Bianor, monge taoísta, é admirador de Jesus. Diz ele que há no Gênesis –primeiro livro da Bíblia – dois relatos da criação.
No primeiro relato (G. 1:2-27) se diz: “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou”. Esse primeiro relato remete-se aos mitos mesopotâmicos que precederam o judaico, mais tardio. El, o Altíssimo, cria o mundo para o casal dominá-lo sem condição, proibição ou interdição, daí a ordem “sede fecundos e multiplicai-vos” (G. 1:28).
O segundo relato, javeísta, semipoliteísta, é diferente. O conflito cósmico entre Tiamat, a deusa má que abre o dilúvio destruidor da humanidade, e Marduc, o deus bom que o encerra, salvando-a, perde em dramaticidade. No segundo relato, Deus não cria ninguém à sua imagem, mas um homem de barro, em quem sopra o hálito da vida (G. 2:7).
Eva inexistia. Será gestada de Adão, de uma de suas costelas. É-lhe inferior, deve-lhe a vida, destina-se a servi-lo. Em vez da ordem incondicional de reprodução no primeiro relato, no segundo, a Adão é dada uma proibição: não comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. O sumo da fruta abriria a consciência da maioridade. A proibição é gratuita, porque o homem era a imagem de Deus. Transgressão implica castigo.
Tiamat, no segundo relato, espera o surgimento de Eva para incitá-la à desobediência, fazendo desandar a obra da criação. A apropriação de um mito politeísta, em que o deus do bem peleja com a deusa do mal para proteger a humanidade, por um mito monoteísta, obrigou o redator do Gênesis a fundir duas personalidades míticas (Marduc e Tiamat) num único protagonista cósmico.
Ele será tanto criador quanto destruidor da humanidade, mudando de personalidade. Depois de criar o mundo, o deus do segundo relato se arrepende e decreta a sua destruição pelo dilúvio universal, as mesmas águas assassinas de Tiamat, a deusa serpentina do mito babilônico.
Ele, no entanto, deve preservar a humanidade. Salva Noé. Caso contrário, não teria humanos a lhe fazer oferendas. Ele exerce todos os papéis divinos: cria, destrói e salva. No fim do genocídio, se arrepende do que fez, ao sentir o suave cheiro apatrópaico das oferendas do temeroso Noé (G. 8:21). Mas Deus se arrepende?
O segundo relato, tem outras discrepâncias em relação ao primeiro. Neste, o palco é o mundo inteiro. Deus cria a humanidade e pronto.
No segundo relato, o mundo é substituído por um jardim, por onde anda o Senhor, como qualquer um, criado lá pelas bandas do Oriente (G. 2:4.5.7.8.9).
Esse deus judaico é a imagem e semelhança do homem (antropomorfismo).
Do Éden saía um rio que se dividia em quatro: Pisom, Giom, Eufrates e Tigre, “que corre pelo oriente da Assíria” (G. 2:14). Então, a terrível Assíria caldaica, que destruiu o Reino do Norte, Israel, à volta de 720 a.C., já existia desde a formação do Éden?
O nome do império dos assírios surge em 950 a.C. Antes foram os sumérios, os acádios (caldeus), os hititas e os egípcios, desde 4 mil anos a.C.
A descrição da Assíria no segundo relato sugere que a sua redação é posterior ao surgimento dela. Estranhamente, a proibição de comer o fruto é endereçada somente a Adão e não a Eva (G. 2:16.17).
A proibição traz o verbo no singular, até porque o deus do segundo relato apurava-se em achar para Adão uma “auxiliadora” (G. 2:18). Na sequência, ela é responsabilizada, junto com Tiamat, a cobra falante, pela ruptura da criação.
No primeiro relato, Deus criou o mundo para o homem (G. 1:28.29.30.31). A apropriação pelo redator do segundo relato de um mito politeísta o obriga a recorrer a um bicho (Tiamat em forma animal) e a culpabilizar a mulher pelos pecados do mundo. O mal é tirado do Deus, daí a frase de Pascal: “O homem precisa ser culpado para Deus ser inocente”. No segundo relato, Deus temeu a vontade dos homens, suscitando providências. Ele diz: “Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal e, assim, para que não estenda a mão e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente”, coloca querubins no jardim do Éden e o refulgir de uma espada para proteger o caminho da árvore da vida eterna (G. 3:22.23.24).
Quem são esses “nós” a que se refere o Deus do segundo relato? Por que teme a nossa imortalidade?
Ele é completamente diferente do Senhor Jesus Cristo, que revogou expressamente a interdição de Javé com a ressurreição em corpo e alma, além de nos dar “vida eterna” na casa do Pai, onde há muitas moradas. Antes, revogara a lapidação das mulheres (atire a primeira pedra), o repúdio das esposas (nem sempre foi assim), o Shabat (o sábado foi feito para o homem e não o contrário), as proibições alimentares (não é o que o homem come, mas o que fala) e os sacrifícios no templo (onde dois estiveram reunidos em meu nome).
O próprio templo, tão caro aos filhos de Judá, era-lhe indiferente (este lugar, em três dias não ficará pedra sobre pedra). Jesus não é filho de Javé. Nunca chamou o Pai por esse nome, nunca!
Texto de Sacha Calmon - professor titular da UFRJ, autor de A história da mitologia judaico-cristã). Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa


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