Desde que Sebastião da Rocha Pita, na sua ''História da América Portuguesa'', relatou a saga de Palmares, o fantasma da rebelião negra inscreveu-se no centro da visão de mundo das classes dominantes e, por contraste, daqueles que se lhes opunham. Mas passou-se muito tempo para que a historiografia reconhecesse na polarização senhor-escravo o eixo organizador da formação da sociedade brasileira, ainda que, para os homens que fizeram essa história, a centralidade dos conflitos daí resultantes tenha estado sempre muito presente.
O caráter tardio do interesse dos historiadores pelo papel do escravismo na formação social brasileira, para além do perturbador (para os conservadores de sempre) fenômeno da miscigenação, é, em si mesmo, problema a demandar maior reflexão. Mas é confortador reconhecer que a produção do último quartel de século, vasta e diversificada, vai para muito além do polêmico balanço-manifesto que lhe dedicou Jacob Gorender em 1990 (1).
Dentre as diversas formas de conflito, nas quais se efetiva a resistência escrava no Brasil, a menos estudada sistematicamente é a que resultou na formação dos quilombos. E isso não se deve ao acaso. A epopéia palmarina, pela sua escala e poder simbólico, tem sido erigida em mito e paradigma, configurando a pré-noção de quilombo como forma de organização paraestatal de enfrentamento do sistema escravista. A história dos quilombos deveria ser a história de grandes embates, de resistentes irredentos, da construção de alternativas gerais para a iniquidade do sistema escravista, o que, pelo menos por enquanto, não emerge da documentação conhecida.
Tudo indica que se tratou de erro de perspectiva, e um dos grandes méritos de ''A Liberdade por um Fio'' é insistir no direcionamento da perquirição para o lugar certo: o da história, e não do mito. Dos 17 estudos que formam o livro aflora a correção metodológica já anteriormente trabalhada principalmente por Reis, cuja aparente simplicidade resulta em elaboradas operações metodológicas, impossíveis de serem desenvolvidas sem a correspondente pesquisa documental. Reis (e não somente ele) tem insistido na necessidade de se abandonar o viés simplista que antepõe o mundo dos senhores ao dos escravos; concomitantemente, avança na crítica à vertente historiográfica que postula a harmonia paternalista do escravismo brasileiro, relegando, por esse meio, as formas de resistência escrava à categoria de desfunções isoladas.
Os estudos que formam o volume revelam a considerável variedade de recursos teóricos de análise, assim como a multiplicidade de centros de interesse dos pesquisadores que se debruçam sobre o escravismo brasileiro. A isso soma-se uma grande variedade de recortes temporais, espaciais ou temáticos que, longe de resvalar para o ecletismo ou para o fragmentário, acaba por compor um painel que demonstra a imperativa necessidade de considerar a resistência escrava como variável constitutiva da sociedade brasileira. O que ressalta da obra é que não se trata, apenas, de reconhecer que ''onde houve escravismo, houve resistência'', mas de mostrar a multiplicidade das formas desta, já que é nesta diversidade, e na sua decorrente articulação com as formações sociais particulares das quais eram constituintes, que reside o cerne da história da gênese da sociedade brasileira.
Ainda que não se trate de uma história ''dos'' quilombos, mas, mais apropriadamente, de histórias ''de'' quilombos lacunar, portanto, o painel apresentado é de grande envergadura. Perpassa três séculos de história, do XVII ao XIX, em cenários tão díspares quanto as periféricas charqueadas sulinas, os remotos norte amazônico e extremo oeste, passando pelos eixos do que era o Brasil em formação em cada um dos momentos contemplados, trate-se da Bahia, de Pernambuco, de Minas Gerais ou do Rio de Janeiro. E retoma Palmares, despojado agora dos mitos, e base para novas indagações na esteira de achados arqueológicos que, se ainda não sustentam uma revisão radical do seu significado, apontam na direção de um fenômeno de complexidade bem maior do que até agora se tem admitido.
Mas a diversidade se manifesta também nos objetivos particulares de cada capítulo, o que é inevitável em se tratando de um conjunto de historiadores com trajetórias marcadamente diferentes. Nota-se que cada qual, à sua maneira, lançou mão de material de pesquisas em andamento, na maior parte dos casos longamente maturadas, para a elaboração de seu capítulo. E percebe-se que a contribuição de cada estudo particular para a qualidade do conjunto tem estreita relação com a centralidade do problema da resistência ao escravismo para o projeto historiográfico de cada um dos autores. E, mais do que isso, aflora com nitidez a imediata relação entre a qualidade dos resultados e a consistência da pesquisa documental que lastreia cada narrativa particular.
Ainda que cause estranheza o fato de alguns capítulos resvalarem para um certo maneirismo historiográfico (''Palmares Como Teria Sido'', por mais imaginativo que seja, conflita com a radicalidade historiográfica dos organizadores, enveredando para um exercício de inteligência que estaria melhor contemplado num ''paper'' de seminário acadêmico), o conjunto traduz-se num magnífico painel da violência constitutiva e coesiva da sociedade escravista em cada etapa de sua vigência.
O que se percebe, por meio do estudo das múltiplas práticas quilombolas, dispersas no tempo e no espaço, é que, a partir do estudo destas, desvendam-se tanto complexas estratégias de sobrevivência e liberdade quanto variegadas tessituras de interesses, negociações e alianças, envolvendo escravos, libertos e homens livres, cobrindo o todo do espectro cromático das epidermes, restaurando esta história, que é a do Brasil, como história de homens e não de heróis.
Porque eram tidos por quilombolas tanto os punhados de escravos fugidos que, três ou quatro, se refugiavam nas matas subtraindo-se do rigor do cativeiro para, pouco tempo depois, ou por falta de alternativa, ou por terem sido recapturados, voltarem ao serviço de seu senhor, quanto o eram aqueles que, para escaparem da violência senhorial, acolhiam-se sob a proteção de outro que lhes dispensasse tratamento melhor e, eventualmente, pagasse por seus serviços, caso dos eventos no Oitizeiro, no sul da Bahia. E quilombolas foram, também, os construtores de complexas estruturas societárias como Palmares, ou aqueles que, liderados de Cosme Bento das Chagas, no Maranhão, envolveram-se na Balaiada, pelo que Cosme foi executado em 1842.
Mas às práticas quilombolas, como às de qualquer outro tipo de resistência, correspondiam outras que conformam outra regularidade histórica a organizar a diversidade do painel que o livro oferece ao leitor.
Trata-se do esboço da espantosa eficácia das classes dominantes na administração de suas contradições internas, condição da reiteração ampliada de seu domínio no interior de uma sociedade cuja base estava permanentemente sujeita à erosão por força da resistência pontual do escravo e de seus aliados. Emerge de tudo o que é apresentado a gigantesca vacuidade do mito do flexível paternalismo benevolente da elite luso-tropical no trato das contradições do escravismo. Esta flexibilidade é real, porém radicalmente subordinada aos interesses da dominação senhorial, que se percebe mais ameaçada por conflitos internos do que pela ameaça dos dominados.
A história dos quilombos revela, na sua longa trajetória de sangue e sofrimento, e mesmo na história das vitórias tardias e parciais, quando o colapso do escravismo já se anunciava irremediável, tanto a constância do anseio de liberdade, quanto a reiteração perseverante do poderoso instinto de sobrevivência das classes dominantes brasileiras, capazes de recomporem sua coesão a qualquer preço, ao menor sinal de ameaça.
Nota:
1. Gorender, J. - ''A Escravidão Reabilitada'', São Paulo, Ática, 1990.
Autoria do professor István Jancsó (falecido em 23/3/2010) publicado na Folha de S. Paulo de 14 de junho de 1997, fazendo a crítica do livro 'Liberdade por Um Fio' da Companhia das Letras, organizado por Flávio dos Santos Gomes e João José Reis. Editado e adaptado para ser postado por Leopoldo Costa.
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