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PRIMEIROS TEMPOS DE VIDA
Como já abordamos anteriormente as questões da gravidez e do aborto, começaremos pelo pós-parto e os cuidados que se tinham com os recém-nascidos. Eram sobretudo as elites urbanas e das vilas que possuíam melhores meios para zelar pelos filhos pequenos, tendo nas serviçais domésticas e nas aias preciosas coadjuvantes nos cuidados a ter com as crianças, como sejam os relativos aos banhos, enfaixamentos, alimentação e toda a espécie de vigilância e acompanhamento. Este não seria o caso da maioria das mães camponesas e rurais, ou até das citadinas mais desfavorecidas, para quem tratar das crianças seria difícil de harmonizar com as muitas ocupações familiares e sociais que desempenhavam, no entanto tal não significava o desprezo ou o desleixo nos cuidados infantis, antes uma ainda maior preocupação e aflição tendo em conta que não poderiam oferecer as mesmas condições materiais e a atenção devida. Temendo-se que, durante os primeiros tempos de vida, a fragilidade da criança não resistisse às alterações que o seu organismo inevitavelmente iria sofrer, os tratados médicos recomendavam que ela deveria ser protegida e fortificada.
Os partos medievais podiam ser bastante complicados e implicar graves riscos de saúde para a mãe e para os filhos, numa época em que cesarianas só eram feitas em último recurso e caso a vida do bebê estivesse em risco, e em que a perda de sangue ou infeções causavam uma elevada mortalidade para a mãe. Para ajudar no parto eram comuns algumas posições algo diferentes do que se vêm hoje em dia: sentadas, debruçadas ou de cócoras.
Os livros hispano-árabes aconselhavam, logo à partida, o resguardo do frio, explicando como o recém-nascido deveria ser suavemente recebido nas mãos da parteira e imediatamente colocado sobre um pano seco e levemente aquecido. Prescrevia-se, depois, a prática de movimentos destinados a testar na criança o movimento das articulações e a ossatura das clavículas, dobrando e estendendo os membros, juntar os braços aos joelhos e os tornozelos. Pressionar a bexiga, verificar os reflexos, limpar as narinas e a boca com um pouco de mel para desencadear o apetite e consequente reflexo da mamada, devendo aproveitar-se o primeiro choro para observar o palato. Seguia-se uma massagem no corpo, mais vigorosa nos rapazes, sendo, então, o bebê lavado. Após o banho, que deveria poupar o nariz e a boca, referia-se a necessidade de colocar um curativo sobre a ferida do umbigo, proceder ao corte das unhas e aplicar gotas nos olhos, sendo tudo isto executado de uma forma muito suave e com grande cuidado. A criança estava então preparada para que os seus membros fossem envolvidos em panos de tecido leve, normalmente uma faixa de linho. Esta medida era considerada determinante para precaver o recém-nascido de uma sempre temida deformação involuntária do corpo.
Contrariamente ao defendido antes por alguns acadêmicos, como Philippe Ariés, que consideravam o enfaixamento infantil como uma confirmação da suposta indiferença afetiva dos pais medievais pelos seus filhos, tal leitura revela-se hoje demasiado preconceituosa e apriorística. O enfaixamento visava acima de tudo proporcionar o conforto e a segurança que impediria as crianças de poderem vir a ser feridas ou mordidas pelos animais, e pretendia-se ajudá-los a abandonar rapidamente a posição fetal, a fim de evitar o temido risco de poderem vir a rastejar ou a movimentar-se como animais.
O enfaixamento neo natal foi durante muito tempo visto como uma violência para com os recém-nascidos, mas estudos mais recentes indicam que é benéfico para o seu conforto. Em algumas sociedades o enfaixamento é ainda hoje hábito corrente.
Outro tópico importante referido pelos tratados de puericultura medievais era a higiene, entre os quais diversos conselhos sobre os banhos a dar aos bebés, primeiro com água quente, depois tépida, e por fim fria, para fazer subir progressivamente o calor dos corpos das crianças e assim os acostumar ao contato com temperaturas inferiores. Também se aconselhava apenas a retirar a criança do banho quando o seu corpo estivesse vermelho e quente, para depois, ao colo da parteira, ser seca com um pano muito macio, sem esquecer os ouvidos e o nariz. Inspirados na medicina clássica de Hipócrates e Galeno, todos estes cuidados e preceitos foram amplamente acolhidos pelos físicos (médicos) cristãos da Idade Média, pondo assim em causa o estereótipo da falta de higiene infantil.
Uma palavra também para a nutrição, outro tópico que ganhou relevo crescente na Baixa Idade Média, não só pela importância dos aposentos onde as mães deveriam amamentar os filhos, protegendo-os dos elementos exteriores agressivos (clima, temperatura, luz) bem como qual a altura em que deveria ocorrer o desmame: de uma forma geral, a criança medieval podia ser amamentada até aos 2, 3 ou mesmo 4 anos de idade. À partida o desmame tardio trazia vantagens ao desenvolvimento infantil, visto o leite materno ou das amas proteger melhor o bebé contra as doenças do que qualquer outra forma de alimentação, sendo que em meio rural a amamentação era essencialmente materna, enquanto as famílias fidalgas ou citadinas se socorriam das amas de leite, costume que tendeu a ser contestado por pedagogos dos finais da Idade Média em favor do aleitamento materno.
O JOGAR E O BRINCAR
A saída da primeira infância representava uma oposição sistemática às normas que até aí a haviam orientado. Hoje conhecida como idade da "afirmação", essa fase do crescimento infantil traduzia-se no desejo de transgredir interditos e na procura de uma individualidade autonomizada. Era esse o tempo em que as crianças começavam a evidenciar as suas opções espirituais e em que a maior parte delas se associava em grupos para se entregar a brincadeiras cada vez mais longe de casa, quando campos e ruas se transformavam no prolongamento das suas moradas, definindo novos espaços de lazer, aventura e descoberta, mas também de perigo como evocavam os livros de milagres quando relatavam as graças concedidas às crianças vítimas de acidentes em brincadeiras de rua.
Por outro lado, essas fontes fornecem preciosas informações sobre as brincadeiras dos mais pequenos, desde os passatempos solitários como "um menino de muito pouca idade que brincava junto a um muro", ou outro, que ainda no berço, brincava com "umas pedrinhas". Por outro, registam a presença de bandos infantis que nas aldeias, vilas e cidades se entregavam a brincadeiras "num canal de um rio çarrado" ou que "jogavam ao salto" num balneário de água quente, também podendo, nas povoações litorais, ir "folgar com outros moços à ribeira do mar".
O crescer implica também brinquedos, só que para isso a informação veiculada pelas fontes é escassa. Sabemos que em cidades portuárias ou ribeirinhas como Lisboa, Barcelona, Marselha, Génova, Antuérpia e Londres, os jogos envolviam objetos miniatura, como os barcos de cortiça que numa lei municipal de 1432 em Lisboa proibia aos moços fazer navegar nas fontes públicas da cidade, o mesmo acontecendo, sob pena de uma multa de 50 Reais, em relação às pedras que eles para lá atiravam nas suas brincadeiras. Entre os rapazes as atividades lúdicas incluíam muitas vezes práticas mais desportivas ou até agressivas. As cartas de perdão régias Trecentistas e Quatrocentistas mencionam algumas crianças como vítimas dos crimes sobre os quais recaía a graça do soberano, tais como:
"um mancebo em que se punha a cadeia (era preso com cadeias de ferro) e lhe arremessava cada um por sua vez um espeto de ferro na cabeça";
ou outros que se entretinham a atirar pedras aos animais ou simplesmente "andando-se empurrando uns aos outros e fazendo outras travessuras que fazem meninos". As iluminuras das Cantigas de Santa Maria mostram-nos algumas destas explosões de energia e agressividade infantis e juvenis, como os casos de bandos de jovens urbanos que ajudam num ajuntamento para expulsar da cidade um suposto louco ou como apedrejavam na primeira fila um homem, já fora das muralhas do povoado.
No campo e na cidade, as crianças das famílias menos abastadas cresciam ao ar livre a saltar, a correr, a escorregar, a imitar os adultos em jogos e brincadeiras utilizando os recursos que a Natureza lhes oferecia: a água, a terra, as pedras ou simples paus como objetos para que transferiam situações e personagens reais ou imaginárias. Entre as atividades lúdicas que praticavam figuravam os vários desportos de adestramento físico para os adolescentes, praticados em terrenos baldios fora das muralhas urbanas. O jogo da Péla era um dos mais populares, especialmente aconselhado pelo rei português D.João I para o treino físico dos jovens cavaleiros, porque lhes exercitava os membros, se bem que o filho, o monarca D.Duarte, o viesse a considerar pouco dignificante para a educação dos jovens fidalgos já que lhes ensinaria "manhas de pouco proveito".
Já os brinquedos eram outros objetos que não faltavam nas atividades infantis, tal como o provam diversos achados arqueológicos em Loulé, e sobretudo, em Silves. Fabricados em cerâmica durante o período do Al-Andalus, contam-se, entre outros, cavalos, peixes ou girafas em miniatura. A maior parte dos brinquedos encontrados até agora destinavam-se a meninas, parecendo indiciar que se tratava de produções especificamente destinadas às mais pequenas, consistindo em miniaturas de louça doméstica, incluindo bules, jarras, panelas e lamparinas, tais como bonecas com barrigas cheias, aludindo à maternidade. Para as meninas, tais brinquedos desenvolviam brincadeiras relativas à aprendizagem das suas futuras vidas de mulheres casadas e mães.
Os brinquedos da época eram fabricados majoritariamente em madeira ou em cerâmica, para segurança das crianças que sempre tentam enfiá-los na boca ou se podiam ferir com eles se estes fossem de metal.
EDUCAÇÃO
Para a sociedade medieval, a educação devia começar muito cedo, para que fosse marcada por tudo o que visse ou ouvisse na mais tenra idade. A memória das crianças era então comparada ao vidro ou à cera mole onde tudo se imprimia de maneira indelével, ou a um frasco onde para sempre permanecia o odor do que lá fora colocado primeiro. Segundo o pedagogo Gil de Roma, a educação das crianças destinava-se a corrigir uma natural tendência para se portarem mal. A fim de a contrariar, os pais não só deviam ensinar aos filhos a doutrina cristã, como também evitar o contato com as coisas feias que logo guardariam na memória, como estátuas de mulheres ou homens nus, sob pena de poderem vir a desenvolver apego aos prazeres e às más tentações.
Na opinião do canonista Álvaro Pais, bispo de Silves no século XIV, os progenitores deveriam ter o máximo cuidado com a sua privacidade pois que, dormindo frequentemente no mesmo quarto, e até na mesma cama, as crianças eram testemunhas da vida íntima do casal. Conforme sintetizou Raimundo Lúlio, era necessário salvaguardar as crianças das tentações que a vista gerava no corpo para atingir a alma, cabendo aos pais fornecer-lhes imagens da infância agradáveis, evitando a vista de belas e ricas roupas que lhes podiam aumentar o orgulho ou a inveja, como também os doces que geravam a gulodice. Esta deveria também ser educada para aprender a ser moderada e dotada de hábitos virtuosos, como a prática de exercício físico, prevenindo assim a gordura e a preguiça.
As bonecas tinham uma dupla função lúdica e pedagógica ensinando às meninas as tarefas que socialmente lhes estava destinada: a maternidade e os afazeres domésticos.
Cantigas de Santa Maria (cantiga nº4): “Como um judeuzinho aprendia a ler com os cristãos”: um menino judeu, filho de um vidreiro de Bourges, em França, frequentava a escola junto com os meninos cristãos.
Esta fonte documental e iconográfica mostra-nos as aulas dadas nas igrejas e como os filhos de mesteirais também as podiam frequentar, mesmo que, neste caso, o ofício tivesse algum prestígio: o trabalho em vidro requeria maior destreza e competências técnicas do que outras…
CASTIGOS CORPORAIS? SIM, MAS SEM EXAGEROS
Relativamente à aplicação destes princípios, os pedagogos medievais não afastaram o uso de castigos corporais, mas nem sempre de forma taxativa, antes prevalecendo o aconselhamento do seu uso excepcional e moderado de forma que a punição física fosse compreendida pelas crianças a quem era aplicada, e apenas quando se esgotavam as vias de repreensão por apelo à razão, submissão a ordens orais ou obediência a atos corretores. Teria sido esse o caminho utilizado pelo prior Teotonio no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, em que só depois de admoestar os seus conegos em privado, os corrigia com severidade, de forma a incutir nos mais novos o temor que depois os levava a emendarem-se e a sempre seguirem uma reta conduta.
Tal pedagogia também se encontra expressa numa das histórias do Fabulário Português do século XV, contando a situação de um filho de um burguês que "sempre fazia contrário do que seu pai lhe ensinava", pelo que:
"o padre nom ho podia castigar, e huu dia tomou huu paao ssem porquê, e firiu huu sseu servo na pressença de sseu filho. Este, veendo tam ssem porquê espaancar este servo tam cruellmente, estava com gram medo. Depoys preguntarom ao burguês porque ferio o servo ssem seu mereçer; disse o burguês, (que era homem amtijguo e discreto) que o boi pequeno aprende de arar do grande, e quem quer castigar o leom ffere o cam: - e portanto eu nom quero ferir meu filho, porque per feridas nom ho posso castigar; mas ffery o meu servo, para que elle (o filho) aja medo e tome em exemplo".
A NOÇÃO DE INFÂNCIA
Com efeito, a consciência da existência de várias fases, idades ou estádios, que se sucedem ao longo da vida, encontra-se bem presente no discurso letrado ocidental desde a Antiguidade Clássica. Tal como então, também a Idade Média considerou a "infantia" (do nascimento até aos 6 anos) como a primeira das idades de um conjunto a que sucedia a "pueritia" (dos 6 aos 14 anos), a "adolescentia" (dos 14 aos 20 anos), a "juventus" (dos 20 aos 40 anos), a "senectus" (dos 40 aos 60 anos) e a "senium" (depois dos 60 anos). Tendo esta divisão sido a base da obra 'Etimologias' de Isidoro de Sevilha, sempre foi esta formulação a mais seguida no Medievo. No século XIII esta divisão continuava a vigorar na nova e muito consultada enciclopédia de Bartolomeu, o Inglês, e dois séculos mais tarde ela também se encontra no repartimento das idades enunciada pelo 'Leal Conselheiro', de D.Duarte: "ifancia ataa VII anos, puericia ataa XIV, ataa XXI adolacencia, mancebia ataa cincoenta, velhice ataa LXX, senium ataa LXXX. E dali ataa fim da vida, decrepidus". (Curiosa referência da meia-idade se estender até aos 50 anos, uma noção tão em voga nos dias de hoje, mas isso são outros assuntos).
Para os letrados medievais a infância, tal como a velhice, era uma idade imperfeita, em contraste com a fase que correspondia aos 30 anos, a idade em que Cristo começou a fazer milagres. De resto, tanto os textos médicos como os pedagogos da época insistiam em atribuir à "infantia" várias debilidades e carências que acentuavam a ideia de uma imperfeição, dado registarem a etimologia de 'in-fans', ou seja, "quem não sabe ainda falar", porque, sem "ter ainda desenvolvido os dentes", lhe faltava "a faculdade da linguagem" ('Etimologias', Isidoro de Sevilha).
Caracterizava-se também por uma genérica falta de maturidade, expressa na incapacidade de elaborar um discurso coerente antes dos cinco anos de idade, mostrando-se os pedagogos, portanto, bastante cépticos sobre o início de aprendizagem antes dessa idade. De fato, mesmo para alguns teólogos, a criança não deveria ser responsabilizada por atos praticados antes dos 5 anos, só devendo ser confessada e admitida à comunhão depois dos seus sentidos corporais se encontrarem devidamente espiritualizados pelo conhecimento do significado simbólico dos elementos ligados à Eucaristia, ou seja, a carne e o sangue de Cristo que se consubstanciavam no pão, no vinho e na água manipulados durante a missa.
A CRIANÇA NA LEI
Entretanto, os canonistas e legistas medievais multiplicavam as referências feitas às crianças na legislação produzida, passando estas a definir um grupo etário crescentemente abrangido por normas e procedimentos jurídicos diferentes dos aplicados aos jovens que, após a entrada na "adolescentia", respectivamente aos 14 e 12 anos de idade, passavam a estar quase sempre enquadrados pelas leis reservadas aos adultos.
Estas acabavam por refletir a progressiva construção de uma concepção de criança valorizada e diferenciada mesmo que, atendendo à reduzida esperança de vida da época e às ideias mentais herdadas da Antiguidade, se confinasse aos anos correspondentes à "infantia" e à "pueritia", não coincidindo assim com a tendência moderna e contemporânea de nela também vir a incluir uma parte da adolescência, seja com a actual consideração de uma meta etária comum a moços e moças para atingir a idade adulta.
A preocupação evidenciada pela legislação canonica em considerar a especificidade jurídica das crianças nem sempre teve como objectivo a sua protecção. De facto, uma parte significativa das normas produzidas nesse contexto destinou-se a proteger os adultos das consequências de uma considerada falta de responsabilidade social e religiosa por parte das crianças, a qual seria tanto mais grave quanto mais jovem elas fossem. A salvaguarda do patrimonio eclesiástico relativamente a atos ou decisões tomadas por crianças, consideradas muito influenciáveis e sem suficiente discernimento jurídico, também foi objecto das decisões canónicas que impuseram a entrada na adolescência como condição necessária ao exercício da capacidade de depor ou citar em Justiça, caminho que os legistas civis também acabaram por adoptar: estabelecendo os 14 ou 12 anos, conforme se se tratasse de um rapaz ou de uma rapariga, como idades em que os jovens podiam ser ouvidos em causas cíveis, enquanto para as causas criminais se passou a exigir a idade da passagem da adolescência para a idade adulta ("juventus") como limite mínimo para testemunharem em tribunal. Reservava-se, contudo, a excepção no caso de não haver qualquer outra possibilidade de prova, de poderem ser ouvidos ainda durante a adolescência, não sendo, porém, o seu testemunho prestado sob juramento e servindo apenas como indício a ter em conta para a formulação da sentença a dar ao crime em julgamento, conforme, aliás, refere no século XIV, o bispo de Silves, Frei Álvaro Pais, no seu 'Estado e Pranto da Igreja'.
O INFANTICÍDIO
Por um lado, no que diz respeito à Inglaterra, tanto Barbara Hanawalt como Henrietta Leyser, negam que este crime fosse uma realidade socialmente generalizada, explicada com a inexistência de um estigma de ilegitimidade entre as mães solteiras ou viúvas das vilas e cidades inglesas, pouco pressionadas a desfazer-se dos filhos. Para França e Itália os estudos fornecem um outro panorama, considerando o infanticídio como uma "triste realidade" cujas proporções foram crescendo ao longo do século XV. Esta situação é corroborada para as cidades da Toscânia, concluindo-se que, principalmente a partir do século XV, o infanticídio por abafamento, esmagamento ou agressão aumentara. No entanto tal disparidade é mais bem explicada pela proveniência das fontes francesas e italiana, com mais foco nas cidades, enquanto as relativas à Inglaterra e à Toscânia incidem mais sobre as vilas e o mundo rural.
Nestas últimas assistiu-se, a partir dos finais da Idade Média, a melhorias significativas no que diz respeito à qualidade de vida; nas cidades, pelo contrário, cresciam as situações relativas à presença de muitas mães solteiras e de piores condições de habitabilidade e substância material. De fato, as famílias da Europa de Trezentos e Quatrocentos recorriam ao infanticídio para enfrentar problemas como nascimentos indesejados, problemas económicos decorrentes de mais uma boca para alimentar em lares sem grandes recursos ou de consequências sociais, como a vontade de esconder os nem sempre bem aceites bastardos, crianças fruto de adultérios ou filhos de religiosos e religiosas. Assim, tal como nas modernas sociedades contemporâneas, eram as más condições materiais, as pressões sociais ou os interesses individuais que podiam conduzir ao infanticídio ou ao abandono, gerando as circunstâncias que por vezes se sobrepunham aos naturais sentimentos maternos e paternos.
Torna-se, no entanto, difícil distinguir entre infanticídio voluntário ou acidental, estando este último em grande parte associado a muitos dos casos referidos nas fontes medievais. A circunstância de as crianças partilharem frequentemente o único leito familiar existente nos lares medievais tornava-as bastante suscetíveis de sofrerem acidentes mortais, sufocadas pelo corpo dos pais adormecidos ou pelas próprias roupas das camas. Por outro lado, os livros de milagres insistem nas graças concedidas a crianças que tinham sido vítimas de acidentes domésticos, seja porque haviam sido deixadas sozinhas em casa, seja pelo esquecimento materno de as deixar nos berços durante a sua ausência.
Berços, aliás, muitas vezes improvisados, tendo em conta a menção a acidentes motivados por estes haverem sido confundidos com recipientes de água, fria ou quente, onde involuntariamente as mães acabavam por afogar ou queimar os filhos. Tratavam-se, sobretudo, de acidentes entre as famílias mais humildes e desfavorecidas, no seio das quais as crianças eram demasiado frágeis para poderem resistir às consequências da pobreza. Embora naturais, esses infanticídios acidentais não deixavam de ser lamentados e chorados, tal como Le Roy Ladurie pôde testemunhar no seu estudo sobre o quotidiano da aldeia francesa de Montaillou, ao citar o grande desgosto de uma mãe, que, ao acordar, ficou horrorizada por encontrar morto a seu lado um filho de tenra idade que dormia na sua cama.
FONTES MANUSCRITAS
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“Vida da Bem-aventurada Virgem Senhorinha”, e "Outra Vida de Santa Senhorinha", ed. e trad. Maria Helena da Rocha Pereira, in “Vida e Milagres de S. Rosendo”, Porto, 1970, pp. 113-157.
Texto de Isaac Farias da Silva na sua página "Repensando a Idade Média" publicado em "Quora". Digitalizado,adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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