4.29.2011

HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO NO BRASIL

A culinária de uma sociedade é uma linguagem através da  qual se traduz sua estrutura social. Os tratados culinários refletem o inconsciente da vida cotidiana de uma cultura, ao mesmo tempo que, explicitamente, retratam uma época.

Pertence ao cotidiano da Antropologia a noção de que todo povo tem seu cardápio. Da mesma forma que socialmente o homem recebe  regulamentos para a comunicação através de símbolos, ele estabelece normas para sua alimentação. Ao lado da linguagem, o processo de alimentação se coloca como um dos mais sofisticados produtos de uma cultura, e por isso a importância de um estudo antropológico do homem enquanto comensal.

Assim sendo, no decorrer de quinhentos anos de história da alimentação, o Brasil  pode destacar, através de seu estilo de beber e de comer, de sua produção agrícola, de suas receitas, de seus comestíveis, enfim, de seu comportamento alimentar, a formação da identidade brasileira.

Portugueses e africanos, a medida que foram chegando e se fixando, formaram, ao lado dos amerabas, um verdadeiro mosaico étnico. Em todo território brasileiro, percebe-se claramente que, o traço da convivência  desses ancestrais, ficou enraizado na cultura brasileira, onde a conjugação de saberes e sabores, paladares e aromas expressa a mais perfeita mestiçagem.

Essas influências se fazem notar em toda nossa cultura popular: na arte, na dança, na música, na religiosidade, no erotismo, nos mitos. Porém é na cozinha que a presença dos índios, negros e portugueses desperta um dos maiores prazeres dessa mistura racial. A mesa brasileira, composta pelas "tradições indígenas, pelas iguarias africanas e pela suculência portuguesa", se expressa numa linguagem culinária que traduz com clareza nossa identidade.

A historiografia da alimentação recorta alguns aspectos sociais e econômicos que foram fundamentais na formação das tradições alimentares no Brasil, seja no plantio e no comércio, seja no consumo, pois são elementos que entrelaçam o Brasil Colonial, ainda tão notório, com o Brasil de agora  e o do amanhã.

Na verdade, um estudo de nossas origens se confunde, não só pelo referido cruzamento desses três tempos (passado, presente e futuro), como também pela harmonia que se estabeleceu entre a miscigenação alimentar e o paladar brasileiro daí resultante. Contudo, qualquer que seja a abordagem entre a formação da identidade  brasileira e nosso comportamento alimentar, terá obrigatoriamente, sua  fundamentação, num primeiro momento, nas referidas três matrizes étnicas:
a) a cozinha da cunhã
b) o cardápio negro
c) o paladar português

Em  seguida, o olhar se voltará para os diferentes Brasis que historicamente surgiram, sustentados sempre pelo tripé originário: o Brasil crioulo, o Brasil sertanejo, o Brasil caipira, o Brasil crioulo e os Brasis sulinos.

Caminhando um pouco adiante no enfoque da Antropologia da Alimentação frente à questão de nossa identidade, vale citar Roberto Da Matta em O que faz  Brasil, Brasil?, quando ao recortar a importância  do código da comida na sociedade brasileira, aponta a preferência nacional pelo alimento cozido. Ou seja, a comida que fica entre o sólido e o líquido, a que permite a mistura. Sendo o feijão com arroz a comida brasileira básica, sempre acompanhada de farinha, temos aí a síntese, o pirão, a papa, a mistura do preto e o branco, a cama e a mesa como partes de um único processo cultural de lógica própria.

Como se denota essa preferência? Por sermos um país de três raças, um país mestiço e mulato, onde tudo se combina, nossa comida revela essa mesma lógica. Temos, então, uma culinária relacional que expressa de modo privilegiado uma sociedade igualmente relacional. Também no mundo culinário, o que privilegiamos é a possibilidade de estabelecer hierarquias, traço de um povo cujo destino sempre foi servir ao colonizador, permitindo escolhas entre um prato principal e seus acompanhamentos, os coadjuvantes, que servem para juntar e misturar. É a  a marca do código culinário relacional e intermediário, uma distinção à  mistura, ao ponto de ligação.

O Brasil é o país da fusão, uma grande colcha de retalhos. Um país que se mescla numa tentativa de unidade, a projetar o rosto de um mesmo povo, mas com a forte marca da diferença, de encontros e desencontros. Um povo rico em diversidades, que exalta o branco e as cores berrantes, de exuberante alegria e vitalidade yorubá, permeada pela  ternura lusitana, e pela magia e tradição ameraba, sem esquecer nunca a dose de erotismo, a sexualidade aberta que esteve presente desde sempre nessas inter-relações. Assim se calca nossa subjetividade. Em tudo o toque fundamental da mistura, da mesclagem, da aculturação, nesse ethos original, onde a alimentação, com forte dose de erotismo, se firmou como base simbólica dos significantes e significados de uma realidade rica em diferenças. E é exatamente essa contribuição da diferença que dá a originalidade de nossa cultura. Em nosso propósito, temos que aceitar o desafio da mistura.
  
Nas sociedades complexas industriais o ritmo acelerado de mudanças é acompanhado por um processo de contestação e redefinição de atitudes e valores manifestando o diálogo constante entre tradição e inovação: o fato de se relacionar aqui tradição e alimentação não implica negar o aspecto da inovação presente no ato culinário, a reinvenção constante de novas formas e combinações que se adaptam à realidade externa. Manutenção e inovação podem e devem coexistir no mesmo processo.

Na sociedade pós-moderna o sujeito vem empobrecendo suas relações com as noções de tempo e de história. Hoje o que importa é a pontualidade do momento, do estrito tempo do presente. A conseqüência desse processo é que, não só a memória tende ao silêncio, assim como o horizonte do futuro se estreita, pois, ao se sublinhar o imediato do presente, o sujeito perde a dimensão do porvir.

Em A História de Lince Lévi-Strauss afirma que é desejável que as culturas se mantenham diversas e, mais ainda, que se renovem na sua diversidade. Cada cultura desenvolve-se graças a seus intercâmbios com outras culturas, porém é imperioso que cada uma oponha certa resistência, caso contrário perderá sua propriedade particular de troca. Há risco tanto no excesso quanto na ausência de comunicação.

Como se posicionar frente ao discurso da contemporaneidade no intercâmbio entre tradição e inovação, no que diz respeito ao comportamento alimentar e o processo identificatório? Num país já por si só pouco cuidadoso com sua memória e com a preservação de sua identidade, vale lembrar Gilberto Freyre em Manifesto Regionalista  onde o autor destaca que quando a culinária de um povo começa a se descaracterizar, é sinal de que toda a cultura que está se modificando. As transformações nos hábitos alimentares são a evidência da descaracterização cultural e não a sua causa.

Ora, a globalização do paladar é hoje uma realidade. As transformações se impõem, gerando formas criativas e enriquecendo velhas fórmulas e receitas. Por isso, faz-se, então, mais do que necessário, para que o resultado não seja tão danoso, a execução de um projeto que tenha por objetivo a preservação de nossa cultura gastronômica, o resgate da memória alimentar brasileira. O global engaja o local em sua própria estrutura. Num contexto de síntese entre a ciência da nutrição e a arte culinária, a Antropologia da Alimentação, em sintonia com áreas afins, deve propor exatamente esse registro. Um estudo que, através da interpretação e valorização possíveis, propicie a recuperação e conseqüente transmissão de um dos mais significativos meios de expressão da identidade brasileira: sua alimentação

Bibliografia-

BIRMAN, Joel 1999. Mal-estar na atualidade Rio de Janeiro: Civilização Brasileira
DAMATTA, Roberto 1984. O que faz o brasil, Brasil?  Rio de Janeiro: Rocco
FREYRE, Gilberto 1968. Manifesto Regionalista  Recife
LÉVI-STRAUSS, Claude 1993. História de Lince São Paulo: Companhia das Letras
LIMA, Claudia 1999. Tachos e Panelas  Recife
REVEL, Jean-François 1996. Um Banquete de Palavras  São Paulo: Companhia das Letras
RIBEIRO, Darcy 1995. O Povo Brasileiro  São Paulo: Companhia das Letras

Autoria de Daisy Justus in: ANAIS DA IX JORNADA DA FACULDADE DE NUTRIÇÃO DA UFF- 19 a 21 de setembro de 2000- Niterói – Rio de Janeiro. Editado para ser postado por Leopoldo Costa

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