10.21.2022

PODE A CIÊNCIA CRER EM DEUS?

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Louis Comfort Tiffany no vitral "Educação" (1890).

À luz das pesquisas mais recentes, a fé religiosa não tem mais sentido, sobretudo quando procura explicar o Universo, a vida e as leis que os regulam. Mas, quando recuam até o princípio desse processo, ciência e religião encontram-se diante do mesmo e (até agora) inexplicado mistério: de onde surgiu tudo isso?

Minha primeira afirmação talvez irrite algumas pessoas que prefeririam que não fosse assim. Mas é certo que em muitos países do mundo ocidental a religião se encontra em franco retrocesso, ainda que a maioria das pessoas continue buscando aquilo que se chama um sentido para a vida. Surpreendentemente, é um ramo da ciência que estimula cada vez mais essa busca. Eu me refiro àquela parte da Física que se ocupa das questões básicas do tipo de onde saiu o Universo ou como ele surgiu.

Em geral, a ciência não desfruta de uma imagem social muito simpática, hoje em dia. Ela é considerada fria, impessoal, carente dc sentimentos. Há até quem a culpe pelo fato de que o homem já não seja considerado o ponto central e absoluto de todas as coisas, tal como acontecia no tempo em que a imagem do mundo era descrita pelas religiões tradicionais, e de que tenhamos de nos conformar com a idéia de que a humanidade é algo insignificante, alojada num planeta sem importância que se desloca a enorme velocidade pelo vazio do Universo. Assim, não sobra do homem muito mais do que a teoria de que é um mero acidente, sem alma, sem objetivo e sem finalidade alguma em um Universo sem sentido, que surgiu sem nenhuma planificação prévia.

Mas comecemos pela questão da criação, ou melhor, da formação do Universo. Por quem e com que meios foi ele criado? Todas as religiões possuem seus mitos próprios sobre a criação, um ato planificado de uma divindade que já existia anteriormente. Vejamos agora o ponto de vista da ciência. O conjunto do Universo apareceu há aproximadamente quinze bilhões de anos devido a uma gigantesca explosão, que popularmente ficou conhecida como Big Bang. Dela há duas provas importantes: o Universo ainda continua em expansão e conserva um mínimo do calor daquela explosão, cuja magnitude jamais se calculou. No entanto, é possível medir esse calor que ainda está no Universo, como uma radiação remanescente, e ele é mais ou menos de quatro graus acima do zero absoluto (N. da R .: Mais ou menos 270 graus abaixo de zero, pois na escala Celsius, que utilizamos no Brasil, o zero absoluto corresponde a 273 graus negativos).

Antes do Big Bang não havia tempo nem espaço.

Por outro lado, a maioria dos pesquisadores do Cosmos aceita, atualmente, que no momento da criação do mundo o tempo e o espaço estavam infinitamente distorcidos, numa situação que se chama singularidade. Essa singularidade também pode se chamar limite ou fronteira. Ou seja, limite ou  fronteira do espaço e do tempo. De qualquer forma, não é possível falar de estado de singularidade e, simultaneamente, de espaço e tempo. Em um estado de singularidade nào existe absolutamente nada. nem espaço nem tempo. Dessa forma, no estado de singularidade temos diante de nós a verdadeira origem do espaço e do tempo.

Muita gente ainda tem uma ideia equivocada do Big Bang, o que é mais do que desculpável. Normalmente se acredita que havia um pedaço de matéria, extremamente comprimida, que existia por toda a eternidade, num pequeno pedaço de um vazio sem limites. O pesquisador, ao contrário, vê isso de forma muito diferente. Se se toma a sério o estado de singularidade, então fica desde logo excluída a possibilidade de existência do tempo antes do Big Bang. Da mesma forma, não existia o espaço vazio. Ambos surgiram do nada no momento da explosão. E assim, por mais difícil que nos pareça chegar a entender tudo isso.

Pelo menos nos primeiros tempos, essa teoria do Big Bang provocou muitas discussões entre os cientistas, pois mesmo entre eles havia quem imaginasse que não aparecera, apesar de tudo. nenhuma explicação para o surgimento repentino do Universo. E mais: ninguém podia também explicar de onde vieram a matéria e a energia que apareceram naquela hora. Para muitos, dessa forma, continuou parecendo possível acreditar cm algo semelhante à criação, tal como descrita nos livros religiosos. E há ainda outro mistério a explicar: por que o Universo tomou a forma e a organização que hoje conhecemos?

Fica claro que, imediatamente após o Big Bang, matéria e energia ficaram distribuídas de um modo assombrosamente uniforme. O Big Bang é, todo ele, uma coisa extraordinariamente uniforme. Todas as regiões do Universo nasceram da explosão no mesmo momento e exatamente com a mesma força. Mas isso ainda não é tudo. Em todo esse Universo, tão regular em suas características, havia desde o princípio uma pequena dose de diversidade impossível de calcular. Uma ínfima capacidade de inobservância ou descumprimento das regras. Daí partiram os primeiros passos rumo à formação dos sistemas e das galáxias.

Muitos pesquisadores acreditam que já no primeiro momento ficaram decididas as questões mais importantes que definem nosso Universo e que se pode explicar por que tudo é assim e não de outra forma qualquer. A chave do entendimento de todo esse conjunto está na Física Quântica. Normalmente, suas leis têm aplicação apenas em processos que ocorrem dentro das menores coisas, como os átomos, ou ainda nos núcleos dos átomos.

Mas o estado do Universo imediatamente após o Big Bang era tão extremo que é muito possível que os efeitos dos quanta tenham provocado a sua estruturação tal como a conhecemos agora. Cálculos já realizados demonstram que muitas das peculiaridades do Cosmos. que hoje ainda parecem misteriosas, têm explicação perfeitamente natural quando se aplicam a elas as leis da mecânica quântica. Isso também vale para quando se deseja investigar por que o Universo, de um lado, é tão uniforme e de outro, está estruturado de forma tão irregular que tornou possível o aparecimento das galáxias.

Desde que se consiga explicar isso,  não será mais necessário colocar nas  mãos planificadoras de Deus a responsabilidade por tais peculiaridades do Universo: tudo acontece numa ordem sucessiva adequada, de acordo com as leis da Física Quàntica. E há algo mais significativo: essas leis permitem explicar por que podem surgir do nada, com toda naturalidade, a energia e a matéria. 

As leis explicam tudo, menos as próprias leis.

Em Roma, há cerca de dois mil  anos, o poeta Lucrécio escreveu: "Do  nada não pode sair nada". Agora parece, ao contrário, que do nada pode sair tudo: espaço, tempo, energia, matéria e até mesmo ordem. Dito isso, fica claro que o conceito dc Deus está outra vez excluído das preocupações da ciência. pois as leis da Física são suficientes para explicar todo o Universo, inclusive sua aparição.

Isto significará. então, que a ciência suprimiu definitivamente Deus? Nesse particular, só posso falar por mim mesmo. Eu creio que o antigo conceito de Deus, que tocou com o dedo um botão qualquer e pôs em marcha todo o Universo, e agora se dedica a contemplar seu desenvolvimento, ficou totalmente desacreditado pela nova  Física e pela nova Cosmologia. No entanto, um ponto ainda permanece  obscuro: se hoje lemos leis que podem explicar praticamente tudo, como explicar a existência dessas próprias leis?

Muita gente aceita as leis da natureza sem nenhuma outra preocupação.  As coisas são assim, e pronto. O Sol nasce de manhã; uma maçã cai da árvore para o chão, mas não cai do chão para a árvore; os pólos magnéticos iguais se repelem etc. Essas pessoas não pensam mais adiante, nem se perguntam por que é assim, ou acontece assim. Mas. para quem alimenta tais dúvidas e preocupações, é fácil imaginar um mundo caótico, sempre regido pelo acaso, no qual energia e matéria se desenvolvem desordenadamente.

O Que a Ciência Não Explica

Frei Benjamin de Souza Ramos, da ordem dos beneditinos, é professor de História da Filosofia Medieval no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e Universidade Estadual de Campinas. Para ele, a existência de Deus está acima das explicações da Física sobre a origem do Universo.

O conjunto da tradição cristã se baseia em um dado da fé, ou seja. que Deus é o primeiro princípio de todo o Universo, além do qual não existe outro. Segundo este princípio, Deus criou o Universo em um ato de total liberdade, de total independência de qualquer condicionamento ou de alguma matéria-prima prévia que não tenha sido criada por ele. Qualquer que seja a matéria de que se constitui o Universo e como quer que ela se defina em suas formas mais remotas, foi criada através de um ato exclusivo e livre que teve Deus como sujeito.

Esta base é comum a todas as tradições cristãs, mas a maneira como ela é explicada depende de cada teólogo e do seu diálogo com a filosofia. Para citar um exemplo, nos séculos XII e XIII, os teólogos, principalmente São Tomás de Aquino,  fundamentaram não apenas a existência de Deus como também a relação mundo-tempo, tendo cm vista que o ato criador de Deus é em si,  eterno. Este ato alcança qualquer  homem, animal ou partícula de átomo surgida em qualquer instante do  Universo. Com isso, tentou-se mostrar que Deus pretendeu criar o mundo desde toda a eternidade, mas  o resultado de sua ação é temporal.

A ciência se impôs, como princípio, o parâmetro da experimentação — o que não deixa de ser legítimo. Mas nenhuma teoria científica, de  Aristóteles a Galileu e de Galileu a  Newton, se impôs como a única. O  cristianismo admite como compatível  qualquer teoria científica que. mesmo que silencie sobre a existência de Deus, ainda assim não o negue. As teses de Newton ou de qualquer cientista que o tenha sucedido podem ser incorporadas apenas como hipóteses. Pois, na maioria das vezes se sustentam porque explicam melhor um conjunto de fenômenos e não como evidências absolutas. A ciência não pode e não tem meios para se elevar além dos princípios sob os quais trabalha. Quando optamos por uma concepção do mundo a partir da Física, permanecemos sempre no limiar do horizonte metafísico.


O Que a Religião Não Alcança

O filósofo e físico José Raimundo Chiappin, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, é um dos poucos especialistas brasileiros em História e Filosofia da Ciência. Ele questiona a existência de Deus como hipótese cientifica. 

Quem acompanha a história e o  desenvolvimento da ciência através  dos séculos observa que. à medida  que ela avança nas explicações dos  fenômenos da natureza, tende a eliminar a crença do homem naquilo  que ele considera sagrado. Nesse  sentido, a hipótese da existência de  Deus pode se tornar um sério obstáculo ao progresso da investigação científica. Pois funciona como um limite ao que. aparentemente, é um processo interminável do conhecimento da natureza.

O surgimento da ciência moderna nos séculos XVI e XVII, para o qual contribuiram Kepler, Tycho Brahe, Galileu, Descartes e Huygens entre  outros, destruiu a imagem dos céus como moradia dos deuses. O movimento dos corpos celestes deixou de ter origem divina com a explicação mecânica do Universo. Da mesma forma, a teoria da evolução das espécies e, mais recentemente, a descoberta da estrutura e função do D N A (ácido desoxirribonucleico) ajudaram a explicar o surgimento da vida.

Atualmente, as leis da Física são  suficientes para explicar de maneira  satisfatória a constituição e o surgimento do Universo. Mas aqueles  que não estão satisfeitos e ainda  vêem um espaço para Deus na ciência, desta vez para explicar a harmonia e estrutura das próprias leis da Física, partem de uma pressuposição controvertida. Para vários autores. como o físico norte-americano Richard Feynman, a sistematização das leis científicas não pertence à natureza, mas foi criada pelo homem para organizar e entender os  fatos empíricos.

Outros cientistas, ganhadores de prêmio Nobel. como o francês Jacques Monod e o norte-americano Steven Weinberg, negam a existência  de um sentido na natureza. Para eles, o Universo basta a si mesmo e cabe à ciência apenas descobrir e explicar a sua constituição e as leis que o governam. O significado e o valor moral da existência de Deus podem ter algum tipo de fundamentação. Mas questiono a validade das tentativas de argumentação racional da existência de Deus com fatos científicos.

Texto de Paul Davies, fisico e escritor inglês, publicado na revista SuperInteressante em 30 setembro de 1987. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.



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