Há gosto para tudo. Uns preferem carnes sem gordura, como os paulistas e cariocas, enquanto outros, como os gaúchos, não admitem que se remova a gordura externa de um assado. Muitos as pedem ao ponto e há os que nem podem olhar quando apresenta cor rosada. Das poucas unanimidades, quando se discute a carne, é que deve ser macia. Garanto que você nunca ouviu alguém dizer: "Comi uma carne hoje, no jantar, uma delícia, dura feito pedra!". Tudo isso porque nossa referência em geral é a carne grelhada. Assim, quando se fala em carnes duras e macias, subentendemos tratar-se de bife, pois para cozidos e até para assados não existe carne dura, já que no seu preparo a maciez sempre pode ser alcançada.
Importante deixar claro que temos em mente sempre carnes obtidas de animais sadios, nem muito novos, nem muito velhos, digamos de 24 a 30 meses.
O bife, por sinal, é responsável por um dos maiores mal-entendidos da mesa brasileira - a história da carne "de primeira" e da carne "de segunda". De uma vez por todas (espero): não existe esse negócio de carne "de primeira" e "de segunda". O que estabeleceu essa terrível discriminação foi a paixão brasileira pelo bife. Por isso mesmo, as carnes macias e próprias para bife subiram à categoria "de primeira", enquanto o resto foi desqualificado para a categoria "de segunda". Nossa predileção forçou um corte longitudinal e transversal na mente da população, de maneira que no Norte ou no Sul, na classe A ou na classe E, todos se lembram do suculento bife com água na boca. Em conseqüência, desprezamos todo os outros preparos, que poderiam privilegiar os tais cortes "de segunda", quando na verdade o que existe - e muito - é cozinheiro de segunda, na mão do qual toda carne acaba resultando em um prato inferior.
Ilustro essa afirmativa lembrando que um dos meus pratos prediletos é o ossobuco, nada menos que o músculo cortado com osso. E se músculo é chamado carne "de segunda", imagine só o osso. Claro que ossobuco só se transforma em prato de primeira quando preparado por cozinheiro de primeira.
Aproveitando, anote uma dica para o final do preparo do ossobuco. A receita clássica começa passando sal e pimenta-do-reino e empanando as fatias em farinha de trigo. Frita-se em panela de fundo largo e acrescenta-se caldo de carne para cozimento. Agora vem a dica. Quando estiver quase macio, prepare em um pilão a seguinte mistura miraculosa: junte um dente de alho limpo com uma colher (sobremesa) de salsinha picada, uma colher (sobremesa) de raspa de casca de limao e três 'alici'. Soque bem até que se transforme em uma pasta bem homogênea. Coloque essa mistura no canto da panela (lembrese bem, é na hora de servir, para que não perca o aroma) e misture mexendo a panela. Nunca mexa com colher de pau, para não correr o risco de separar a carne do osso. Essa pastinha diluída no caldo deixará o molho inesquecível.
Vamos aproveitar: para conhecer melhor o que se pode fazer com ossos (que custam pouquíssimo, quando custam). Pergunta: qual o melhor osso para caldo de sopa? É o osso com tutano? Não. Para caldos usados como base na preparação de molhos e sopas, os melhores ossos são aqueles com grande porosidade. O de costela ou o de alcatra, por exemplo, porque transferem muito sabor e pouca gordura. Para reduzir a gordura ao mínimo e ainda conseguir um sabor especial, recomenda-se assar bem os ossos antes de colocá-los na panela. Assando, derretemos grande parte da gordura do osso e, ao mesmo tempo, acrescentamos cor e sabor inigualáveis ao caldo. Ainda, os ossos entram quentes na panela junto com o caldo em ebulição, o que é igualmente desejável. Quanto ao osso com tutano, é uma delícia, mas pouco acrescenta ao caldo.
Conheço duas ótimas maneiras de se aproveitar o tutano. Primeira: cozinhe o osso com tutano em caldo de carne por alguns minutos, ou até estar inteiramente cozido. Retire o tutano do osso, recoloque no caldo para que não esfrie.(Para retirar o tutano do osso, é preciso observar com atenção. Repare, na fatia de osso com tutano, que de um lado o furo do osso é maior do que o outro. Coloque o lado menor para cima e o maior para baixo. Dê uma batidinha, para ajudar a soltar. O tutano escorregará no prato.) Corte em fatias finas e coloque por cima de torrada ou pão italiano.Uma pitadinha de sal e outra de páprica picante. Experimente! Agora, a segunda maneira de aproveitar o tutano, valorizando nosso herói nacional, o bife. Retire o tutano do osso cru, corte com cuidado em fatias de 4mm a 5mm. Coloque sobre uma assadeira pequena, dê uma salgadinha e polvilhe com salsinha picada. Leve a assadeira ao forno quente (em torno de 200°C/ 220°C) por alguns minutos. O bife, estando pronto, deve ser servido imediatamente e, sobre cada fatia, uma lamina de tutano quente. Duvido que você resista. Ainda bem que não existe osso de segunda!
Fonte: Revista Gula de novembro de 1995 como 'A Falsa Hierarquia' editado e incluído imagens por Leopoldo Costa
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