4.06.2011

ANTONIL E A CRIAÇÃO DE GADO NO BRASIL






































Da grande extensão de terras para pasto, cheias de gado, que há no Brasil.

Estende-se o sertão da Bahia até a barra do rio de São Francisco, oitenta légua por costa; e indo para o rio acima, até a barra que chamam de Água Grande, fica distante a Bahia da dita terra cento e quinze léguas; de Centocê, cento e trinta léguas; de Rodelas por dentro, oitenta léguas; das Jacobinas, noventa; e do Tucano, cinqüenta. E porque as fazendas e os currais do gado se situam aonde há largueza de campo, e água sempre manante de rios ou lagoas, por isso os currais da parte da Bahia estão postos na borda do rio de São Francisco, na do rio das Velhas, na do rio das Rãs, na do rio Verde, na do rio Para-mirim, na do rio Jacuípe, na do rio Ipojuca, na do rio Inhambuque, na do rio Itapicuru, na do rio Real, na do rio Vaza-barris, na do rio Sergipe e de outros rios, em os quais, por informação tomada de vários que correram este sertão, estão atualmente mais de quinhentos currais, e, só na borda aquém do rio de São Francisco, cento e seis. E na outra borda da parte de Pernambuco, é certo que são muito mais. E não somente de todas estas partes e rios já nomeados vêm boiadas para a cidade e Recôncavo da Bahia, e para as fábricas dos engenhos, mas também do rio Iguaçu, do rio Carainhaém, do rio Corrente, do rio Guaraíra, e do rio Piauí Grande, por ficarem mais perto, vindo caminho direito à Bahia, do que indo por voltas a Pernambuco.

E, posto que sejam muitos os currais da parte da Bahia, chegam a maior número os de Pernambuco, cujo sertão se estende pela costa desde a cidade de Olinda até o rio de São Francisco oitenta léguas; e continuando da barra do rio de São Francisco até a barra do rio Iguaçu, contam-se duzentas léguas. De Olinda para oeste, até o Piauí, freguesia de Nossa Senhora da Vitória, cento e sessenta léguas; e pela parte do norte estende-se de Olinda até o Ceará-mirim, oitenta léguas, e daí até o Açu, trinta e cinco; e até o Ceará Grande, oitenta; e, por todas, vem a estender-se desde Olinda até esta parte quase duzentas léguas.

Os rios de Pernambuco, que por terem junto de si pastos competentes, estão povoados com gado (fora o rio Preto, o rio Guaraíra, o rio Iguaçu, o rio Corrente, o rio Guariguaê, a lagoa Alegre e o rio de São Francisco da banda do Norte) são o rio Cabaços, o rio de São Miguel, as dias Alagoas com o rio do Porto do Calvo, o da Paraíba, o dos Cariris, o do Açu, o do Apodi, o do Jaguaribe, o das Piranhas, o Pajeú, o Jacaré, o Canindé, o de Parnaíba, o das Pedras, o dos Camarões e o Piauí.

Os currais desta parte hão de passar de oitocentos, e de todos estes vão boiadas para o Recife e Olinda e suas vilas e para o fornecimento das fábricas dos engenhos, desde o rio de São Francisco até o rio Grande, tirando os que acima estão nomeados, desde o Piauí até a barra de Iguaçu, e de Parnaguá e rio Preto, porque as boiadas destes rios vão quase todas para a Bahia, por lhes ficar melhor caminho pelas Jacobinas, por onde passam e descansam. Assim como aí também param e descansam as que à vezes vêm de mais longe. Mas, quando nos caminhos se acham pastos, porque não faltaram as chuvas, em menos de três meses chegam as boiadas à Bahia, que vêm dos currais mais distantes. Porém, se por causa da seca forem obrigados a parar com o gado nas Jacobinas, aí o vendem os que o levam e aí descansa seis, sete e oito meses, até poder ir à cidade.

Só do rio de Iguaçu estão hoje mais de trinta mil cabeças de gado. As da parte da Bahia se tem por certo que passam de meio milhão, e mais de oitocentas mil hão de ser as da parte de Pernambuco, ainda que destas se aproveitam mais os da Bahia, para aonde vão muitas boiadas, que os pernambucanos.

A parte do Brasil que tem menos gado é o Rio de Janeiro, porque tem currais somente nos campos de Santa Cruz, distante catorze léguas da cidade, nos Campos Novos do rio de São João, distante trinta e nos Goitacases, distante oitenta léguas; e em todos estes campos não passam de sessenta mil as cabeças de gado que nelas pastam.

A capitania do Espírito Santo se provê limitadamente da Moribeca e de alguns currais aquém do rio Paraíba do Sul.

As vilas de São Paulo matam as reses que têm em suas fazendas, que não são muito grandes, e só nos campos de Curitiba vai crescendo e multiplicando cada vez mais o gado.
Sendo o sertão da Bahia tão dilatado, como temos referido, quase todo pertence a duas das principais famílias da mesma cidade, que são a da Torre, e a do defunto mestre de campo Antônio Guedes de Brito. Porque a casa da Torres tem duzentas e sessenta léguas pelo rio de São Francisco, acima à mão direita, indo para o sul, e indo do dito rio para o norte chega a oitenta léguas. E os herdeiros do mestre de campo Antônio Guedes possuem desde o morro dos Chapéus até a nascença do rio das Velhas, cento e sessenta léguas. E nestas terras, parte os donos delas têm currais próprios, e parte são dos que arrendam sítios delas, pagando por cada sítio, que ordinariamente é de uma légua, cada ano, dez mil réis de foro. E, assim como há currais no território da Bahia e de Pernambuco, e de outras capitanias, de duzentas, trezentas, quatrocentas, quinhentas, oitocentas e mil cabeças, assim a fazendas a quem pertencem tantos currais que chegam a ter seis mil, oito mil, dez mil, quinze mil e mais de vinte mil cabeças de gado, donde se tiram cada ano muitas boiadas, conforme os tempos são mais ou menos favoráveis à parição e multiplicação do mesmo gado, e aos pastos assim nos sítios com também nos caminhos.
  
Das boiadas que ordinariamente se tiram cada ano dos currais para as cidades, vilas e recôncavos do Brasil, assim para o açougue como para o fornecimento das fábricas.

Para que se faça justo conceito das boiadas que se tiram cada ano dos currais do Brasil, basta advertir que todos os rolos de tabaco que se embarcam para qualquer parte vão encourados. E, sendo cada um de oito arrobas, e os da Bahia, como vimos em seu lugar, ordinariamente cada ano pelo menos vinte e cinco mil, e os das Alagoas de Pernambuco dous mil e quinhentos, bem se vê quantas reses são necessárias para encourar vinte e sete mil e quinhentos rolos.

Além disso, vão cada ano da Bahia para o Reino até cinqüenta mil meios de sola; de Pernambuco, quarenta mil, e do Rio de Janeiro (não sei se computando os que vinham da Nova Colônia ou só os do mesmo Rio e outras capitanias do Sul) até vinte mil, que vêm a ser, por todos, cento e dez mil meios de sola.

O certo é que não somente a cidade, mas a maior parte dos moradores do recôncavo mais abundantes, se sustentam nos dias não proibidos de carne do açougue, e da que se vende nas freguesias e vilas, e que comumente os negros, que são um número muito grande nas cidades, vivem de fressuras, bofes e tripas, sangue e mais fato das reses, e que no sertão mais alto a carne e o leite é o ordinário mantimento de todos.

Sendo também tantos os engenhos do Brasil que cada ano se fornecem de bois para os carros e os de que necessitam os lavradores de canas, tabaco, mandioca, serrarias e lenhas, daqui se poderá facilmente inferir quanto haverão mister de ano em ano, para conservar este trabalhoso meneio. Portanto, deixar isto à consideração de quem ler este capítulo, julgo que será melhor acerto, do que afirmar precisamente o número das boiadas, porque nem os mesmos marchantes, que são tantos e tão divididos por todas as partes povoadas do Brasil, o podem dizer com certeza; e, dizendo-o, temo que não pareça crível e que se julgue encarecimento fantástico.

Da condução das boiadas do sertão do Brasil; preço ordinário do gado que se mata e do que vai para as fábricas.

Constam as boiadas que ordinariamente vêm para a Bahia de cem, cento e cinqüenta, duzentas cabeças de gado; e, destas, quase cada semana chegam algumas a Capoame, lugar distante da cidade oito léguas, aonde têm pasto e aonde os marchantes as compram; e em alguns tempos do ano há semanas em que, cada dia, chegam boiadas. Os que as trazem, são brancos, mulatos e pretos, e também índios, que com este trabalho procuram ter algum lucro. Guiam-se indo uns adiante cantando, para serem desta sorte seguidos do gado, e outros vêm atrás das reses, tangendo-as, e tendo cuidado que não saiam do caminho e se amontoem. As suas jornadas são de quatro, cinco e seis léguas, conforme a comodidade dos pastos aonde vão parar. Porém, aonde há falta de água, seguem o caminho de quinze e vinte léguas, marchando de dia e de noite, com pouco descanso, até que achem paragem aonde possam parar. Nas passagens de alguns rios, um dos que guiam a boiada, pondo uma armação de boi na cabeça, e nadando, mostra às reses o vão por onde hão de passar.

Quem quer que entrega sua boiada ao passador, para que a leve das Jacobinas, v. g.,até a Capoame, que é jornada de quinze ou dezasseis até dezessete dias, lhe dá por paga do seu trabalho um cruzado por cada cabeça da dita boiada; e este corre com os gastos dos tangedores e guias; e tira da mesma boiada a matalotagem da jornada. De sorte que, se a boiada constar de duzentas cabeças de gado, dão-se-lhe outros tantos cruzados, se com todas chegar ao lugar destinado. Porém, se no caminho algumas fugirem, tantos cruzados se diminuem quantas são as reses que faltam. Aos índios que das Jacobinas vêm para Capoame se dão quatro até cinco mil réis, e ao homem que com seu cavalo guia a boiada, oito mil réis. Sendo as distâncias maiores, cresce proporcionadamente a paga de todos. E, por isso, do rio de São Francisco acima, vindo para Capoame, alguns dos que tomam à sua conta trazer boiadas alheias querem seis ou sete tostões por cada cabeça, e mais, se for maior a distância.

Uma rês, ordinariamente, se vende na Bahia, por quatro até cinco mil réis; os bois mansos, por sete para oito mil réis. Nas Jacobinas vende-se uma rês por dous mil e quinhentos até três mil réis. Porém, nos currais do rio de São Francisco, os que têm maior conveniência de venderem gado para as minas o vendem na porteira do curral pelo mesmo preço que se vende na cidade. E o que temos dito até aqui das boiadas da Bahia, se deve entender com pouca diferença das boiadas de Pernambuco e do Rio de Janeiro.

Por André João Antonil (1646-1716) no seu livro ‘Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas’, publicado em 1711. Compilação e edição  de Leopoldo Costa.

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