O helicóptero da CESP sempre dava voltas sobre a casa de Eny nas manhãs em que a meninas tomavam banho de sol na piscina. Era uma aeronave FH 1100, fabricada nos Estados Unidos pela Fairchild Hiller, usada pela empresa estatal paulista para fazer inspeção nas linhas de transmissão de energia elétrica. Comandante Henrique, o piloto, era major da Força Aérea Brasileira, mas tinha pedido afastamento para trabalhar na CESP, em Bauru. Morava na cidade com a mulher e um casal de filhos. Na época, ele tinha pouco mais de cinquenta anos e se tornara um grande amigo de Eny. O comandante gostava de voar sobre as mulheres seminuas para começar o dia bem disposto. Normalmente, os inspetores Paulo e Fernando voavam com ele e também se divertiam com os rasantes realizados sobre o bordel. Algumas mulheres saíam correndo, com medo que o helicóptero caísse, outras acenavam e mandavam beijos.
Quando voava com algum engenheiro ou inspetor novo, comandante Henrique dizia que antes de começar o trabalho gostava de sobrevoar as duas casas que tinha em Bauru para cumprimentar os familiares. E também para lembrar à esposa de pôr o pijama dele na geladeira, porque tinha horror a pijama quente. Só quando apareciam as prostitutas na piscina é que os novatos descobriam que o piloto estava brincando. Aquela mulher de biquíni azul, dizia para os colegas, é uma médica de São Paulo que vem aqui para realizar as fantasias sexuais dela; fica semanas na casa da Eny como se fosse puta, dando para quem ela quiser, depois volta para a capital e continua tratando dos pacientes como se fosse uma outra pessoa. Aquela outra é a Nara. Ela tem duas filhas lindas que também trabalham na Eny. E aquela morena linda? Quem é? É a Silvana. Aquela outra é a Sandra Gaúcha e a outra, a Alice Loira. Agora vamos começar a trabalhar. Todo mundo pensando só em energia elétrica, linhões e torres. À noite a gente confere a energia da libido e as linhas dos corpos das meninas, disse o comandante Henrique, ganhando mais céu e se distanciando do que ele chamava de paraíso.
Hoje rendeu, dona Eny, disse Zuleika entrando pelo salão. Eu e o seu João visitamos dez creches e ainda o mosteiro das freirinhas. Distribuímos arroz, feijão, macarrão, frutas e toda a carne dos dois bois que aquele fazendeiro de Agudos deu pra senhora. Que bom, Zu, pagou todos os seus pecados então, não é? Credo, dona Eny, também não sou tão pecadora assim.
Zuleika contou para a patroa que numa das creches encontrou três irmãos que tinham sido abandonados pela mãe havia uma semana. Dava dó de olhar para os coitadinhos, três menininhos, o mais velho tinha sete anos, e o mais novo, dois. Quase que eu peguei os três e trouxe pra senhora arrumar uma mãe nova pra eles, disse a funcionária. Eny comentou que iria encontrar uma família para as crianças, mas que nem gostaria de vê-las para não se apegar; lembrou do caso dos sete irmãos que levara para dona Helena e seu João criarem e que depois de dois anos o pai conseguiu arrancá-los de lá fazendo todos sofrerem. A gente melhora a vida dos pobrezinhos e depois a justiça não quer nem saber. Tiram eles da gente e devolvem para os pais, que só fizeram mal aos filhos. Revoltada, a cafetina continuou contando como foi dura a despedida. Naquele dia, o velho nem quis trabalhar, ficou fechado com dona Helena dentro de casa. Eu precisei chamar o Luís Antônio para levar as crianças ao Fórum. Nem olhei direito na cara do pai delas, que estava lá, junto com uma irmã de São Paulo. O vagabundo disse que tinha se recuperado, parado de beber e que estava trabalhando na capital; que mesmo sem a esposa ia conseguir criar os filhos com a ajuda da tal irmã que levou para participar da audiência. Mesmo com todos eles dizendo que não queriam ficar com o pai, o juiz achou mais justo entregar os filhos àquele bêbado. Leila, César e Rita, os mais velhos, me abraçaram e choraram muito. Mas não teve jeito, a última vez que vi os coitadinhos foi naquela tarde depois do Fórum, quando eles voltaram para a casa do seu João para acabar de pegar as roupas. Foi uma choradeira, Zu, você precisava ver. Saul teve que ir arrastado, gritava que queria ficar. Me chamava de tia e pedia pelo amor de Deus para que eu não deixasse que levassem ele embora. Quero ficar com a senhora, tia Eny, gritava o menino, sendo puxado pelas mãos da tia de São Paulo. Até Ponciano, o comissário de menores, chorou assistindo à cena. Dona Helena ainda correu até o carro para entregar à Leila um vidro com doce de leite que tinha acabado de fazer. Leve, minha filha, para vocês irem comendo no caminho. Fiz do jeito que você gosta, vai com Deus.
As crianças partiram e foram seguidas pelos nossos olhos molhados até o carro da justiça desaparecer na primeira curva. Chega de sofrimento, Zu, ajudar eu ajudo, mas me envolver como daquela vez, não dá mais, depois da morte do Maurício, meu coração ficou fraco pra sentir dor. No dia seguinte, Eny foi até a creche e, naquela mesma semana, encontrou uma família pra cuidar dos três irmãos de quem Zuleika tinha falado.
Ting, Tong e Tung eram três dos dez cães pequineses que viviam no bordel sempre muito bem cuidados por Blanche. Não faz xixi na roseira da Eny que ela não gosta, Tong!, gritava a velha, preocupada com as flores que eram o xodó da patroa. Isso mesmo, Blanche, tira esses cachorros fedidos do jardim porque tem moça nova na casa e estrangeira, disse Silvana, preparando-se para tomar sol na piscina. Quem é? Bonita? Quando a zeladora do canil ia fazer a próxima pergunta, Silvana interrompeu e revelou que a nova pensionista era da terra de Blanche, do Paraguai, e fora batizada por Eny de Elza Paraguaia. Já está prometida para um industrial de Piracicaba, que deve chegar no fim da tarde. Bom, deixa eu me bronzear para ficar linda para o meu Galinho. E eu vou continuar passeando com esses três assanhados, respondeu Blanche, sendo arrastada pelos montes de pelos descendentes dos cães de Pequim.
Hoje eu quero ouvir Maria Callas, disse Eny para Alice Loira. Orlando Silva e Sílvio Caldas que me perdoem a traição, mas quero ouvir Medeia. Estou com saudade do meu coronel. E que tem a ver a moça da voz fina com o Alcyr?, perguntou a gerente. Ele também gosta da Maria Callas, igual ao Maurício e igual ao meu pai... Os homens da minha vida gostam dela, o que eu posso fazer?
Enquanto ouvia a soprano, deitada no sofá de veludo vermelho, estilo francês, a cafetina conferiu se estava tudo certo com a documentação da paraguaia, preocupada que acontecesse com a prostituta internacional o mesmo que tinha ocorrido com Lola, uma argentina que não tinha passaporte e que acabou presa por Chicão e encaminhada à polícia federal de São Paulo. O brutamonte chegou a me dizer que eu poderia ser acusada de tráfico de mulheres, você lembra, Alice? Ele é bem capaz de suspeitar isso de mim mesmo, do jeito que vai com a minha cara. Se aparecer esta noite aqui, vai enfiar o rabo entre as pernas e sair quietinho com o bando de puxa-sacos dele. Com a minha puta de Assuncion está tudo certo, como manda a lei. Ela é linda, você não achou, Alice? Cabelos negros, longos como os de uma índia tupi, lábios grossos, vermelhos, coxuda e com uma poupança que os homens vão babar...
Eny falava com a funcionária de olhos fechados, com a boca nas palavras e os ouvidos na ópera que saía da vitrola. O Paulinho veio aqui tirar as medidas da Elza e ordenou para as costureiras da Capristor fazerem um vestido de gala em poucas horas para dar tempo de a paraguaia usar hoje à noite. O Paulinho Medina é um amigão, Alice, o irmão que eu gostaria de ter tido. Merece a família linda que ele tem. Há tantos anos sempre pondo aquela loja à minha disposição, me tratando com o mesmo respeito que ele dispensa às damas da sociedade. Paulinho é um dos poucos amigos que eu consegui fazer nesta cidade. Eny acabou adormecendo, e Alice Loira, antes de sair da sala, baixou o volume da ópera que contava a história da mulher que tinha cobras na cabeça.
Elza Paraguaia foi muito aplaudida pela plateia de cavalheiros que se aglomerou na sala para vê-la dançar com o freguês de Piracicaba. A festa, que teve até apresentação de dois tocadores de harpa, no melhor estilo guarani, terminou quando o sol apareceu. Tem um bando de filós lá fora, dona Eny, estão pedindo para comer a raspa do tacho, disse Blanche, bocejando. Deixa que entrem, o faturamento desta noite foi tão bom que esses pirralhos não vão me dar prejuízo. Quantos são? Tem uns seis rapazes, respondeu a velha. Eny pediu para três moças continuarem a festa com os filós e foi dormir.
Filó era o nome que se dava na zona do meretrício aos jovens iniciantes no sexo que não tinham dinheiro para pagar o serviço das prostitutas. Desde os tempos em que funcionava no centro de Bauru, a pensão da Eny tinha fama de ser caridosa com os pobres e tarados adolescentes. Era comum encontrá-los rondando a casa pela madrugada, esperando o último cliente sair para pedirem às meninas da cafetina a tradicional esmola, que nada mais era do que alguns minutos de prazer gratuito muitas vezes já ouvindo o galo cantar. Podem entrar os filós, dizia Zuleika abrindo a porta para a rapaziada. Na sala, as mulheres recebiam provocando; diziam que antes de irem para a cama precisariam amamentá-los para que os pênis deles atingissem um tamanho razoável. Era a hora mais relaxante da noite. Hora de rir e se divertir com os tímidos e desajeitados filós.
O ano de 1976 já estava quase acabando e Eny comemorava a contratação de mais empregados. Minha empresa está progredindo, dizia, já temos 21 funcionários registrados. Quero comprar panetones para todos eles de presente de Natal, não se esqueça, Nesmar. O contador que vinha traindo a patroa rezava para o golpe não ser descoberto. Carregava dentro da carteira um pedaço de papel com a imagem da Escrava Anastácia, que tinha uma mordaça na boca. A negra morreu com a peça de ferro apertando o rosto porque vivia dizendo que não era escrava. Apesar de crescer livre na lagoa do Abaeté, na Bahia, foi enterrada na igreja dos negros forros no Rio de Janeiro e passou a ser considerada guia espiritual de quem dela fosse devoto. Era para Anastácia que Nesmar pedia proteção, mesmo sabendo que estava cometendo um crime. Parte do dinheiro ilícito acabou gastando numa fantasia que usou quando foi destaque no desfile das escolas de samba e, por isso mesmo, precisou juntar mais para fazer a sonhada viagem a Paris. Deixava de recolher impostos estaduais e federais, desviando os valores destinados ao pagamento das dívidas da cafetina para um lugar que só ele sabia.
A chuva dos últimos dias deixou intransitável a estrada de terra que dava acesso ao bordel e, como já tinha feito outras vezes, Eny telefonou para o vice-prefeito Jurandyr Bueno. Você pode mandar aquela santa máquina abrir esse mar vermelho que alagou a minha estrada, meu amigo? Amanhã ela estará aí, prometia e cumpria o arquiteto. Com 59 anos, Eny ganhava peso e problemas de saúde. O diabetes começava a atacar os olhos e a circulação. Meus pés estão inchando demais, doutor, meu sangue não está circulando nada bem nas minhas pernas, queixava-se. Os problemas de visão ela tratava no Hospital Santa Catarina, também em São Paulo. Doutor Tadeu era o médico que cuidava dos olhos de Eny.
O oftalmologista alertou a paciente de que ela precisava levar o diabetes mais a sério. A senhora não deve fazer bagunça com o uso da insulina porque aí vão ocorrer alterações rápidas da taxa de glicemia que resultam nas hemorragias. É o que já está começando a acontecer nos seus olhos, dona Eny. A senhora está perdendo a visão por causa dessas hemorragias. A circulação do seu corpo também está sendo comprometida por essa razão. Também, ela vive comendo goiabada cascão e bombons da Kopenhagen, doutor. Esconde os doces dentro do cofre que fica no quarto dela, revelou o coronel Alcyr, que também participava da consulta. Eu sei que estou errada, doutor Tadeu, mas eu adoro doces, não consigo ficar sem. O médico, então, foi taxativo ao alertar que, se ela não perdesse os doces, perderia a vida. Depois que deixaram o hospital, Eny quis passear com Alcyr e Isabela e o motorista Luís Antônio pelos bairros do Brás, da Vila Mariana e da Aclimação para matar a saudade dos velhos tempos.
A fábrica de fogos do vô Nicolau era mais ou menos por aqui, apontava com o dedo. Meus pais moravam nessa casa quando eu fugi, dizia. Hoje ela está bem diferente, reformada, nem parece mais a velha pensão fornecedora de marmitas da finada minha mãe, dona Angelina. Lembro que minha mãe ficava acordada até de madrugada entrando e saindo daquela varanda enquanto eu não chegasse dos bailes de carnaval. As ruelas por onde eu andava com as pernas de fora entregando marmitas já desapareceram. Os três passaram a tarde inteira relembrando o passado da cafetina. Pararam para jantar numa cantina do Brás.
Os encontros do casal se tornavam cada vez mais espaçados. Otávio, sobrinho da cafetina, passou uma temporada na casa da rua Antônio Alves e acabou sendo protagonista de mais uma decepção. Foi acusado de furtar algumas joias de Eny.
Ninguém estava em casa quando o ladrão invadiu o quarto e conseguiu levar colares, anéis e pulseiras de ouro com brilhantes e pedras preciosas que estavam guardados num saco de veludo no fundo de uma gaveta. A casa não foi arrombada, dona Eny, disse o investigador. O ladrão ou a ladra encontrou uma porta ou uma janela aberta ou tinha as chaves. Preta começou a chorar e jurou que não tinha mexido em nada. A senhora me conhece, eu sou pobre, mas sou rica de honestidade, graças a Deus. Eu saí para ir ao supermercado e tenho certeza de que tranquei todas as portas. Quem mais tinha a chave da casa?, perguntou o policial. Eu, a Preta, o Alcyr, que está no Rio de Janeiro, e o Otávio, respondeu Eny, olhando assustada para o filho de Eda. Eu não roubei nada, não, nem sabia que a tia tinha tanta joia em casa. Sabia sim, disse Preta, uma vez você me perguntou e eu contei que as joias ficavam parte aqui na casa da cidade e a outra parte lá no cofre da pensão. É mentira dela, tia. Eu te quebro os dentes, sua vagabunda! Não fale assim com a Preta, repreendeu Eny. A tia lhe dá tantos presentes, meu filho, pago suas contas desde que você nasceu, se foi você que roubou as joias, por favor devolva e eu não deixo a polícia fazer nada contra você, eu prometo, Otavinho. Já disse que não fui eu, merda. Otávio tentou ir embora da casa, mas o investigador não deixou. Quero que todos venham comigo à delegacia prestar depoimento, disse, fixando o olhar nos olhos nervosos de Otávio.
A intuição de Eny e todas as pistas apontavam o sobrinho da cafetina como sendo o principal suspeito do furto; mas, temendo a certeza da verdade, ela não quis que as investigações avançassem e, no mesmo dia que pediu à polícia que se afastasse do caso, chorou nos ombros de Preta lamentando nunca imaginar que pudesse ser traída pelo próprio sangue. Acho que foi mais ou menos assim que minha vó Rosa Maria se sentiu quando eu fugi de casa e entrei nessa vida... Como se tivessem roubado uma joia valiosa dela; pra minha vó, o nome da família Cezarino era uma joia como as que o Otavinho me roubou. Eu também fui um Otávio na vida da minha vó, Preta. Não estou entendendo nada, dona Eny. Não precisa entender. Só fica aí me escutando que já tá bom, disse a patroa. Vó Rosa sempre achou que meu pai me criava muito solta, que eu era muito pra frente; dizia que eu entregava as marmitas que minha mãe fazia usando vestidos muito curtos, que eu rebolava demais e envergonhava a família. Minha vó nunca me perdoou por eu ter fugido de casa; Eda me disse uma vez que ouviu a avó falando que eu era diferente daquele jeito porque o demônio queria se vingar dela; que eu tinha puxado a Magdalena, uma irmã da vó, uma irmã de quem ela não gostava. Agora eu tenho certeza que eu também roubei a minha vó Rosa. Arranquei dela o nome dos Cezarino e ainda joguei na lama, na boca do lixo.
A confidente interrompeu pra dizer que Eny estava exagerando, porque era muito querida e respeitada. As crianças das creches fazem tanta festa quando encontram a senhora! Mas a minha vó não fazia não, muito pelo contrário. Morreu sem me perdoar, coitada. Passou quase cem anos correndo do diabo que ela acreditava que vivia querendo vingança. Nunca entendi esse ódio exagerado que vó Rosa tinha de mim. Quem a traiu foi a irmã dela. Que culpa tenho eu se meu pai é filho da Magdalena? Se a minha vó legítima é a Magdalena... O povo antigo é muito sistemático, dona Eny. Ela era velha, lá da Itália, pensava diferente de nós, que Deus a tenha! A senhora não vai pra pensão hoje não? Já são quase oito horas. Daqui a pouco, meu pai buzina lá fora. Claro que vou! A cafetina saiu da sala arrastando os chinelos e entrou no banheiro disposta a sair de lá mais animada para comandar outra noite de grandes negócios. Até cantarolou um bolero enquanto lavava os cabelos embaixo da água refrescante que vinha do rio Batalha.
Assim que ficou sabendo do assalto, o coronel Alcyr veio a Bauru e trouxe uma pistola Bereta italiana nove milímetros de presente para Eny. Agora esta casa vai ficar mais protegida, meu amor. Vou ensinar você a atirar com essa arma, disse ajeitando as mãos da amante no gatilho. Se for em legítima defesa, pode usar sem medo! As aulas de tiro foram num pedaço de terra perto do bordel cuidadosamente escolhido pelo coronel. Ele improvisou um alvo para os exercícios e os dois dispararam a arma dezenas de vezes até a cafetina aprender a atirar. O diabetes ainda não comprometeu a sua pontaria, meu amor. Para quem está começando, até que você já atira muito bem, elogiou Alcyr. Pura sorte, meu bem, longe assim já não consigo enxergar mais nada perfeitamente.
As primeiras cobranças que chegaram via correio, Nesmar conseguiu esconder de Eny. Abria, rasgava e queimava nos fundos do bordel, quando não tinha ninguém por perto. Ganhou mais tempo para continuar aplicando o golpe e era o único que sabia que os credores estavam incomodados e que poderiam bater à porta de Eny a qualquer momento. No final dos anos 1970, a empresa tinha 28 funcionários e setenta inquilinas. Um dia, Eny encontrou a correspondência antes do guarda-livros e descobriu o que ela acreditava ter sido uma traição. Assim que ficou sabendo que tinha uma dívida com o Iapas — Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social —, a cafetina passou mal. Alice Loira chamou o farmacêutico para medir a pressão da patroa, que não acreditava no que estava escrito na carta. Somando as multas, os juros e a correção monetária, o débito passava de 600 mil cruzeiros. Os procuradores do Iapas avisaram que estavam entrando com uma ação de execução fiscal contra Eny e que ela teria cinco dias para quitar a dívida ou, então, nomear bens a penhora.
A cafetina não conseguiu dormir naquela noite. Não é possível, Alice, você via eu entregar o dinheiro contadinho para o Nesmar pagar as contas, não via? Não posso acreditar que ele tenha feito isso comigo, e veja aqui, a prova no papel, a dívida é referente a esse período em que ele está trabalhando pra mim. Que sem-vergonha, disse Alice, a senhora devia ter feito ele assinar um recibo todo mês para provar que realmente entregava o dinheiro. Como a senhora vai provar isso agora? É a sua palavra contra a dele. No dia seguinte, Nesmar foi demitido. Eny jogou a carta do Iapas sobre a mesa do escritório e pediu explicações. Onde você enfiou o dinheiro que eu dei para pagar os direitos dos empregados, Nesmar? Nas fantasias, nas plumas que você pedia para mandarem para você lá do Rio de Janeiro? Será que eu financiei alguma escola de samba sem saber? Ou será que você me roubou para conseguir viajar para Paris? Não quero mais você trabalhando comigo. Quando eu perco a confiança, não adianta, que não dá mais certo. Mas eu recolhi as taxas, dona Eny. Está havendo alguma confusão, alegava Nesmar. Confusa está a minha cabeça, que não sabe o que vai fazer para pagar esta dívida de mais de 600 mil cruzeiros... Tem multas, juros... Furiosa, a cafetina fez um discurso contra o que ela considerou crime e falta de honestidade do ex-funcionário. Nesmar se defendeu, mas ela não acreditou. Ele deixou de trabalhar no bordel antes de conseguir juntar o dinheiro que queria. Nunca mais voltou à pensão nem falou com Eny, que, em nome da discrição, acabou preferindo não denunciá-lo à polícia. Nesmar deixou a profissão de contador para ser apenas massagista e continuou sonhando com o carnaval e com Paris.
Sem dinheiro para ficar em dia com o lapas e se livrar da ação de execução fiscal, Eny ofereceu para penhora o terreno e a casa que ela havia cedido para a família de seu João e dona Helena morar. Eny confidenciou aos amigos mais íntimos que Nesmar não foi o único escriturário fiscal que abusou da confiança dela. Mas esqueceu os contadores quando se viu ameaçada por um outro problema: a multiplicação dos motéis. Enquanto o número desse tipo de negócio aumentava em todo o estado, o faturamento da pensão diminuía. Está na hora de fechar as portas, nunca vi profissional perder para amador, dizia Eny, revoltada, aos fregueses mais chegados. Para recuperar o movimento e a animação da patroa, as meninas começaram a promover festas na casa. Uma delas terminou em confusão. Silvana de Santa Catarina foi detida. A moça era casada, morava em Campinas e costumava passar temporadas na casa de Eny para reforçar o orçamento familiar. O marido sabia e concordava com o trabalho da esposa. Se eu fosse o chifrudo do seu marido, eu lhe enchia de chineladas, dizia a cafetina. Você vem aqui porque gosta de se deitar com um homem atrás do outro. A mim não engana não! Naquela noite de festa, Silvana quebrou uma garrafa de cerveja na cabeça de um cliente que tentou roubá-la. Os amigos do homem ferido tentaram se vingar lançando copos e garrafas contra as paredes. Houve tumulto e muita gritaria. Eny telefonou para a polícia e pediu ajuda. Estão quebrando tudo, venham rápido, por favor. Quando ficou sabendo que Silvana Santa Catarina tinha começado toda aquela confusão, ficou ainda mais nervosa. Só podia ser essa desmiolada! Nunca mais vai trabalhar comigo, nunca mais! Que fique lá em Campinas, fazendo michê naqueles quartinhos de segunda categoria, cheios de percevejos! Foi a última noite de Silvana Santa Catarina na casa da Eny. Antes de ir para a delegacia, a prostituta foi obrigada pela patroa a deixar todo o dinheiro dos programas realizados naqueles dias para ajudar a pagar os estragos que tinha causado ao bordel. Pegue a ficha dela, disse o delegado ao investigador. A polícia ainda controlava com rigor a vida das prostitutas. Todas estavam registradas num volumoso arquivo. Foi de lá que o policial trouxe a ficha de Silvana Santa Catarina. Anote aí, gritou o chefe da cadeia, dia 8 de julho de 1979, nessa data, detida por desordem na casa da Eny. Apesar do prejuízo, Eny acabou permitindo que as mulheres organizassem outras festas. Uma das últimas foi inspirada na onda das discotecas e se chamou Dancing Days. Naquela noite, o bordel voltou a viver a alegria dos velhos tempos. O bar vendeu todo o estoque de bebidas, centenas de moços com brilhantina nos cabelos imitavam John Travolta, dançando nos embalos do tradicional bordel que, para sobreviver, se deixava contaminar pela moda americana. Eny tolerava o barulho, mas não gostava das músicas estrangeiras que faziam sucesso naquela época.
Na manhã gelada de nove de julho de 1980, Alice Loira entrou no quarto de Eny chorando. Vinicius de Moraes morreu, dona Eny, ouvi agora no rádio. Acende uma vela para ele, meu bem, que eu vou acender também e rezar por ele, respondeu a amiga do poeta.
Isso aqui é um palácio. Não sabia que em Bauru existiam áreas palacianas. O que meus inimigos vão dizer se me virem aqui, que me embriaguei? Que me apaixonei? Essas foram, segundo Nicola Avalone Júnior, as primeiras palavras que Jânio Quadros pronunciou quando entrou no bordel de Eny, em agosto de 1982. O ex-presidente do Brasil estava em campanha para o governo de São Paulo e tinha Nicolinha como um aliado político. A cafetina já sabia que receberia a ilustre visita e preparou-se para o momento tão especial. Ordenou a todas as moças que não saíssem dos quartos até ela mandar. Poucas pessoas estavam na casa. O garçom serviu vinho português e os três conversaram menos de uma hora sentados na sala. Conto com a ajuda da senhora, dona Eny. Desde o tempo em que Nicolinha venceu Sebastião Aleixo na disputa pela prefeitura de Bauru, ouço falar na força que a senhora tem como cabo eleitoral. Obrigada, doutor Jânio. Se depender de mim, o senhor já está eleito. Ainda tenho uma vassourinha guardada numa das minhas gavetas, disse Eny se despedindo. Que pena que o senhor não tenha tempo hoje para conhecer e sentir o perfume do buquê de mulheres que Eny cultiva aqui dentro, Excelência. São flores da mais alta estirpe. Verdadeiras damas parisienses, afirmou Nicolinha.
Dois meses depois, a cafetina decidiu colocar o bordel à venda por 300 milhões de cruzeiros. Cada dia mais doente e endividada, ela sabia que seria impossível vencer a guerra contra os motéis. Procurada pela imprensa, Eny foi notícia nos principais jornais de São Paulo. Nicolinha e alguns empresários de Bauru tentaram convencê-la a ter mais paciência. Quem sabe daqui a alguns anos o governo libera o jogo e você transforma tudo isso num cassino, disse o político. Mas nada conseguiu fazê-la mudar de ideia. Com 65 anos, dizia aos repórteres que já estava na hora de se aposentar. Numa das entrevistas, revelou que era muito católica, mas, para ser madrinha de casamento, tinha de confessar, e eu não vou contar as minhas coisas ao padre, concluiu. Sobre a fama, ela respondeu: Não sei como fiquei assim famosa. Acho que foi pelo bom atendimento. O repórter perguntou para onde ela iria depois que vendesse a casa. Ainda não sei, só quero vendê-la, depois vou pensar.
O ano mais triste da vida dela tinha dias gigantes e horas de pedra. O coronel Alcyr telefonava cada vez menos, o que fez Eny ficar ainda mais convencida de que só deveria sentir saudades de Maurício. Pegou um pequeno porta-retratos que guardava na bolsa e ficou olhando a foto do viajante até adormecer. No dia seguinte, pediu para que levassem o café e o almoço no quarto e só saiu de lá para atender ao telefonema do primeiro interessado em comprar o bordel. Afirmam que o meu negócio só perde para o maior do mundo, em Hong Kong; não posso vendê-lo por menos que esse valor, disse Eny. O senhor estude uma nova proposta que seja mais justa e, aí sim, eu o convidarei para tomar um cafezinho comigo e conhecer com mais detalhes todos os cantinhos da minha casa. Não, nesse preço não estão incluídas as minhas meninas, não. A área tem 12 mil metros quadrados, são quarenta quartos, duas suítes, restaurante, bar, cozinha, muitos banheiros, uma grande sala, sauna, uma belíssima piscina e o meu lindo jardim de rosas vermelhas. Até logo. Não aguento mais atender a esses curiosos que não têm um gato para puxar pelo rabo e ligam se dizendo interessados em comprar a minha casa, reclamava Eny para Olinda, uma das empregadas.
Era uma negra forte, sempre muito bem-disposta, que se revezava nos serviços domésticos dentro do bordel e que a cafetina chamava carinhosamente de Negão. O telefone tocou novamente. Olinda atendeu e disse que era um jornalista. Eny conversou rapidamente. Não, meu rapaz, nunca nenhum homem fechou a minha casa para uso exclusivo. Quando muito, ocuparam por dois ou três dias uma suíte. Deixaram aqui fortunas. Mas está pra nascer homem que tenha cacife pra fechar a minha casa. Isso mesmo, dizia Olinda, escutando as respostas da patroa. Eny afastou o telefone da boca e disse baixinho: se eu falar a verdade, ele vai querer saber quem foi que fechou e aí vai ficar insistindo para eu contar; meus segredos são meus. Estou cansada, moço, a liberação dos costumes arrasou meu negócio. Hoje há muito mais liberdade. Quero vender minha casa e viver de renda. Não tenho filhos, sustento doze parentes, ajudei a criar dezenas de crianças. Quero voltar para São Paulo, minha terra natal.
Eny chamava os menores que ajudou a criar de sobrinhos e ficava feliz quando alguns deles, já adultos e estudados, vinham visitá-la. A cafetina começava a ficar com medo da solidão. As suas meninas estavam indo embora, mudando de vida, de cidade. Os funcionários vinham sendo demitidos aos poucos porque, enquanto não vendia o bordel, Eny precisava se desfazer de outros imóveis para conseguir pagar todos os direitos trabalhistas. Para aumentar a renda, começou a penhorar joias no Banco Bandeirantes. Hoje só veio um moço do Paraná, dona Eny, disse Alice Loira. Deitou-se com a Mulata, bebeu duas doses de uísque e não quer ir embora sem antes conhecer a senhora. Tá dizendo que veio aqui de tanto ouvir o pai dele falar da dona Eny. O rapaz tinha vinte anos e era herdeiro de uma pequena transportadora. Cadê as outras mulheres?, perguntou. Meu pai me disse que isso aqui tinha mulher por todo lado. Não tem movimento hoje por quê? É feriado aqui em Bauru? Não me lembro do seu pai, mas em respeito às vezes que ele visitou a minha casa, eu vou conversar um pouquinho com você. Sente aqui, meu rapaz. Vestindo um roupão cor-de-rosa, Mulata sentou-se no chão de pernas cruzadas e ficou ouvindo o que Eny começou a dizer ao cliente a que ela acabara de atender. Aquele tempo que o seu pai contou não existe mais. Só existe nos pensamentos dele, nos meus e de quem conheceu. Eu tinha mesmo muitas mulheres aqui, cheguei a ter setenta. Hoje tenho vinte. Não fique decepcionado. Não deixe a imagem que você fez da minha casa ser destruída por essa que você está vendo agora. Na imaginação do seu pai, continua tudo como era antes. Não fique mais aqui, menino. Volte para o Paraná e, quando quiser entrar na casa da dona Eny, peça para o seu velho falar de mim, do meu passado. Garanto que você vai se divertir muito mais. A minha casa está fechando, eu já estou velha, o tempo dos grandes bordéis, como o meu, terminou. Aliás, você deveria ter ido a um motel, existe um monte deles na cidade. Não, eu tinha que conhecer a senhora. Gostei muito de vir aqui, disse o visitante. Meu pai me disse que tinha uma piscina e um monte de cachorros nos fundos. Que vinham muitos homens ricos, carrões e que algumas mulheres pareciam estrelas de cinema. Mas que tudo era muito caro, que a senhora metia a faca nos clientes. A piscina está lá fora, depois você pode ver. Meus cachorrinhos já devem estar dormindo a essa hora e é pra cama que eu vou agora, menino. Obrigada pela visita e mande um abraço para o seu pai. Cuide bem do moço, Mulata.
O jovem empresário ficou na casa até o dia amanhecer, rodeado pelas poucas prostitutas que ainda trabalhavam lá. Com a crise, o nível das mulheres caiu um pouco. Havia na casa uma moça menos bonita que as outras que ganhou o apelido de “Patinho Feio”. Ela se insinuou para o rapaz, mas ele não se deitou mais com nenhuma delas; só se deliciou com as histórias que ouviu cada uma contar. Mulata revelou que dona Eny andava com aquela bengala pela casa para dar bengaladas nas pernas das putas que não estivessem fazendo o cliente beber. Dói que só, a bengalada que ela dá, dizia. Ela passa perto com aquela cara de santa que só ela sabe fazer e lança o pau na gente com toda a força. Eu mesma já tomei umas dez bengaladas. E ainda diz que não é pra nós gritarmos quando ela bate para não assustar os fregueses. Agora que o movimento tá fraco, a bengala dela tá calma, mas antes, era uma bengalada atrás da outra. Ela não batia tão forte assim não, disse Alice Loira. Era uma batidinha de leve, só para lembrar que o cliente precisava gastar mais. Não doía porque não era na sua perna; na minha doía e muito. Uma vez eu até nem aguentei a dor e dei um grito, você não lembra? Todo mundo olhou pra mim e dona Eny saiu rapidinho de perto, com medo que eu falasse que ela batia na perna da gente para faturar mais. O meu freguês perguntou por que eu tinha gritado e eu tive que inventar que tinha sentido uma pontada no coração. E vocês acreditam que ele ficou querendo me levar ao médico a noite inteira, com medo que eu morresse de infarto? Era um velho chato, daqueles que ficam pelados, mas antes de comer a gente pedem licença para dobrar a roupa e pôr em cima da cadeira. Além de pagar quase duas garrafas de uísque, o rapaz ainda deixou uma recheada gorjeta nas mãos de Mulata.
No dia seguinte, Neusa veio aplicar insulina um pouco antes da hora. Eny acordou mais cedo e pediu para Luís Antônio trazer a enfermeira até o bordel. Desde que decidiu se desfazer do imóvel, queria ficar lá o máximo de tempo que pudesse. Vou me mudar com a senhora, disse Preta. Tenho medo de ficar aqui nesta casa sozinha. Dona Eny gosta de ficar longe de mim para comer bombom à vontade, pensa que eu não sei! Depois a senhora passa mal e a Isabela vai dizer que a culpa é minha. Eny acabou permitindo que Preta ficasse uns dias com ela na casa do trevo, como também chamavam a pensão. Alice Loira pediu demissão e mudou-se da cidade. Nanci, a nissei que já tinha trabalhado no bordel, retornou e assumiu a gerência até o fim. Uma tarde Eny foi surpreendida pela visita de um casal. O marido pediu permissão para mostrar a casa para a esposa, que sempre teve muita curiosidade em conhecer o interior do bordel. Eny não só autorizou, como também acompanhou os dois durante todo o tempo que ficaram lá dentro. Vou contar um segredo para a senhora, disse a mulher. Eu e minhas amigas, quando éramos mocinhas, brincávamos de Casa da Eny. Quando meus pais saíam, nós transformávamos a sala no nosso cabaré. Fumávamos escondidas, ficávamos desfilando em trajes obscenos pra lá e pra cá, fazendo poses sedutoras e bebendo uísque. Mas só nós, mulheres; os meninos nem ficavam sabendo. Tínhamos catorze, quinze anos, era muito divertido. Era sempre uma briga para decidir quem ia ser a senhora. Depois a gente ainda inventava os clientes invisíveis, os coronéis, os políticos que nossas mães diziam que vinham aqui. Eu tinha uma curiosidade imensa para conhecer a sua casa, dona Eny. Assim que ouvi dizer que ela ia ser vendida, quis vir logo, com medo que o novo dono a destruísse.
As grandes revistas nacionais também agendaram entrevistas com a cafetina. Antigamente, os homens procuravam os bordéis só para fazer amor, já que isso eles não podiam fazer com as namoradas, contava para a jornalista. Hoje, embora muita gente possa não acreditar, eles não vêm aqui só atrás de sexo; muitas vezes querem apenas conversar, serem ouvidos. Ontem mesmo, um jovem que eu conheço há tempos entrou na minha pensão só para me mostrar a aliança que estava usando e para contar que tinha marcado a data do casamento. Não gosto que me chamem de cafetina, disse, brava com a repórter. Cafetina é quem arruma homem para outra mulher e cobra comissão sobre o michê. Nunca fiz isso. Meu negócio sempre foi prestação de serviços na minha propriedade, aluguel de apartamentos e a renda dos bares e restaurantes. No que eu gostaria que a minha casa se transformasse? Talvez um hotel elegante, um clube, um centro médico, uma casa de repouso. Casa de mulheres não dá mais. Se desse, eu continuava no ramo. E dele, ninguém conhece mais do que eu. Eu, na verdade, preferia as coisas como eram no meu tempo; os homens eram mais homens, mais másculos. A pílula anticoncepcional e a crise da gasolina acabaram tirando os homens daqui. Hoje quase tenho mais prejuízo que lucro. É por isso que vou fechar.
Quando os jornalistas não conseguiam falar com Eny, entrevistavam as inquilinas e os funcionários. Um repórter conversou com Blanche no portão. No meu tempo, contou a velha zeladora do canil, as mulheres só ficavam naquele negócio de papai e mamãe. Eu, não. Topava qualquer parada e nunca dava conta das filas de homens que ficavam aguardando um michê comigo. Já ganhei muito dinheiro, mas gastei tudo. Sustentava gigolôs, emprestava e não recebia, comprava roupas bonitas. Se o tempo voltasse, eu ia ser puta de novo. Sou muito feliz por tudo que já fiz! Ih, até rimou! Agora cuido dos meus bichinhos e das minhas velhinhas que foram putas como eu e moram comigo num asilinho que a Eny construiu lá nos fundos. Blanche se empolgou com as perguntas do rapaz e o deixou entrar sem a ordem da patroa. As moças espremiam o sol até os últimos raios, expondo o corpo à luz, deitadas em volta da piscina.
Gisele, Pepa, Maria Lúcia, Nádia, Bia, Malu, Meire, Samantha, Vera Lúcia, Bethinha, Suma, Sandra Gaúcha, Silvinha, Grapette, Mulata, Nara, Elza Paraguaia passavam horas trocando ideias sobre o que fariam assim que a casa fosse vendida. Ir para o formigueiro poderia ser uma saída. Lá as pequenas casas de prostituição multiplicavam-se feito praga. Chegaram a ser mais de vinte. Casa Verão Vermelho, Casa das Pedras, Casa da Mara, Casa da Ney, Casa Mansão, Casa Estrela, Casa da Olga, da Elza, da Joana, da Celeste, da Dodô, da Tony, da Leda, da Aidê, Casa Tókio, Tânia’s Drinks e tantas outras. Segundo os registros da polícia civil, quase 150 prostitutas circulavam por lá. Silvana, que já tinha deixado o bordel, também era assunto na roda. Dois anos depois do nascimento da segunda filha, a moça mais bonita da pensão engravidou novamente de Galo e teve um menino. Galo não quis assumir nenhum deles, casou com outra e foi morar em Paris. A besta da Silvana ainda fica chorando pelos cantos, lamenta Gisele. Eu sempre avisei que esse Galo só queria se aproveitar. E nós, o que nós vamos fazer agora?
Na mesma conversa, Carlinhos, Cobrinha, Chiquinho, Zuleika e Olinda também davam palpites. No formigueiro, o movimento caiu muito, uma amiga minha que faz michê lá disse que o que ela ganha não dá nem pra comer e ela é uma das que cobram mais barato, comentou Mulata. A Antônia vendeu a Casa das Pedras há dois anos e não se arrepende. Está pensando em abrir um motel. Dona Eny contou pra mim, mas não é pra espalhar, pelo amor de Nossa Senhora, pediu Cobrinha. Vocês sabem que a Antônia tem um filho que se formou delegado, pois então, um chefão da polícia alertou que, se ela continuasse nessa vida, o filho não ia ter sucesso na carreira. É por isso que ela vive chorando pela casa, entre a cruz e a espada, coitada! Pelo filho, tenho certeza que Antônia fecha a casa, sim. Ela morre por causa daqueles meninos; foi buscar um por um no Nordeste, disse Zuleika. Agora que a dona Eny tá saindo da concorrência e que a Casa das Pedras poderia faturar um pouquinho mais, a azarada da Antônia já fez a besteira de deixar o ramo também. Uma foi derrotada pelos motéis e a outra pelo próprio filho, disse Cobrinha. Com um filho delegado, eu saía dessa vida correndo! Antônia é uma vencedora, eu sei o que essa mulher já passou, afirmou Zuleika.
Estou perdendo muito dinheiro com esses empregados, não imaginava que fossem me virar as costas assim, lamentava Eny para a sobrinha Isabela. Quando precisaram, eu acolhi todos com os braços abertos; agora que eu preciso deles, só querem saber de arrancar dinheiro de mim. Querem receber um absurdo de horas extras, seguro de vida, acúmulo de serviço, férias, décimo terceiro... É por isso que o meu dinheiro tá desaparecendo, Isabela. Com os garçons, firmei um acordo de cavalheiros. Não pagaria o fundo de garantia porque eles ganham dez por cento sobre cada conta, além do salário; mas, mesmo assim, eles estão mexendo os pauzinhos para me golpear pelas costas... A senhora faz uma tragédia, tia. Mas a minha vida é uma tragédia mesmo. Eu não estou enxergando quase nada, você tem que me ajudar a ler os documentos que esses traidores ficam trazendo para eu assinar, pediu Eny.
Sem condições financeiras para continuar viajando e pagando as consultas e os exames, a cafetina interrompeu temporariamente o tratamento de saúde que vinha fazendo em São Paulo. Mesmo doente, não deixava a vaidade de lado. Não gosto que dilua a rinsagem, Vanda. Já falei, faça como a Lourdinha fazia. Ponha a tinta pura, que aí meu cabelo fica na cor que eu gosto: roxinho. Desde o início dos anos 1960, Eny começou a tingir os cabelos de lilás. Por onde passava, atraía todos os olhares curiosos. Lá vai a mulher da cabeça roxa!, gritavam os meninos. Na época, ela ainda frequentava o instituto de beleza da dona Dirce Guimarães. Mesmo depois que deixou de trabalhar no salão, Lourdinha continuou cuidando da cabeça da cafetina. Onde anda essa Lourdinha?, perguntou Vanda. Estudou para ser professora, mudou de emprego, casou... Mas deixava os meus cabelos muitos bonitos. Ia à casa dela duas vezes por semana; fui eu que ajudei a coitadinha a estudar... Ela usava sempre aquela tintura “Color Charm” prata. Como eu pedia para não diluir, o tom do cabelo ficava lilás, e não prateado. É assim que eu quero que você faça, Vanda. Eny também quis fazer as sobrancelhas e recomendou à esteticista que tirasse até deixá-las bem fininhas e arqueadas como as da Marlene Dietrich. Naquela época, eu tinha mandado fazer um vestido de seda igual ao usado pela mamãe Dolores, personagem daquela novela O direito de nascer. Era preto e cheio de flores miudinhas e coloridas. Usei umas duas vezes só e depois dei para Lourdinha. Antes de terminar o atendimento, Vanda perguntou o que Eny ia fazer com os 300 milhões de cruzeiros que estava pedindo pelo bordel. Por que a senhorita quer saber? Não vou dizer, não. Eu não contando, já inventam. Se contar, então... Vou viver de renda, meu bem. Vou viver de renda. Eny pagou a conta e saiu do salão feliz porque estava com a cabeça roxa brilhando outra vez.
Enquanto esperava um comprador para o bordel, Eny foi surpreendida pela morte duas vezes num único ano. No dia 27 de junho de 1983, Zeca morreu vítima de infarto fulminante. Quatro meses depois, um derrame matou Nair. O irmão e a cunhada da cafetina foram enterrados em Bauru. Sua mãe não suportou ficar sem seu pai, comentou com Zezinho. O amor deles era muito grande, tia. Estava cada vez mais claro para Eny que tudo o que fazia parte do mundo dela estava se acabando. O negócio, as vidas, inclusive a dela. Meus olhos vão morrer primeiro, depois o meu coração, pensava, olhando o sobrinho dormir no sofá. Lembrou-se do amigo Paulo Medina, que nos últimos meses a apoiava financeiramente, ora conseguindo empréstimos bancários ora comprando móveis e peças da decoração do bordel que Eny precisou vender para pagar as contas. O seguro saúde Bradesco estava caro demais e ela não aceitava pensar na hipótese de ficar sem a proteção que o plano privado lhe garantia. Afinal, já tinha lhe proporcionado um luxuoso tratamento com direito à internação no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Agora, vou oferecer para o Paulinho esse baldinho de prata. Não sou mais obrigada a ter luxo para servir gelo a esses “pés-rapados” que vêm aqui. Nem uísque eles bebem! Que decadência, meu Deus!
Era comum, naquela época, as inquilinas que estudavam levarem as colegas mais curiosas da faculdade para conhecer a casa que estava acabando. Todo o mistério do bordel com a morte anunciada ficava ainda maior. Eu sou de Botucatu, disse a estudante de Serviço Social, deslumbrada com a imagem de Eny. A senhora permite que eu conheça tudo? Como esse lugar é lindo, dizia Mari, universitária amiga de outra prostituta. Deve ser muito bom morar cercada por esse jardim de rosas, que paraíso! Quando eu contar para meus amigos de Lençóis Paulista, eles não vão acreditar.
Blanche acompanhava a moça explicando o que era cada cômodo do bordel como uma guia de turismo. Faz tempo que a senhora está nessa vida?, perguntou a estudante. Se eu for contar para você, meu bem, quantos paus já entraram na minha xoxota... Olha, minha filha, daria pra fazer uma cerca de não sei quantos mil alqueires!
Gilberto Ribeiro, o corretor, telefonou para o bordel avisando que iria levar um novo comprador. É bom a senhora baixar o preço, dona Eny. Duzentos milhões, no máximo. Olha a crise, ninguém tem dinheiro, já faz um ano que o negócio está à venda e nada. Eny ouviu as palavras do especialista em mercado imobiliário e permitiu que derrubassem o valor para 200 milhões de cruzeiros. Os juros estão me comendo viva, preciso pagar minhas contas, meu Deus! Ajoelhada, pedia proteção a todos os santos que conhecia.
No dia seguinte, o empresário Dolírio Silva, ex-proprietário da empresa Reunidas Paulista de Transporte, foi conhecer o imóvel. Passeou por tudo. Esclareceu todas as dúvidas diretamente com a anfitriã, que via os traços do rosto do seu possível sucessor como se estivessem envolvidos numa nuvem de fumaça. Ela revelou que a luz da sua vida estava se apagando, mas o homem fora de foco ainda preferiu pensar um pouco mais antes de bater o martelo. A agonia da cafetina prolongou-se até o corretor confirmar a venda. Dolírio Silva paga 150 milhões de cruzeiros à vista, dona Eny. Nota sobre nota. É pegar ou largar. O negócio foi fechado, e Eny teve quinze dias de prazo para deixar o bordel vazio.
O delegado que tanto fez para interditar a empresa produtora de prazer morreu nesse mesmo ano. Um infarto tirou a vida do doutor Chicão. Nos últimos meses, ele havia surpreendido a todos. Por mais de uma vez, esteve no prostíbulo se divertindo e conversando com Eny e suas meninas. Quem diria, o homem que tanto falou mal da minha casa agora precisa dela para alegrar as suas noites de solidão, disse a cafetina para um amigo mais íntimo. Agora que Chicão e a pensão alegre de Eny poderiam viver em paz, os dois acabaram. Como posso entendê-lo? Acho que só quando penso nele como sendo uma daquelas pessoas que passam a vida inteira apagando a própria sombra e, quando percebem a infelicidade, se entregam de corpo e alma ao desfrute, como se fosse possível compensar o tempo perdido. Tola ilusão. Eny percebia que o pêndulo do relógio na parede não vai e volta, apenas vai. Repete o mesmo trajeto a vida inteira, apenas vai. Mas, mesmo tarde, ele soube compensar o erro – feliz dele, melhor tarde do que nunca. A velha dama de bordel acreditava que a juventude era uma cesta cheia de anos-novos e que, assim como as cestas de flores ou de uvas, também murchavam e duravam o seu tempo para que o doce amanhã pudesse chegar; e inevitavelmente chegava, vestido de cor púrpura, como os seus cabelos lilases.
Texto de Lucius de Melo publicado em "Eny e o Grande Bordel Brasileiro", Editora Planeta do Brasil, São Paulo, 2015, capitulo 20. Digitalizado, editado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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