ao incêndio que destruiu o Palácio da Ajuda, toda a família real se mudou para o Palácio de Queluz. Foi ali que nasceu d. Pedro, em um quarto chamado “D. Quixote”, por ter as paredes adornadas com cenas das aventuras do fidalgo da Mancha. Passou naquele palácio, onde também vivia a avó louca, toda a infância, antes de partir para o Brasil. Não deve ter sido uma criança muito feliz. Pouco amado pela mãe, que preferirá a ele o irmão mais novo, d. Miguel, d. Pedro era querido pelo pai, mas este, reservado e depressivo, mantinha-se igualmente afastado do filho.

As afeições que teve na infância foram as dos mestres e, principalmente, a de d. Antônio de Arábida, seu confessor. Esse jovem e brilhante sacerdote tinha travado conhecimento com d. João no convento de Mafra, onde o príncipe regente gostava de se recolher. Impressionado com a inteligência e a cultura de Arábida, que então era bibliotecário do convento, d. João o designou para cuidar da alma do pequeno príncipe. Havia tal confiança na sua experiência que foi o escolhido para acompanhar d. Pedro e servir-lhe de mentor quando, em 1807, uma das opções pensadas para garantir que a Casa de Bragança mantivesse o poder sobre o imenso Império português era enviar o príncipe para o Brasil como condestável.

Com nove anos de idade, certamente o menino podia apenas acompanhar perplexo as discussões sobre o seu destino. Os navios que o levariam e à sua pequena corte para o Rio de Janeiro chegaram a ser preparados. Informado de que havia uma conspiração para entregá-lo aos franceses e que era por isso que tratavam de salvar previamente seu filho, enviando-o para o Brasil, d. João cancelou o embarque de d. Pedro.

D. Antônio de Arábida acabou vindo para o Brasil no mesmo navio que d. Pedro e esteve estreitamente ligado ao príncipe e imperador até sua abdicação, em 1831. Dois outros mestres também acompanhariam d. Pedro até a idade adulta: o cônego René Pierre Boiret, professor de francês, e o padre Guilherme Paulo Tilbury, professor de inglês. Ambos se envolveriam diretamente nos problemas políticos do imperador após a Independência. O primeiro de seus educadores foi o ex-encarregado de negócios de Portugal na Dinamarca, João Rademaker, que falava a maior parte das línguas da Europa e era dotado de conhecimentos enciclopédicos. Outro de seus professores foi o dr. José Monteiro da Rocha. Indicado para o cargo pelo grande cientista Domingos Vandelli, Monteiro da Rocha era homem cultíssimo e, ao morrer, em Portugal, em 10 de dezembro de 1819, legou em testamento sua biblioteca a d. Pedro. Ele estudou música, para a qual tinha grande aptidão, com o célebre maestro Marcus Portugal. Todos esses mestres, no entanto, não foram capazes de proporcionar-lhe uma educação esmerada nem de moderar-lhe os instintos inferiores. Suas características pessoais se sobreporiam às do príncipe que era, e sua natureza sempre predominaria em detrimento da aquisição de uma cultura mais convencional.

A separação dos pais, em 1802, quando d. João preferiu ficar em Mafra e d. Carlota, cansada de viver em Queluz, decidiu morar na Quinta do Ramalhão, reduziu ainda mais o contato do menino com eles. Restava-lhe a presença distante e assustadora da avó louca. D. Maria passava a maior parte do tempo deitada, em um quarto com as janelas fechadas, de onde, vez por outra, ouviam-se os seus profundos “Ai, Jesus!”. Mas às vezes se exaltava e lançava terríveis gritos de pavor, imaginando que o demônio tinha vindo buscá-la. Quando estava melhor, a rainha — toda vestida de negro e com os cabelos brancos esvoaçando ao vento — passeava pelos jardins, acompanhada de seus médicos e do estranho simulacro de corte de velhos nobres decaídos que d. João montara em torno dela.

5. Fuga para o Brasil

A aliança política e comercial entre Portugal e Inglaterra vinha se renovando, através de tratados, desde 1346. Era a mais duradoura aliança já estabelecida entre dois países europeus. Ao longo desse casamento, a Inglaterra fora se tornando mais rica e mais bem armada que seu parceiro, assumindo papel dominante e garantindo proteção contra possíveis incursões da França e da Espanha nas lucrativas possessões coloniais portuguesas. Os ingleses, além de serem os poucos empresários estabelecidos em território português, também emprestavam ajuda militar, treinando tropas portuguesas e servindo como seus comandantes. A influência inglesa sempre prevaleceu, a despeito de eventuais objeções de aristocratas mais simpáticos à França ou à Espanha. Libertar-se do poderio econômico e militar da Inglaterra sem contrariá-la foi a difícil tarefa a que se dedicaram os governantes portugueses do século XVIII.

No começo do século XIX o imperador francês Napoleão Bonaparte controlava, direta ou indiretamente, a maior parte do continente. A Espanha já estava sob seu poder, e Bonaparte pretendia avançar sobre o pequeno Portugal a fim de garantir o completo bloqueio do continente à Inglaterra. O rei da Espanha, Carlos IV, aderira facilmente, mas o tratamento que recebera do aliado francês não encorajava d. João a tomar o mesmo caminho. Carlos IV fora obrigado a renunciar à Coroa e estava prisioneiro de Napoleão, destino que seguiria também seu filho, Fernando VII, para dar lugar a que José Bonaparte viesse a ser coroado rei da Espanha em 1808. Os rumores de que o projeto de Napoleão para Portugal era a divisão do reino tampouco estimulavam o desejo dos portugueses de se tornarem seus aliados.

Em 12 de agosto de 1807, Napoleão Bonaparte mandou um ultimato ao ministro dos Estrangeiros de Portugal, Antônio de Araújo de Azevedo, o conde da Barca: ou d. João fechava seus portos aos navios ingleses e considerava prisioneiros os cidadãos ingleses residentes em Portugal, confiscando-lhes os bens, ou sofreria as conseqüências de uma invasão francesa. Os ingleses, por sua vez, trataram logo de avisar que, caso d. João cedesse às pressões dos franceses, destruiriam os navios portugueses ancorados no Tigre e iniciariam missões exploratórias nas colônias portuguesas, inclusive o Brasil.

Vendo-se entre a cruz e a caldeirinha, e tendo a Inglaterra se comprometido a defender a Casa de Bragança e todo o reino português contra os ataques franceses caso Portugal renovasse os acordos anteriores, d. João assinou, em outubro de 1807, acordo secreto com seus tradicionais aliados, os ingleses. A possibilidade de d. João ter de se refugiar temporariamente no Brasil era bem vista pela Inglaterra. Além de manter a Coroa portuguesa e sua maior colônia protegidas de Bonaparte, essa solução abria novas perspectivas de escoamento para as mercadorias inglesas. Isso em um momento particularmente crítico — a Europa, sob o domínio de Napoleão, se encontrava de portas fechadas; os Estados Unidos ameaçavam com restrições; e a armada britânica acabara de ser derrotada no Prata.

Carlota Joaquina resistiria bravamente a esse projeto. Detestava a idéia de ir para o Brasil, pois já lhe parecia um horror viver em Portugal, que considerava atrasado. Nos dois meses anteriores à partida ela apelou desesperadamente aos pais, implorando para que livrassem a ela e às filhas de serem obrigadas a vir para o Brasil. Enquanto isso, aprestavam-se os franceses para invadir Portugal. No começo de novembro de 1807, chegou a Lisboa a notícia de que Junot partira de Bayonne comandando 23 mil homens. No dia 23 de novembro, Junot cruzou a fronteira com a Espanha. Marchava sobre Portugal e estava apenas a quatro dias de Lisboa. Foi só então que se iniciou o embarque.

Após dezesseis anos de reclusão, d. Maria I finalmente reviu as ruas de Lisboa, por onde, para evitar acumulação de gente, rolava às pressas o coche que a conduzia. As pessoas a ouviam gritar: “Não corram tanto! Acreditarão que estamos fugindo”. D. Pedro, que tinha a missão de acompanhar a avó, aguardava no cais. Foi difícil arrancá-la do carro: “Não quero! Não quero!”. Passaram-na para uma cadeirinha, onde continuou a gritar: “Por que fugir sem ter combatido?”. Ao embarcar na galeota, a rainha perguntou ao príncipe regente qual fora a batalha perdida pelos portugueses para forçar a família real e a corte a emigrar com destino ao Brasil. D. Maria resistiu a subir no navio, e foi preciso a força do capitão-de-fragata Francisco Laranja para fazê-la embarcar. Apoiada em duas damas, trêmula e apavorada, ela finalmente seguiu para os seus ricos domínios na América. Tinha quase 74 anos — iniciara seu reinado aos 43 —, e deixava Portugal após dezessete anos de completa alienação mental.

Entre a manhã de 25 e a tarde de 27 de novembro, milhares de pessoas embarcaram numa frota de navios que se compunha de uma grande nau, o Príncipe Real, oito navios de linha, oito vasos de guerra e trinta vasos portugueses de comércio. Nela partia, escoltada por navios de guerra ingleses, uma população que se compunha de doze pessoas da família real (entre as quais o príncipe regente, d. João, sua mãe, a rainha d. Maria I, d. Carlota Joaquina, d. Pedro, então com nove anos, e seu irmão, d. Miguel); membros do conselho de Estado, ministros, juízes da Alta Corte, oficiais do Tesouro, o alto comando das Forças Armadas, a hierarquia da Igreja, membros da aristocracia, funcionários, profissionais e homens de negócios, cortesãos, criados e um corpo da Marinha com 1600 homens. Iam também alguns cidadãos comuns que usaram de vários meios para obter passagem. Nos porões dos navios viajava toda a parafernália necessária ao funcionamento do aparelho de Estado, pratarias, tesouros e uma gráfica.

Em 29 de novembro, um dia antes da chegada de Junot, assim que soprou vento favorável, os navios levantaram âncora. A viagem de uma cabeça coroada da Europa para uma de suas colônias na América era um evento único em toda a história do colonialismo europeu. A decisão de transferir a corte para o Brasil foi considerada por muitos dos que ficaram como uma deserção covarde, um ignominioso e desordenado sauve-qui-peut, mas representou certamente a salvação da monarquia portuguesa. No dia 22 de janeiro de 1808, d. João chegou à Bahia. Foi recepcionado calorosamente. Um mês depois, ele partia para o Rio de Janeiro, onde aportou em 7 de março. A chegada de d. João e de sua corte foi um fato decisivo para a posterior Independência do Brasil.

Texto de Isabel Lustosa em "D. Pedro I, Um Herói Sem Caráter", coordenação de Elio Gaspari e Lilia Schwarcz, Editora Companhia das Letras (Editora Schwarcz), São Paulo, 2006, 1ª parte. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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