2.16.2011

GRILAGEM DE TERRAS EM SÃO PAULO (parte II)


Para conhecer melhor as dimensões da antiga Fazenda de São José da Ponte Pensa e a figura de Patrício é preciso cNOomeçar por Jales, no Noroeste de São Paulo, com cerca de 50 mil habitantes e economia baseada na agricultura familiar e produção de frutas. De um pontilhão, na parte mais alta da cidade, o professor de geografia Sedeval Nardoque, da Universidade Federal da Grande Dourados (MS), aponta os antigos domínios do mineiro, que se estendem, agora, por Jales e mais 24 municípios na direção do Rio Paraná


Autor da tese de doutorado Renda da Terra e Produção do Espaço Urbano em Jales, defendida em 2007 na Universidade Estadual Paulista (Unesp), e da dissertação de mestrado Apropriação Capitalista da Terra e a Formação da Pequena Propriedade em Jales (2002), o professor deu longo destaque ao pioneirismo de Patrício, que permaneceu por mais de meio século na região, e à atuação dos grileiros para tomar o seu patrimônio. “Ele teve a sua história apagada e não se pode negar a sua importância no Noroeste paulista, onde foi um dos primeiros ocupantes. Nossa região, na sua origem, está muito ligada a Minas”, diz o professor, ressaltando que a fazenda não veio de mão beijada em forma de sesmaria, distribuição de terra, pela coroa portuguesa, extinta com a independência do Brasil (1822). “Patrício foi um formador de posse, veio interessado na criação de gado, pois a mineração de ouro já entrara em decadência em Minas Gerais”, explica.


Nas pesquisas em documentos históricos, Nardoque constatou que a ocupação no Noroeste resultou da expansão no Triângulo Mineiro, região pertencente a Goiás até a primeira metade do século 19. “Os primeiros a chegar fundaram cidades e depois atravessaram o Rio Paranaíba, entre Minas e Mato Grosso do Sul, para depois cruzar o Paraná.” Ele cita o livro Pioneiros e fazendeiros de São Paulo, do geógrafo francês Pierre Monbeig, que trabalhou no Brasil entre 1935 e 1945 e foi professor na Universidade de São Paulo (USP). A obra traz um mapa com as indicações das entradas dos pioneiros por Uberaba, Frutal (sentido Barretos), São Francisco de Sales (cruzando o Rio Grande, na direção de Porto dos Índios), e por Paranaíba (MS), a rota de Patrício, que depois fincou suas bases em Porto Taboado (atual Rubinéia-SP).
Patrício não tinha, como os demais mineiros, a noção jurídica de propriedade e se tornara vulnerável aos novos tempos. Também não havia uma legislação específica para regular o acesso à terra , diz Nardoque, explicando que, entre 1822 e 1850, a questão era resolvida nas paróquias, assim como o registro de casamentos, nascimentos e óbitos. No entanto, nesse último ano, surgiu a Lei Imperial de Terras. Ela estabelecia a compra como a única forma de acesso à propriedade, abolia em definitivo o regime de sesmarias e dava prazo até 1854 para a legitimação das antigas posses. Por ignorância, pela distância dos centros urbanos e por falta de divulgação da lei, Patrício não tomou conhecimento das mudanças e continuou nos sertões do Oeste até 1885, quando retornou à vila de São Tiago. Para tomar conta das terras, ficaram em Porto Taboado escravos e familiares.
Como em terra de cego quem tem olho é rei, a falta de conhecimento permitiu que, em menos de duas décadas, advogados, corretores de imóveis, donos de companhias imobiliárias, engenheiros, topógrafos e outros profissionais sabedores da lei juntassem munição para a grilagem e a expulsão da população remanescente da Fazenda da Ponte Pensa. Em primeiro lugar, para legitimar as posses, os espertalhões adotavam uma prática ardilosa: acendiam velas e deixavam que a fumaça “envelhecesse” documentos falsos; e, para terminar o serviço, colocavam os papéis dentro de caixas com grilos, para que os insetos picotassem as folhas. Daí veio o nome desse tipo de maracutaia.
No centro da encenação, e pronta para comprar qualquer comprovante de posse, estava a empresa Glória & Furquim, de propriedade dos sócios João Odorico da Silva Glória, de São José do Rio Preto (SP), o carioca Mário Furquim e o paulista Bernardino de Almeida. Eles contrataram, para defendê-los, figuras proeminentes, como os advogados Olímpio Rodrigues Pimentel e Júlio Prestes, que recebeu, conforme as pesquisas de Nardoque, 30 mil alqueires como honorários advocatícios.
Em 1914, o grupo entrou na esfera federal com uma ação para comprovação da propriedade e, seis anos depois, começaram comercializar as áreas da fazenda, dentro de um sistema chamado beliche. Isso significava a venda de uma mesma gleba para duas pessoas diferentes em comarcas distintas. “Como era uma região muito distante, praticamente de puro mato, quase ninguém, no início do século 20, sabia onde ficava o terreno ou se interessava em vê-lo de perto”, conta Nardoque. Somente em 1928 foi feita, por determinação da Justiça, a demarcação das terras para localizá-las corretamente, verificando-se, então, a sobreposição de áreas. “Nenhum dos grileiros contestou, pois, agir assim, seria negar as origens dos documentos e expor a falcatrua”, afirma Nardoque.
Veio a crise econômica de 1929, as terras se desvalorizaram e a história caminhou para um desfecho surpreendente. Para fazer a demarcação foi designado como perito o engenheiro Euphly Jalles, que, por ironia, era mineiro de Frutal, no Triângulo. Houve, então, um novo ciclo, com a venda de terras demarcadas e surgimento das cidades do Noroeste, entre elas Jales, fundada em 1941.


Autoria de Gustavo Werneck - Publicada no 'Estado de Minas' , Belo Horizonte, 6 de junho de 2008. Editada e adaptada para ser postada por Leopoldo Costa








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