8.09.2022

PALADAR ABSOLUTO, A ARTE, A TÉCNICA E A CIÊNCIA DE TOMAR CAFÉ

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Fernando Henrique Freire está diante de uma mesa redonda. Dispostas sobre o tampo giratório, há cinqüenta xícaras de vidro. Elas contêm dez provas de cinco diferentes amostras de café da nova safra brasileira. O pó a ser classificado repousa no fundo das xícaras. Freire, de 61 anos, há 38 é provador de café. Para ele, coar a bebida é dispensável. Um assistente vem até a mesa. Segura um bule de alumínio amassado e gasto pelos anos de uso. Deita água fervente em cada uma das amostras. Primeiro, usa o olfato: com uma colher de prata, escuma a superfície do líquido, de modo a levantar fumaça. Inclina-se para frente, aproxima o nariz, sente o aroma. Repete o gesto com cada uma das xícaras. A mesa gira, as provas são deixadas para trás. Aos poucos, o café moído e levemente torrado ganha o fundo das xícaras. A mesa faz o giro completo. A primeira xícara está diante dele novamente. É hora de usar o paladar. Freire leva a colher até a boca e suga o líquido com um schlurp que seria considerado deselegante em qualquer outra circunstância. A prova é breve. O líquido é cuspido num vasilhame ao pé dele. Em dois segundos, o paladar de Freire entende qual é o sabor.

Freire sabe, por exemplo, se determinado sabor remete a uma árvore arábica (Coffea arabica) ou à outra espécie, a robusta (Coffea canephora). Sabe também discriminar suas variedades, tais como conilon,para esta, e bourbon, catuaí ou mundo novo para aquela. Cada amostra guarda marcas da região, do clima, da latitude e da altitude onde a árvore está plantada - e Freire é capaz de dizer se o fruto foi cultivado a pleno sol, se choveu muito naquela safra ou se choveu pouco. Também conhece os segredos da derriça - o método de extração dos frutos. Se no momento da colheita havia mais grãos verdes, amarelos ou vermelhos na árvore. Sabe dizer se o café foi posto para secar num terreiro ensolarado ou se houve chuva excessiva durante a secagem, assim como poderia dizer se o fruto foi mexido de maneira homogênea ou não. E mais: se o despolpamento da fruta para a obtenção do grão de café foi feito ao natural ou de modo artificial, fermentado em grandes tanques de água que eliminam os açúcares e fazem a acidez predominar. O paladar de Freire apreende tudo isso em dois segundos, da mesma forma que o ouvido de certos músicos identifica exatamente qual nota foi tocada. É o paladar absoluto.

"Em café, não existe melhor ou pior, tudo é questão de gosto", ensina. "Particularmente, não gosto do café Rio, mas é o café que atende ao paladar dos gregos, turcos e sírios." Embora nunca tenha saído do Brasil, ele tem na ponta da língua um mapa empírico do paladar cafeeiro humano: "O alemão gosta de café ácido; os italianos e os americanos gostam do encorpado; japoneses e escandinavos preferem o suave. Os franceses tomam o suave e encorpado. Já os holandeses adoram os sabores encorpados e levemente ácidos."

O paladar só existe se há um vocabulário para expressá-lo. O léxico do café é misterioso, raro: Sul de Minas ligeiramente ácido, Mogiana duro suave, Baiano apenas mole e encorpado, Consumo interno duro ligeiramente sujo e verde, Rio zona. Freire conhece as minúcias do gosto contidas em cada uma dessas expressões. Munido desse conhecimento, ele prepara a liga, a mistura dos variados grãos, os blends brasileiros a serem exportados para diferentes países. Embora exista uma média de produção em cada fazenda, há muitos desvios de uma safra a outra. Ano após ano, uma mesma fórmula geográfica não corresponde a idêntico sabor. No entanto, o paladar dos escandinavos, alemães ou americanos se mantém absolutamente constante. Por isso, todo ano é criada uma alquimia especial entre diversas qualidades de café, para satisfazer o gosto dos fregueses.

Texto de Antonia Pellegrino publicado na revista "Piauí", edição 1, outubro 2006. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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