3.31.2011

CAMPINAS NO SÉCULO XIX

Entre o final do século XVIII e o terceiro quartel do século XIX, sucessivos deslocamentos no eixo econômico nacional e internacional foram levando a região do então chamado Oeste Paulista para o primeiro plano da economia, de modo que na segunda metade do século XIX a cidade de Campinas já rivalizava com a capital da província. Entender estas transformações econômicas é o primeiro passo para que possamos falar do que se passava nesta cidade no século XIX. E para isso um bom ponto de partida são as listas de população do período, cujos originais se encontram no Arquivo do Estado de São Paulo, mas das quais o Arquivo Edgard Leuenroth possui cópias microfilmadas.

No século XVIII um dos principais fornecedores do mercado internacional de açúcar era o Haiti. Em 1790, porém, essa colônia francesa iniciaria um processo de independência especialmente conturbado, com uma revolução liderada por ex-escravos. A partir de então, e durante toda a década, as desordens internas fariam com que o Haiti suspendesse suas exportações de açúcar, cuja escassez no mercado europeu causaria uma alta de preços.

É aí que Campinas entra na história. Por essa altura nem era ainda uma cidade autônoma, mas uma freguesia ligada a Jundiaí, e criada em 1774. Um ano após sua criação, esta freguesia, com 266 habitantes, possuía três engenhos, que produziam apenas aguardente, cerca de 400 litros por ano, o que dava provavelmente só para o consumo doméstico. Quase vinte anos mais tarde, em 1793, o número de engenhos ainda não aumentara muito, passando a cinco, mas que já tinham, além da aguardente, uma produção de açúcar que passava dos 26 mil quilos por ano. A partir daí faz-se sentir o impacto da revolução do Haiti e o espaço que foi aberto para os produtores paulistas no mercado internacional, no vácuo deixado pelo fim das exportações haitianas. Basta ver que apenas cinco anos mais tarde, em 1798, o número de engenhos já tinha passado de 5 para 35, enquanto a produção de açúcar deles passara de 26 para 227 toneladas, quando a população da cidade já era então de 2.500 habitantes. E a partir deste impulso inicial, tomado dos acasos do mercado internacional, o ritmo de crescimento não se interromperia mais, entrando pelas primeiras décadas do século XIX: em 1826, apenas trinta anos após o início da expansão, a população passaria de 2.500 para 8.500 habitantes, e os engenhos, que agora já eram uns 80, produziam mais de mil e oitocentas toneladas de açúcar.

Rua Barão de Jaguara 
Há ainda um outro detalhe que deve ser notado na população de Campinas no início do século XIX: é o aumento da mão-de-obra escrava, que acompanha o aumento da produção açucareira. Em 1775, apenas um ano após a criação da freguesia de Campinas, o número de escravos era de 60 numa população total de 266 habitantes, ou seja, os escravos eram 22% da população total. Em 1793, ano em que podemos assinalar o início da produção açucareira de Campinas, quando os cinco engenhos do local produziam suas 26 toneladas de açúcar por ano, o número de escravos subiu para 315 numa população de 1.414 habitantes, o que representa ainda a mesma proporção, ou seja, apesar do crescimento da população os escravos mantinham-se na proporção de 22% da população. Em 1829, porém, quando a produção açucareira já estava solidamente estabelecida, atingindo 2.000 toneladas por ano, Campinas já possuía mais escravos do que pessoas livres: eram 4.323 escravos numa população de 8.543 habitantes.

Este período, em que acabava de se firmar a produção açucareira, foi também o período em que começava a expandir-se pela província de São Paulo o plantio do café. Introduzido a princípio na província do Rio de Janeiro e entrando pelo Vale do Paraíba paulista, quando o café alcançou o Oeste Paulista já encontraria em Campinas sólidas riquezas fundadas sobre o plantio da cana-de-açúcar e a posse de escravos. E durante muitos anos os dois cultivos coexistiriam, até que o café passasse a dominar quase exclusivamente a paisagem das fazendas, isso já na segunda metade do século.

A expansão cafeeira seria responsável por um segundo surto de progresso na cidade, comparável ao primeiro, da entrada da cana no início do século. E um dos índices pelos quais podemos sentir este progresso talvez seja o desenvolvimento da imprensa local neste período, do que dão testemunho as coleções guardadas em microfilme no Arquivo Edgard Leuenroth. 

O primeiro jornal de duração significativa a ser fundado na cidade foi a Gazeta de Campinas, que apareceu no final de 1869, reunindo em sua redação alguns bacharéis formados pela Faculdade de Direito de São Paulo que mais tarde formariam um importante núcleo do Partido Republicano Paulista. Eram eles Francisco Quirino dos Santos, o doutor Quirino, dono do jornal, Campos Salles, futuro presidente da república, Jorge Miranda, Francisco Glicério, futuro ministro, no governo republicano, Américo Brasiliense e Rangel Pestana.
A Gazeta só encontraria concorrência no jornalismo campineiro em 1874, concorrência que partia de dois campos bem distintos. Um era deles o do jornal Constitucional, alinhado com o Partido Conservador e redigido também por bacharéis egressos da Academia de São Paulo, primeiro João Gabriel de Moraes Navarro e depois Baltazar da Silva Carneiro. Este jornal se extinguiu com apenas dois anos de existência. 
Quase ao mesmo tempo, surgia uma outra empresa jornalística destinada a uma vida mais longa. Fundado em 1874 com o nome de A Mocidade, logo mudado para A Actualidade, em 1875 este jornal assumiria o nome definitivo de Diario de Campinas. Foi o primeiro jornal de circulação diária da cidade, inovação que logo seria imitada também pela já tradicional Gazeta de Campinas. O Diário seria fundado por quatro jovens de convicções também republicanas, mas de uma origem social bem diferente daquela dos bacharéis da Gazeta de Campinas. Na redação do Diário juntavam-se o ex-guarda-livros Antônio Duarte de Moraes Sarmento, o ex-caixeiro Henrique de Barcelos, o ex-aprendiz de alfaiate José Gonçalves Pinheiro e o ex-aprendiz de padeiro Joaquim de Toledo.
Na década de 1880 ainda surgiriam dois novos órgãos na imprensa campineira. Em 1881 seria o Opinião Liberal, órgão oficial do partido na cidade, que também teria curta duração, desaparecendo em 1883, devido a divergências com a direção do Partido Liberal da capital. Mais tarde, em 1885, era a vez do Correio de Campinas, dirigido pelo ex-redator do Diário de Campinas, Henrique de Barcelos, e que entraria pelo século XX. Desta forma, apesar da duração efêmeras de alguns dos jornais, vemos que no fim das contas durante um bom período do último quartel do século XIX Campinas contou com três jornais de circulação diária, o que afinal é mais do que se viu no fim do século XX.

Um outro símbolo do progresso alardeado pela cidade foi a chegada da estrada de ferro. Em 1871 a recém-fundada Companhia Paulista de Estradas de Ferro contava em Campinas com 118 acionistas, que controlavam 2.680 ações da empresa. Em 1.873 os investimentos dos acionistas campineiros já quase dobrara, sendo então 5.294 ações que se concentravam nas mãos de 105 acionistas. Pelo menos metade das ações da Companhia que se concentravam em Campinas encontravam-se nas mãos de fazendeiros, o que mostra claramente o interesse desta classe em investir os ganhos advindos da cafeicultura na modernização da economia. É bom lembrar que quando investisse em estradas de ferro, o fazendeiro nada mais faria do que abrir espaços para a expansão de sua empresa agrícola, cuja produção era escoada até esta época em tropas de mulas. E ao que tudo indica esta foi mais uma opção acertada, pois é notável o crescimento econômico da cidade: entre 1871 e 1873 o número de eleitores (que, é bom lembrar, eram definidos de acordo com a renda que possuíam) permaneceu estabilizado em 23; cinco anos mais tarde, em 1878, este número já tinha aumentado para 73!

Mas nem só de símbolos vivia o progresso econômico de Campinas. A expansão da cafeicultura na região, da mesma maneira que a expansão dos engenhos meio século antes, se fez sentir sobre a mão-de-obra escrava. Em 1872 Campinas já contava com 13.412 escravos, o que significa um aumento de mais de 200% em relação ao número contado em 1829. A década de 1870 marcou o início de um movimento de libertação dos escravos, com a aprovação da Lei do Ventre Livre em 1871 e a organização de um movimento abolicionista mais para o fim da década. Entretanto, quinze anos mais tarde, em 1886, a população escrava de Campinas ainda era significativa, com quase 10.000 escravos, dos quais apenas 420 estavam concentrados na cidade, e os outros todos espalhados pelas fazendas do município. Para se ter uma idéia do que significava este número basta lembrar que em toda a província de São Paulo havia pouco mais de 70.000 escravos, ou seja, só o município de Campinas concentrava cerca de 15% de toda a população escrava da província. E mesmo em 1888, a um mês da assinatura da Lei Áurea, Campinas ainda possuía, pelos números oficiais, mais de 5.000, ou pelas estimativas mais otimistas, pelo menos 2.000 escravos.


Isso significa que o grande teste pelo qual passou o tão alardeado progresso da cidade foi o fato de ser uma das últimas a conseguir prescindir da mão-de-obra escrava, dependendo da exploração de pessoas como se fossem mercadorias até os últimos momentos da existência legal da escravidão, numa época em que já eram muitos e muitos os que se opunham a essa forma de trabalho, por achá-la desumana.  

É claro que nos discursos até os senhores de escravos campineiros mostravam-se humanos, progressistas e preocupados com a transição do trabalho escravo para o livre. Além do mais, a teoria dos economistas liberais garantia que o trabalho livre era muito mais lucrativo do que o escravo, porque o homem livre trabalharia com maior interesse e motivação. E, na verdade, desde o início da década de 1870, até a abolição da escravidão, os fazendeiros sempre mostraram-se interessados em substituir os trabalhadores escravos por imigrantes europeus, mas na prática isso nunca significou uma disposição para libertar seus escravos, e as experiências com imigrantes foram sempre muito limitadas. Pois, de fato, tanto os engenhos quanto as fazendas de café eram empresas agrícolas que visavam o maior lucro possível, e aos olhos dos fazendeiros, não segundo a teoria econômica, mas segundo a sua experiência, a forma de trabalho mais lucrativa era a escravidão, e foi a ela que eles se agarraram enquanto puderam.

Mas, enfim, a abolição da escravidão aconteceria, mesmo contra a vontade dos senhores; entretanto, o processo de decadência que teria início quase à mesma época não seria conseqüência do fim do trabalho escravo, e sim das precárias condições de saneamento da cidade. Entre 1889 e 1897 Campinas enfrentaria uma série de cinco epidemias de febre amarela, cujos efeitos seriam drásticos sobre a população. À época da primeira epidemia, estima-se que Campinas contaria, na cidade, com cerca de 15.000 habitantes; destes, dois terços fugiriam em busca de um local mais seguro, isto é, saudável; e dos 5.000 que ficaram, pelo menos 1.200 morreriam pela doença.

Além da decadência da população, esta era também a época em que o desenvolvimento econômico, que durante um século trouxera Campinas ao primeiro plano da província, tomava outros rumos; iniciava-se naquela época a industrialização e a expansão urbana da capital, e aí já não caberiam mais dúvidas quanto a saber para onde apontava o progresso do já então estado de São Paulo.

Por Jefferson Cano (Unicamp). Texto editado e adaptado para ser postado por Leopoldo Costa.

2 comments:

  1. A igreja matriz mostrada na foto, não é a de Campinas São Paulo e sim de um bairro da cidade de Goiania.

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  2. Obrigado pela observação, Fernando. Já substitui a fotografia por outra da rua Barão de Jaguara.

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