Texto de Leopoldo Costa
A comida do dia a dia do camponês da Idade Média era o pão (de aveia, de centeio, de cevada e mais raramente de trigo), legumes e sopa. A sopa era preparada, cozinhando a carne (que era conservada salgada), em água fervente, junto com algum cereal pilado para ser transformado em farinha, com legumes.
Na época, o rendimento das lavouras de cereais era desanimador, o trigo rendia apenas cinco grãos por um. Antropólogos chegam a afirmar que o homem do Paleolítico tinha uma dieta alimentar melhor do que os desta época.
No século IX na França, a falta de comida era comum e a fome uma constante. A farinha de cereais para o fabrico de pão e para o preparo da sopa era escassa e para aumentar a quantidade misturavam a ela até terra peneirada e sangue seco de boi.
Também consumiam bolotas, raízes e cascas de arvores. A vontade (ou a necessidade) de consumir carne levou algumas comunidades a consumir carne humana, como relatou Raoul Glaber, (985-1050). Que mais tarde escreveu: ‘o ano milésimo depois da Paixão do Senhor, após a dita fome desastrosa, as chuvas das nuvens acalmaram-se obedecendo à bondade e à misericórdia divina. O céu começou a rir, a clarear e animou-se de ventos favoráveis. Pela sua serenidade e paz, mostrava a magnanimidade do Criador. Toda a superfície da terra se cobriu de uma amável verdura e de uma abundância de frutos que expulsou completamente a privação’.
A cozinha popular medieval em linhas gerais era rudimentar e sem nenhum refinamento. Era costume usar grande quantidade de temperos (especiarias) para esconder o cheiro e o sabor dos alimentos estragados, ou em vias de ficarem estragados.
Entretando a cozinha dos aristocratas era diferente e bem diversificada. Sabiam usar os sabores do óleo de amêndoas e da água de rosas e apreciavam o toque agridoce, o exotismo das especiarias. Era costume a sobreposição de sabores com emprego de queijo, mel, açúcar, cravo e canela. Como competentes comensais, nos banquetes se serviam de grande variedade de pratos.
Há registros de banquetes com até dez tipos de carnes preparadas, além de peixes e aves, tudo acompanhado com vinhos. Contam os historiadores que num banquete oferecido pelo rei Carlos I da Espanha (1500-1558) foi servido 72 iguarias diferentes.
O comportamento dos comensais deixava a desejar pelas regras adotadas atualmente. Os serviçais cortavam a carne com a faca, sobre ‘pratos’ de madeira chamado ‘trinchos’ e os convidados a comiam com as mãos, que lambuzadas eram lambidas por eles ou pelos cães que sempre estavam sob as mesas, pois os ossos e restos das comidas eram jogados para eles no chão.
Em alguns destes banquetes o número de comensais chegava a duas centenas e para servi-los, empregavam-se quase uma centena de serviçais. Vários músicos e mágicos proporcionavam o entretenimento.
Um dos pratos preferidos era o preparado com aves silvestres, assadas e enchidas com carne de aves menores e levadas a mesa com as próprias penas para efeito decorativo.
Num quadro de autor desconhecido, pintado em Bruges, Flandres, em 1585, que na época pertencia à Espanha, temos o registro da refeição de uma família abastada, todos vestidos de preto e com as mãos postas como se estivessem orando. São oito adultos e três crianças, todas sentadas em tamboretes. Na mesa aparece uma peça de carne assada de carneiro, pão fresco e uma jarra de vinho. Nenhum prato ou talher, apenas copos.
Havia em muitas aldeias da Europa medieval a figura do ‘comedor de pecados’. Geralmente era uma pessoa pobre, sem escrúpulos, que precisava de alguma desculpa para alimentar a si próprio e a sua família. Quando morria um nobre considerado pecador, sua família preparava um banquete para uma única pessoa, com muita variedade de iguarias, principalmente carnes de várias espécies. Colocavam o cadáver do nobre no centro da mesa e as iguarias em volta. O ‘comedor de pecados’ era levado até o recinto, onde podia refestelar-se, comendo o que pudesse e levando o que sobrasse para casa. Com isso, acreditavam que os pecados do falecido tinham sido transferidos para o pobre coitado que se serviu do banquete.
Durante a Idade Média, várias tribos desconhecidas pelos Romanos, se estabeleceram na Europa. Com os invasores visigodos veio o hábito de comer carne de porco.
A criação de porcos foi de grande importância até para a limpeza pública das cidades e vilas e isto conspurcou a imagem do porco junto a sociedade. Eram criados soltos nas ruas, se alimentando de qualquer tipo de dejeto e detrito que os moradores das casas lançavam nos espaços públicos. Naquele tempo as moradias não tinham instalações sanitárias e os penicos eram usados para as dejeções e depois simplesmente descarregados pelas janelas.
Quando os porcos estavam bem gordos eram abatidos e sua carne e toucinho consumidos pela população sem nenhum escrúpulo. Era a carne mais barata e a mais abundante.
Os porcos, assim como os bovinos e os ovinos, eram abatidos nos quintais das casas e na maioria das vezes nas ruas e praças, próximas ao açougue.
As carnes destes animais eram comercializadas também nos mercados de rua, junto com outros gêneros, sem nenhum cuidado especial para a sua correta conservação.
O porco fornecia os pernis que eram muito apreciados assados ou defumados e como matéria prima para o preparo do presunto cozido e cru.
Com o domínio muçulmano sobre a península Ibérica (711 a 1492) e o grande número de judeus existentes na Espanha e Portugal, o consumo da carne de porco (por proibições religiosas), foi sendo reduzido. Foi introduzido o consumo de carne de carneiro, que por isto chegou a ser conhecida como 'carne de pobre'.
Já havia uma forte pressão dos religiosos, apregoando as desvantagens do consumo de qualquer tipo de carne. Santo Isidoro de Sevilha (560-636) dizia que as carnes podiam despertar nas pessoas os vícios, entre eles o da luxúria. Recomendava o consumo preferencial de peixe, que foi o alimento que Cristo comeu depois, que ressuscitou e apareceu para os apóstolos.
O professor Claude Fiscler, diretor do Instituto Francês de Pesquisas Cientificas declarou numa entrevista publicada no jornal ‘Folha de S. Paulo’ em 20/09/1996: ‘a carne pode despertar apetite ou excitação, mas continua sendo carne. Também existe a ideia de que um dos sexos é predador. E o caçador, nesse caso, é sempre o macho. Aqui, também, a língua mostra o quão profundamente essa ideia está enraizada em nosso modo de pensar. As mulheres podem ser vistas como ‘gostosas’, como algo que dá vontade de ‘comer’. Mesmo nos casos em que o canibalismo foi praticado como forma de sobrevivência, como no caso da queda de um avião uruguaio nos Andes, em 1972, esse tipo de regra foi adotado espontaneamente. As pessoas evitavam comer os corpos de membros de suas famílias. E, o que é mais importante, nenhum cadáver feminino foi comido. Imagino que eles quisessem evitar somar uma culpa à outra, especialmente se as vítimas mulheres fossem ‘gostosas’. Isso teria introduzido um elemento sexual, impelindo o desejo sexual até o limite. Foi o caso de um japonês que amava sua namorada a tal ponto que a comeu (literalmente).’
Depois, da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), entre a França e a Inglaterra e vencida pela última, a autoridade dos reis ingleses foi restabelecida e com isto a agricultura e a criação de ovinos evoluiu muito, fortificando o poder econômico dos senhores feudais. Precisando de maior área de pastagens para as suas ovelhas, expulsaram para as aldeias os camponeses, que cultivavam as terras.
A exportação de lã era a principal fonte de renda dos senhores feudais e a disputa por melhores pastagens provocou a Guerra das Duas Rosas, que durou de 1455 a 1485, entre duas famílias muito ricas da Inglaterra, a família Lancaster (cujo brasão ostentava uma rosa vermelha) e a família York (cujo brasão ostentava uma rosa branca). Daí o nome da guerra. A guerra envolveu todo o país e suas consequências foram desastrosas, com a morte de muita gente, a destruição de plantações e a dizimação dos rebanhos. Estes fatores provocaram o enfraquecimento do Parlamento e a coroa foi facilmente usurpada em 1485 por Henrique VI (1457-1509) da casa de Tudor, que implantou o Absolutismo.
Na península Ibérica, nos lares mais abonados, a carne era o prato principal da refeição, principalmente a carne de carneiro, de consumo largamente disseminado. Quem podia pagar, dispunha da carne bovina e, melhor ainda, da carne de vitelo.
A carne de boi não é muito citada nos livros de culinária da Idade Média, pois era cara e quase sempre dura e de má qualidade, proveniente de animais velhos e musculosos, que viveram muito tempo arrastando arados, charruas e pesados equipamentos agrícolas, muitas vezes passando fome e sede. Eram abatidos bois com até 15 anos de idade e também animais suspeitos de alguma doença.
Escreveu Massimo Montanari ‘Os camponeses cozinham a carne, geralmente salgada, em água fervente. Assim, diminuem o sal e tornam-na menos dura. Sobretudo conservam e utilizam ao máximo seus sucos nutritivos, diluídos no caldo que, em seguida, serve de ingrediente básico para outros pratos. No campo, cozinha-se principalmente em um caldeirão pendurado numa corrente ou colocada diretamente nas brasas, no qual cozinham e tornam a cozinhar a carne, os cereais, as leguminosas, os legumes.(...)
As carnes só eram servidas cozidas e o caldo do cozimento era fervido para engrossar e guardado para uso posterior, servindo como tempero ou para dar sabor a outros pratos e sopas.
As camadas mais pobres da população tinham como base de sustento os peixes, como o bacalhau e a sardinha salgados, de fácil conservação e baratos, que eram os preferidos dos camponeses do interior da península.
No norte da Europa, Alemanha e países escandinavos, a carne também era um artigo de luxo e só era servida em ocasiões especiais. Tornou-se um item reservado apenas para os banquetes, que muitas vezes era oferecido para muitos convidados. A razão para convidar um grande número de comensais tinha como objetivo terminar com o estoque de carne, antes que ela estragasse completamente.
A carne salgada era reservada para ser consumida durante o inverno e na primavera, quando a temperatura fria e a neve destruiam as pastagens, e só eram mantidos os animais procriadores e leiteiros alimentados com grãos e feno. As estações do ano determinavam o manejo do gado, normalmente os abates eram efetuados no outono e até a época do Natal.
As carnes de aves eram consideradas comida de luxo e até acreditavam-se que tinham virtudes terapêuticas. Os médicos da Inglaterra receitavam a canja de galinha para os doentes debilitados e sempre para a dieta das mulheres no período subsequente ao parto (resguardo).
O leite era escasso devido à baixa produtividade dos animais: uma vaca rendia de 1 a 3 litros de leite por dia.
O poeta britânico William Langland (?1332-?1386), dissertando sobre as condições de vida da população pobre na Inglaterra, escreveu: ‘(...) pois, o que ganham fiando, gastam com aluguel, em leite ou aveia para o mingau que sacie os seus filhos que bradam por comida. E também são muitas vezes castigados pela fome, perseguidos pelos horrores do inverno frio, noites insones, em que se levantam para embalar o berço comprimido a um canto, em pé antes da aurora para cardar lã, lavar, polir, coser, enrolar o fio e descascar o junco para a lamparina. As dores dessas mulheres que moram em barracos são por demais lamentáveis para serem lidas ou descritas em versos. ’
As moradias eram rústicas e simples. O mobiliário resumia-se em alguns bancos e tamboretes de madeira e uma tábua apoiada em dois troncos de arvores que servia de mesa. Todos dormiam vestidos com as mesmas roupas que usaram durante o dia sobre sacos cheios de palhas e compartilhando todos o mesmo ambiente com galinhas, ovelhas e porcos. O cheiro era horrível.
Em 1570, foi publicado o livro ‘L'Opera dell’ Arte Del Cucinare’ do cozinheiro Bartolomeo Scappi, o mais importante do Renascimento. Ele foi cozinheiro particular de seis papas e exclusivo do papa Pio V (1504-1572). Nesta obra ele compilou quase tudo de importante que havia na cozinha da península itálica. Além de transcrever receitas, o livro ensinava dicas importantes sobre o preparo de carnes e de peixes. Ensinava, por exemplo, o uso de um peso para colocar sobre a carne a ser cozida para mantê-la debaixo da água, como empanar um pedaço de carne de novilho antes de fritar e como evitar que o faisão fosse queimado na superfície quando assando.
Os pratos tinham como base os animais de criação doméstica, como o frango, o vitelo, o boi, o carneiro, o porco, além das aves silvestres. A sopa mereceu um capítulo a parte e era preparada a com legumes, miudezas e carne de algum animal doméstico. Como tempero era usado o queijo, o açúcar e a canela. Bartolomeo Scappi foi o inventor do ‘foie gras’.
Antes de Gutenberg, os livros eram objetos raros e caríssimos. Só os nobres podiam tê-los. Inês de Anjou, pagou por um livro de homílias 200 carneiros e mais 200 litros de trigo, 200 litros de aveia, 200 litros de mel, 2 libras de prata e 10 peles de marta.
Na Itália medieval os açougues (macellarii) eram localizados na periferia das cidades, geralmente a beira de uma estrada onde o gado passava e perto de um córrego ou rio para descarregar os dejetos.
Na França, os açougueiros eram obrigados a abater os animais próximo de um curso d’água. Ali mesmo eram eviscerados e divididos em quartos. O sangue, as vísceras não aproveitáveis eram colocadas em vasilhas para ser descarregados no campo ou numa várzea ribeirinha. Os cachorros e urubus dariam um sumiço nelas. O conteúdo intestinal era simplesmente esgotado para o curso d’água, como algumas vezes até as vísceras.
Os quartos eram levados para os açougues, geralmente localizados no centro da cidade juntos ao grande mercado, para serem desossados e vendidos. A sobra que não fosse vendida e ameaçasse estragar era salgada pelos próprios açougueiros para recolocá-la e venda posteriormente ou dependendo da aparência, repassada para os vendedores ambulantes para ser vendido para os menos esclarecidos.
Na região de Provença e Languedoc, os açougues chamavam "mazel".
Interessantíssimo este artigo.
ReplyDeleteInstigante!
ReplyDeleteComo graduando em história apreciei imensamente este artigo!
ReplyDeleteAdorei! Muito interessante!
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