4.26.2011

HISTÓRIA DA CRIAÇÃO DE GADO NO PIAUÍ

Leopoldo Costa

Antes do ano de 1880, o Piauí não dispunha de nenhuma saída para o mar. Para ter as vantagens de ser um estado com acesso ao mar, fez uma troca cedendo dois municípios ao Ceará (Crateús e Independência) em troca de 
uma costa oceânica que tem apenas 66 quilômetros de extensão.


Até o ano de 1695 pertencia à capitania de Pernambuco, quando por carta régia foi transferido para a capitania do Maranhão,porém a transferência só foi efetivada em 1715. Neste período de 20 anos houve uma desordem administrativa, que provocou a distribuição de sesmarias indiscriminadamente por ambas as capitanias. Foi em 1795, que o príncipe regente João VI regulamentou a distribuição de sesmarias e puniu os desmandos dos sesmeiros.

A capitania do Piauí foi oficialmente criada em 1718, mas só foi instalada em 1758, quando o governador João Pereira Caldas (1724-1794) a organizou.
A colonização do território piauiense começou pelo sul quando o fazendeiro baiano Domingos Afonso Mafrense (m. 1711) e o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho (1641-1705) à serviço da Casa da Torre de Garcia D’Avila, conseguiram atravessar para o outro lado da margem do rio São Francisco num trecho encachoeirado. Primeiramente tomaram posse de terras do Pernambuco e mais tarde seguindo o fluxo do riacho do Pontal e pela serra dos Dois Irmãos passaram a estabelecer currais em  território piauiense. Estabeleceram-se em 1670 as margens do rio Parnaíba, primeiro rio perene que encontraram, depois de ultrapassado o rio São Francisco. Os currais de criação foram sendo instalados acompanhando o curso deste rio e também passaram para a outra margem, o que é hoje território do Maranhão.

A cidade de Floriano, as margens do rio Parnaíba foi originária em 1676 de quatro antigas sesmarias, a maioria doada a Domingos Afonso Mafrense (m. 1711). Foi ele o responsável pela implantação das primeiras fazendas, para criação de gado. Chegou a possuir 50 grandes fazendas e em 1710, deixou em testamento aos padres jesuítas 39 delas, as mesmas, que meio século depois, seriam confiscadas pela administração do marquês de Pombal. As fazendas dos jesuítas, contavam em meados do século XVIII com 250 currais e cerca de 50.000 cabeças de gado[1].

Escreveu Aroldo de Azevedo (1910-1974) no seu livro ' O Brasil e suas Regiões': 'Na segunda metade do século XVII, o português  Domingos Afonso Mafrense, auxiliado pelo paulista Domingos Jorge Velho, atingiu o sudeste do Piauí, dizimou os índios que ali viviam e abriu as primeiras fazendas de gado no vale do Canindé (1673). Com o tempo, passou a possuir 39 fazendas, onde viviam 50.000 bovinos e cerca de 3.000 equinos; tornou-se o verdadeiro dono daqueles sertões, o que valeu o nome de Domingos Jorge Sertão. Ao falecer, deixou tais propriedades para a  Companhia de Jesus, que as administrou até sua extinção (1760). O principal núcleo transformou-se na Vila da Mocha (1712),  cidade de Oeiras (1761), capital do Piauí até  1851. As vanguardas desta corrente povoadora chegaram a alcançar o  Maranhão, onde surgiu a cidade de Pastos Bons.'
A criação de bovinos logo se impôs como estrutura econômica quase única na bacia do rio Parnaíba, onde o número de fazendas cresceu de 129 nos fins do século XVII para cerca de 500 em 1760.

Em 1760 o governador João Pereira Caldas[2], promoveu o confisco das fazendas em nome do reino de Portugal e fez o arrolamento dos bens. Depois, dividiu-os em três grandes áreas com os nomes de Canindé, Nazaré e Piauí.

Em 1873, desmembram-se, da área de Nazaré, as fazendas de Guaribas, Serrinha, Matos, Algodões, Olho d’Água e Fazenda Nova, para formarem a Colônia Rural de São Pedro de Alcântara, criada pelo decreto Imperial nº 5.292, de 10 de setembro de 1873. As fazendas, que pertenciam à Inspetoria de Nazaré, contavam com 21 léguas de comprimento por 20 de largura, em excelentes terras, com pastagens de boa qualidade e foram doadas com três casas, currais e 10.000 cabeças de bovinos.

A implantação de fazendas de criação possibilitou a fundação de muitos povoados, como foi o caso de Cabrobó, as margens do rio Canindé, fundado em 1674, que depois, em 1761, incorporando o povoado de Mocha, foi elevada a categoria de vila com o nome de Oeiras, que se tornou o centro da capitania e mais tarde a primeira capital da província.


A pecuária na região ganhou características próprias, era extensiva, extrativista e ocupava grandes espaços. O gado ficava solto à sua sorte, quase independente do trabalho humano. Em pouco tempo as fazendas piauienses tornaram-se as mais importantes do nordeste, e os seus rebanhos eram encaminhados a pé, aos mercados da Bahia e de Minas Gerais, a cerca de 1.500 quilômetros de distância. Este comércio foi importante até 1769.
Em 1762, existiam no Piauí, 4.644 escravos e 8.012 livres como vaqueiros, ‘fábricas’ e agregados, que cuidavam dos rebanhos.

As vilas de Campo Maior, Parnaíba, Jerumenha, Valença e Marvão, fundadas entre os anos de 1718 e 1719, foram tipicamente concentrações humanas de base pecuária, como a criação de gado empregava pouca mão de obra, tiveram um crescimento moroso, se comparado com outras vilas existentes na região de mineração.[3]

Após 1822, a pecuária continuaria a ser o centro da economia regional. E existia uma próspera indústria de carne seca na região de Parnaíba, fornecedora do produto para outros estados.
Escreveu Renato Braga (1905-1968)[4]As oficinas piauienses datam de longe. Quando os compradores recusaram as carnes do Aracati, num gesto de represália aos impostos estabelecidos pela câmara recem criada, foram buscá-las em Acarau e Parnaiba. Isso se deu pelas alturas de 1750. Treze anos depois elas consumiam mais de 12.000 reses por ano, segundo informação de João Pereira Caldas. Localizavam-se essas oficinas no sitio denominado Feitoria ou Porto das Barcas, à margem direita do Parnaiba. O arraial frequentado por 16 ou 17 navios, alcançou tal importância que o governo da capitania se viu na contingência de transferir para ali, em 1770, a sede da vila de Sao João do Parnaiba, então em Testa Branca, lugarejo que vegetava na mais completa decadência. As carnes alicerçaram a grandeza da futura metrópole do delta parnaibano. A feição hidrográfica do Parnaiba, contrastando vivamente com o regime dos outros rios pastoris do Nordeste, cuja navegabilidade se condiciona a maré montante, permitiria a penetração das oficinas rio acima, como fez em 1770 o negociante parnaibano e fazendeiro em Pastos Bons, João Paulo Diniz, que levantou oficinas a oitenta léguas da sua foz, no âmago da zona criatória, cujos gados transformados em carne transportava em barcas até a vila, donde os recambiava para navios com destino a Baia, Rio de Janeiro e Pará. Por ocasião da seca grande, 0 Piaui, que estava nas raias da área atingida pela calamidade, cujo epicentro era o Ceará, sofreu os seus efeitos apenas no ano de 1792, mas as consequências foram profundas em sua economia e demografia. Muita gente dos sertões cearenses emigrou para ali e o remanescente indígena em grande parte refugiou-se nos seus profundos baixões. Para o Piaui convergiram as transações pecuárias, quer como último detentor da exploração das carnes secas, quer como fornecedor da semente que havia de recompor a destroçada pecuária nordestina e esse movimento foi tão grande que duplicou o valor do gado em pé, passando uma vaca a ser vendida por 4$800 enquanto que anteriormente o era por 2$000, um garrote por 4$000, em vez de 1$600. Na história das oficinas parnaibanas avulta como a sua primeira personagem Domingos Dias da Silva, fundador de uma casa que pelos seus grossos cabedais, talvez a mais rica do Nordeste pastoril, influiu poderosamente em todos os sectores da vida piauiense. Se é verdadeira a afirmativa de José Francisco de Miranda Osório que Domingos Dias da Silva chegou ao Piaui perto de 1768, não lhe cabe a iniciativa da fabricação das carnes secas, como asseveram historiadores locais. O que fez Domingos da Silva, dono de urn tino comercial invejavel, foi enfeixar em suas mãos o comércio das carnes, fabricando-as, financiando-as, de maneira a tornar-se o único exportador delas. Os seus agentes de cobrança dos dízimos, dos quais era uma espécie de arrematante crônico, abriram caminho as boiadas do centro e suI da capitania para a foz do Parnaiba, começando a solapar uma circulação econômica que, pelas condições históricas do povoamento e pela configuração geográfica demasiadamente alongada, fazia-se com as unidades limítrofes. Os herdeiros de Domingos Dias da Silva, morto em 1793, mostraram-se incapazes de continuarem a obra paterna. Em 1813, as seis oficinas existentes em Parnaiba, estavam reduzidas a três, que consumiam ainda de seis a oito mil bois. Fecharam·se sucessivamente em 1820, 1824 e 1827’.
Na década de 1860, foi iniciada entre o porto de Parnaiba e Caiena na Guiana Francesa uma linha de navegação a vela exclusivamente para exportar o gado do Piauí. Era obtido um bom preço o que desestimulava os criadores a destinar o gado para o consumo interno. O presidente da província do Maranhão, que recebia grande parte do gado embarcado anteriormente de Parnaíba, chegou a reclamar do fato ao Imperador.


George Gardner[5] (1812-1849), botânico e médico britânico, que viajou pelo Brasil entre 1836 e 1841 visitou o Piauí conheceu e ficou muito admirado em encontrar uma propriedade de criação de gado que tinha um rebanho de 5.000 cabeças e cerca de 30 casas de moradias para os peões que lidavam com o gado, que eram na sua maioria escravos.
Também, comentando a estadia em uma fazenda em Jaicós no sudeste piauiense em 1839 escreveu: 
'Durante todo o tempo da nossa permanência foramos suntuosamente tratados porque é costume abater o ano todo diariamente, um boi gordo para uso do proprietário e da gente da fazenda: um ou dois dias antes da nossa partida matara-se-lhe um e secara-se-lhe a carne para nosso alimento na viagem'
No último quartel do século XIX, no sertão do Piauí, pelos registros cartoriais dos inventários, pode-se observar que persistia uma importante atividade de criação de gado.
Por exemplo, no inventário de Raimunda Ludovina Portela, falecida em Oeiras em 1888, viúva de Francisco Portela, comerciante e fazendeiro, está arrolado diversos bens que totalizava 9 mil contos de réis. Dentre os bens arrolados estão: 
(...) 600 cabeças de gado vacum a 10.000 réis cada uma, 40 cabeças de cavalos a 14.000 réis cada, um cavalo pastor por 25.000 réis, 20 burros a 50.000 réis cada um (...).
É interessante notar que pela valorização do inventário, um burro valia três vezes e meia o preço de um cavalo.



Teresina, às margens do rio Parnaíba, ao sul da confluência com o rio Poti, foi uma cidade criada para ser a capital da então província do Piauí. Seus quarteiros são regulares e as ruas arborizadas. Foi inaugurada em 1851 e era conhecida como Vila Nova do Poti. O nome foi mudado para homenagear à imperatriz Teresa Cristina (1822-1889), mulher de Pedro II (1825-1891). Timon, o terceiro município mais populoso do estado do Maranhão (150.000 habitantes) na margem esquerda do rio Parnaíba é conurbado com Teresina, fazendo parte da Região Metropolitana.

 Evolução da população municipal de Teresina

1872     21.692 habitantes
1890     31.523 habitantes
1900     45.316 habitantes
1920     57.500 habitantes
1940     67.641 habitantes
1950     90.723 habitantes
1960   144.799 habitantes
1970   220.487 habitantes
1980   377.774 habitantes
1991   598.449 habitantes
2000   764.866 habitantes
2010   814.439 habitantes


O Piauí é um estado de tradição pecuarista. Seu desbravamento foi realizado, como vimos,  tendo como ponto de apoio esta atividade. Entretanto pelo seu isolamento durante mais de 300 anos, devido a falta de estradas e de transporte, não teve contato com os maiores centros de desenvolvimento criatório do país. 
Segundo um cronista da década de 1950: 'Os bovinos são, em regra, pequenos, seródios, pouco produtivos, pois fornecem pouca carne  e muito pouco leite. Os suínos, ovinos e caprinos não são melhores' 
Quando o governo federal, na década de 1960, instalou a Fazenda de Criação Sol Posto, no município de Campo Maior, é que a região passou a ter condições de melhorar as pastagens e a criação de bovinos. Na época foi detectado pelos agrônomos do Ministério da Agricultura que nem a mineralização do rebanho era habitual.
A SUDENE propiciou financiamentos, foram importados reprodutores zebuinos de São Paulo e do Triângulo Mineiro e começou a surgir bem cuidadas fazendas.

O rebanho teve a seguinte evolução:

1938
1950
1957
1964
1964/1938
Bovinos
933.000
1.000.000
1.341.000
1.650.000
77%
Equinos
196.000
-
216.000
260.000
33%
Suinos
541.000
1.400.000
1.581.000
1.547.000
186%
Ovinos
488.000
-
883.000
1.081.000
122%
Caprinos
656.000
1.500.000
1.415.000
1.786.000
172%

Em 1964 foram abatidos em estabelecimentos controlados pelo governo:
Bovinos
73.000 cabeças
Suinos
172.000 cabeças
Ovinos
118.000 cabeças
Caprinos
217.000 cabeças

Em 1965 o estado do Piauí produziu 10.719 toneladas de carne bovina, 4.090 toneladas de carne suína, 2.105 toneladas de carne caprina e 1.380 toneladas de carne ovina. Este volume foi insuficiente para suprir o consumo interno e teve que ser adquirida carne do Ceará e do Maranhão, invertendo a posição que ocupava nos tempos coloniais e até no Império. Para uma comparação, o estado vizinho do Ceará, que é menor e tem pior ecologia, produzia na época três vezes mais carne do que o Piauí.


O IBGE no Censo Agropecuário constatou que no dia 31/12/2008 havia nos 223 municípios do estado do Piauí 1.750.000 cabeças de bovinos. Os cinco maiores rebanhos, que representavam 10% do total estavam nos seguintes municípios:
·        Corrente                                  45.000 cabeças
·        Parnaguá                                39.000 cabeças
·        Bom Jesus                             30.000 cabeças
·        Campo Maior                          30.000 cabeças
·        Oeiras                                     26.000 cabeças



[1]  Robert Southey, na sua obra “Historia do Brasil” relata:“ Em 1724, seis anos depois de elevado o Piauí a capitania e expedidas ordens para a fundação da vila de Mocha, sob o padroado de Nossa Senhora da Vitoria, havia ali umas quatrocentas fazendas grandes, donde se abasteciam de gado a Bahia e Minas Gerais, estas ainda mais do que aquela. Em 1762 foi Mocha elevada a cidade por el-rei D. José, trocando o primitivo nome pelo de Oeiras, em obséquio ao grande ministro que então usava deste titulo. (...).
Até 1769 tangia-se o gado do Piauí para a Bahia e Minas Gerais, jornada de perto de trezentas léguas, e através de um pais, que não poucos obstáculos sérios apresentavam. João Paulo formou no coração do pastoradouro, oitenta léguas pelo rio acima, fazendas, onde secar a carne, e trazendo-as por água ate o Parnaíba, dali a exportava para o Para, Bahia e Rio de Janeiro. “Em fins do século passado vinham anualmente dezesseis ou dezessete navios ao sul em busca deste gênero, que o Ceara deixara de exportar, apesar de continuar a chamar-se carne do Ceara a que assim se preparava.”
[2] Foi governador da capitania do Maranhão, de 1753 a 1761, governador geral do Piauí, de 1761 a 1769, e do Pará, de 1772 a 1780.
[3] Relata-nos Basílio de Magalhães: em ‘Expansão Geográphica do Brasil Colonial, São Paulo, Editora Nacional, 1935“ Entretanto, a inexistência de minas de metais preciosos, em toda essa vasta superfície do norte, na qual se operou o ciclo de entradas poucos úteis e depois se desenvolveu a criação de gado, não possibilitou, ali, no interior, o crescimento das povoações. Assim, Campo Maior, Paraíba, Jerumenha, Valença e Marvão, fundadas no Piauí entre 1718 e 1719, tem tido um progresso muito moroso.”.
[4]  Em ‘Um Capítulo Esquecido da Economia Pastoril do Nordeste’ pubIicado na revista Cultura Politica- ano IV, n.' 38, março de 1944, Rio de Janeiro.
[5]  No livro  ‘Viagem ao Interior do Brasil', Belo Horizonte, Itatiaia, 1975

3 comments:

  1. Bom dia,


    Sou português, resido em Portugal e sou 10ª sobrinho-neto de Domingos Afonso Mafrense e tenho tentado sem sucesso, por todos os meios ao meu dispor, obter uma cópia desta reportagem/documentário, sobre a sua vida, realizado e difundido pela TV Cidade Verde :

    http://cidadeverde.com/especial-conta-a-saga-de-domingos-mafrense-26072


    Ficaria profundamente grato se me pudessem dar alguma pista ou ajudar-me a “quebrar este galho”.
    (já contactei por três vias diferentes com a TV Cidade Verde, mas não obtive qualquer feed back)

    Meu e-mail : varela.santos@renault.pt

    Obrigado,

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  2. Caro Victor,

    Você pode tentar contatar o autor da reportagem Fábio Lima
    fabiolima@cidadeverde.com

    Sinceramente,

    Leopoldo Costa

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  3. Excelente material que traz para fascinante história de nosso estado, gostaria de ver artigos referindo-se a Fazenda São José em Altos Piauí.

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