Durante os seus últimos anos — até 1850 — o tráfico negreiro foi mantido por barcos estrangeiros, nele figurando em proporções diminutas a navegação brasileira.
Esta verdade, que dá ao nefando comércio a qualidade complexa de uma especulação internacional, desloca para outros portos — e outros povos — a responsabilidade da sua persistência a despeito da repressão britânica e da maldição liberal. Castro Alves em versos célebres acertou com a manobra: “existe um povo que a bandeira empresta — para cobrir tanta infâmia e covardia !...” Queria arrancá-la do mastro do veleiro abominável, “auriverde pendão da minha terra — que a brisa do Brasil beija e balança...” Emprestava-o a ganância ao contrabando: mas o próprio nome do navio sinistro, brigue, ou brick — em vez da fragata, da corveta, da escuna portuguêsa — indica que viera de Baltimore ou do Mediterrâneo, senão do Báltico, esse ágil carregador de multidões escravas. Isto em 1846 disse o ministro norteamericano Wise (no Rio de Janeiro): “A proteção da nossa bandeira é constantemente vendida; envergonho-me de dizer, é aqui constantemente comprada e vendida para fazer o comércio de escravos.
Navio após navio dos portos do norte dos Estados Unidos são aqui habilitados ou vendidos para o efeito dêsse tráfico. . . ” Observe-se que o último negreiro foi o palhabote norte-americano Mary E. Smith — pelo brigue-escuna Olinda — em Serinhaém. Não eram somente os armadores yankees, que negociavam no mercado humano as embarcações ligeiras: os anúncios de imprensa da década de 1840-1850, quando, todos os anos, entravam no Império de 40 a 50 mil cativos, indicam a viagem para a costa da África de brigues suecos, franceses, sardos, evidentemente, sem exceção, comprometidos naquele triste mercado, que tinha personagens invulneráveis em ambas as margens do Atlântico.
Legislou-se em 1847 para dificultar a transferência imediata da propriedade naval nos portos brasileiros, que burlava o policiamento do oceano, exercido com rigor feroz pela Marinha inglêsa a partir do “Bill Aberdeen”, de dois anos antes. Quase foram de novo à guerra a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, a propósito do “direito de visita”, de que os inglêses não abriam mão, na caçada ao traficante. Evitou-se o conflito assumindo a América do Norte o compromisso de punir, ela própria, a pirataria, com as suas frotas vigilantes. O Govêrno Imperial não teve outro jeito — em 1850 — para prevenir â luta armada com a potência que dominava os mares. O incidente do Carmorant, em Paranaguá, mostrou-lhe que sem essa atitude radical, que era extinguir de pronto a torpeza, apreendendo os navios, metendo na cadeia as tripulações e libertando os africanos apinhoados nos porões infectos, a Marinha britânica estenderia as buscas e as incursões pelas águas territoriais, em desrespeito fleugmático à soberania!
O caso é suficientemente conhecido; mas tem um pormenor serviço do tráfico; e quando os levava a reboque, a população se revoltou. Alguns rapazes mais animosos correram ao forte, que ergue sôbre a barra o espesso baluarte onde dorme a batería de canhões de bronze, puseram fogo às peças. O protesto foi veemente.
Mas, em 1863, quando no Conselho de Estado se discutiu a “questão de Christie”, lembrou Paulino de Sousa (Visconde do Uruguai):
“ .. .Nossas fortalezas não devem consentir que se acometam navios à sua vista e recorda que se negara redondamente a Hudson a ordem por êle pedida para que as fortalezas brasileiras não atirassem nos cruzeiros britânicos que apressassem à vista delas, e respondera ao mesmo Hudson, o qual se queixara que a fortaleza de Paranaguá matara um marinheiro e ferira outros, de um cruzeiro britânico que fizera presas sob as baterias da fortaleza, que só haveria de repreender seu comandante por não cumprir melhor seus deveres”.
As palavras que aqui ficam, reproduziu-as D. Pedro II na página de diário em que anotou o debate, travado sob a sua presidência em dezembro de 1863. Agigantou-se então o Ministro da Justiça do gabinete do Marquês de Monte Alegre, Eusébio de Queirós: com férrea decisão golpeou o tráfico, proibido enfim pela lei de 14 de novembro de 1850. Golpeou-o a despeito da prosápia dos mercadores, dos interesses municipais, dos costumes da praça e da sórdida política protetora do mais vasto, oculto e rendoso comércio que havia então
no mundo. Não há exagero. Espalhavam-se pelas feitorias africanas os postos de venda e os de importação se multiplicavam pelo litoral do Brasil — e mar do Caribe, enredando nas transações firmas respeitáveis, titulares de brasões recentes e mandões regionais, alguns intangíveis no seu prestígio, de pilares do sistema reinante. Não recuou o govêrno diante dêles, e expulsou a vários, que brasileiros não eram, com admirável coragem. Na realidade, acabando em 1850 com a navegação negreira, dava prazo para a abolição da escravatura, que, sem o fornecimento da África, não poderia durar muito.
As estrofes punitivas de Castro Alves captavam ecos de Heine e Whittier: em 1868 (quando as declamou em São Paulo) já êsse seu “navio negreiro” se esfumava no horizonte da lenda como as galeras-fantasmas do folk-lore marítimo, que continuam a bordejar na poesia das tabernas ou na superstição dos pescadores: menos do que uma reminiscência, era um assunto. Há dezoito anos que a quilha execrável não rompia as ondas. O pulso firme de Eusébio destroçara a conjura internacional dos negociantes do ébano: restava a destruir e vingar a instituição lúgubre do cativeiro.
Foi assim que o poeta, cantando em “vozes d’África” as queixas do mundo negro, pôs novamente a navegar o brigue com o auriverde pendão “que impudente na gávea tripudia”.
Com o gesto inspirado e o olhar chamejante — bradou: Andrada! Arranca êsse pendão dos ares! Colombo! Fecha a porta dos teus mares!
Todos, no teatro, se voltaram para o Andrada presente. Era José Bonifácio, o Moço, que voltara a São Paulo para chefiar a oposição liberal, recebido rumorosamente pelos estudantes da Faculdade de Direito, entre os quais aquêle terceiranista de cabelos esvoaçantes e “musa libérrima, audaz”! O navio negreiro já não transportava a escravidão.
Texto de Pedro Calmon publicado na revista "O Cruzeiro" de 17 de setembro de 1960. Digitalizado, adaptado e ilustrado por Leopoldo Costa.
No comments:
Post a Comment
Thanks for your comments...