10.04.2011

A PARTEIRA NO BRASIL IMPERIAL


No século XIX, quando uma parteira saía para trabalhar, quase sempre havia um luto: ou morria a mãe ou morria o bebê.

Talvez o pavor do parto tenha levado as senhoras a ser mais tolerantes na aceitação dos filhos adulterinos.
A transmigração de 1808 trouxera, além de outras incógnitas, um problema propriamente vital para a monarquia. Podiam os membros da corte portuguesa, os burocratas reinóis, suas famílias, seus filhos recém-nascidos sobreviver nos trópicos? Com efeito, a data marca o início da primeira migração rápida, densa e contínua de europeus para uma cidade tropical.
Nada parecido havia ocorrido antes nas Américas e muito menos na África ou na Ásia. Cupim, mofo e insetos, pululando em muito maior quantidade e variedade do que na Europa, atacavam os móveis, os livros, as roupas e os homens. Disseminadas pela mosquitada e as chuvas de verão, as febres alastravam-se pelo centro do Rio, já bastante povoado e com poços contaminados ou salobros. Malgrado os vários riachos, a falta de água potável constituía um problema crônico na cidade, obrigando, desde 1670, as autoridades a promover a construção do aqueduto da Lapa.
Com o verão, tudo piorava, na ausência de uma rede de esgotos que só começaria a ser construída em meados de 1860. Até essa data, e mesmo depois dela, os escravos encarregados de levar os dejetos domésticos até as praias, e por isso chamados tigres (muito provavelmente por causa da cor tigrada com que a matéria fecal sujava seu corpo), continuaram ativos na cidade. No Recife, os tigres só desapareceram em 1882.
Ao longo do século XIX, quem dançava no Rio em fevereiro e março era a morte, a Grande Ceifeira. Febres intermitentes ocorrem na primeira metade do século, e a febre amarela torna-se endêmica a partir de 1850. Surtos de cólera e varíola também fustigam o império nos anos 1850/60. Com o início da navegação regular a vapor, nos anos 1840, o tempo das viagens encurta, dificultando a descoberta, e a quarentena nos portos, de indivíduos embarcados e infectados por doenças contagiosas ainda incubadas.
O fenômeno também teve efeitos graves na Bahia, cujos habitantes conheceram uma alta mortalidade na década de 1850. No mesmo contexto, o povo de Recife desfilava com a estátua de São Roque, o "advogado da peste", enquanto penitentes flagelavam-se no meio da rua. Todas as províncias acabaram sendo atingidas por essas pestilências.
O ambiente epidemiológico da corte levou a família imperial a tornar regulares, a partir de 1847, os veraneios em Petrópolis, vila promovida a cidade dez anos mais tarde em meio a uma febre de construções. A morte na tenra idade dos dois herdeiros do imperador, Afonso (1845-47) e Pedro (1848-50), dava novos foros de notoriedade ao ambiente pestilencial da corte.
Nesse contexto, Petrópolis surgia como uma solução de sanitarismo urbanístico, como uma medida profilática em benefício da família real e da elite da corte: dado que era impossível sanear o Rio de Janeiro, no verão, tempo de todos os perigos, o imperador e seus próximos batiam em retirada, mudavam-se para a montanha. No meio disso tudo, no ano inteiro, havia dois grupos de alto risco, unidos pela mesma triste sina: os nascituros e as parturientes. Ambos dependentes do talento e da improvisação das parteiras.
Durante o período colonial e no Primeiro Reinado, as parteiras chamavam-se "aparadeiras".
Em seguida, seu nome mudou para "assistentes", sem que se alterasse seu precário ofício, relegado a pretas velhas e a "curiosas". Num país desprovido de tradição camponesa, num centro como a corte, cidade de migrantes transplantados da Europa, da África e das outras províncias brasileiras _uma migração majoritariamente masculina, não existia a cultura tradicional das parturientes, transmitida noutras partes, ao longo das gerações, das avós, das tias e das mães para as filhas.
Cultos ligados à proteção do parto Nossa Senhora do Amparo, Nossa Senhora da Luz, Nossa Senhora da Glória revelam o temor diante do risco de morte no momento do nascimento. Aliás, as normas canônicas que vigoravam na colônia e no império determinavam a obrigatoriedade da confissão em três ocasiões precisas: antes do parto, na Quaresma e na extrema-unção.
Entre uma data fixada pelos dias do calendário, a Quaresma, e outra, a extrema-unção, fixada pela inexorabilidade do destino humano, a confissão compulsória das parturientes dá a medida dos perigos que rodeavam os partos. Tanto para as mães como para os recém-nascidos, frequentemente vitimados pelo tétano umbilical, o "mal de sete dias".
Dado que de seu ofício tratava tanto da vida como da morte, as parteiras tinham um sinal lúgubre pintado na frente de suas casas uma cruz preta  indicativo de sua profissão. Quando uma "aparadeira" saia para trabalhar, quase sempre havia um luto: ou morria a mãe ou morria o bebê. Diante da frequência dessas mortes, Gilberto Freyre observou o culto dos "anjinhos", dos cadáveres enfeitados dos recém-nascidos num funeral quase festivo, como uma representação destinada a sublimar o choque emocional sofrido pelas mães e os pais. Mas esse é apenas um lado de um drama que tinha duplo aspecto.
Além das formas já assinaladas de culto mariano, aquilo que não aparece, nem se pode medir, é o pânico das mulheres confrontadas à perspectiva da própria morte durante a gestação, o parto e o puerpério. Talvez mas é apenas uma suposição, o pavor do parto tenha levado as senhoras a ser mais tolerantes na aceitação dos filhos adulterinos de seus maridos. Face à pressão marital e familiar para alongar a prole, a acolhida do filho que o marido tivera alhures podia representar, para as senhoras das casas-grandes e dos sobrados, um vexame de consequências infinitamente menos graves do que o risco mortal de uma nova gravidez. Como no caso do aleitamento materno, o debate sobre os cuidados pré-natais toma outro rumo quando envolve o escravismo.
Na Europa ocidental ocorre, durante o século XIX, uma progressiva medicalização das doenças em detrimento das práticas não-médicas tradicionais. Pouco a pouco, esse processo transfere-se para o terreno das enfermidades infantis e femininas mais correntes no Brasil. Na Academia Imperial de Medicina organizam-se, em 1846, debates sobre a mortalidade infantil no Rio de Janeiro, dando lugar aos estudos que o médico Pereira Rego, depois barão do Lavradio pioneiro da medicina tropical e do sanitarismo no império, publicará em seguida nos "Annaes de Medicina Brasiliense".
Novos livros de anatomia difundiam um conhecimento mais preciso do corpo humano. Cheio de ilustrações sobre veias, ossos e músculos, o "Atlas Completo da Anatomia do Corpo Humano", do doutor Bock, da Universidade de Leipzig, fora traduzido para o português e dedicado à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Manuais sobre a gravidez e o parto são traduzidos ou diretamente escritos para os leitores brasileiros. O cearense Joaquim Alves Ribeiro, doutor em medicina pela Universidade de Harvard, redigiu "O Manual da Parteira...em Linguagem Familiar" (1861). Incluído no catálogo de venda por correspondência da editora Laemmert, o livro "Felicidade do Amor e Hymeneo" (1871), do doutor Mayer, traduzido do alemão, propunha-se a ir mais longe, dando conselhos sobre a "arte de procriar filhos bonitos, sadios e espirituosos e conselhos úteis nas relações sexuais".
Notícias na imprensa anunciavam a chegada de médicos e remédios europeus destinados à clientela feminina. Um dos primeiros a exercer a especialidade, o médico francês Chomet, formado nas faculdades de medicina de Paris e do Rio e autor de vários livros sobre o assunto, tratava as "moléstias das mulheres e das vias genito-urinárias... tão comuns e tão rebeldes no Brasil". Um homeopata dava consultas sobre "moléstias venéreas antigas ou recentes". Anúncios de remédios e médicos indicam que as doenças venéreas proliferavam pelo império. Mas o assunto permanecia tabu no seio das famílias.
Gonçalves Dias, intelectual ilustrado e viajado, já tinha sífilis diagnosticada em 1852, quando casou com a filha de um médico da corte. Seu casamento entortou, ele trocou correspondência íntima com o sogro, separou-se da mulher, mas, na correspondência familiar, não há referência sobre sua grave enfermidade ("os testículos me vão crescendo demasiadamente", escreve ele no seu diário em 1862). É de crer que o doutor Chomet, e a generalidade dos médicos do império, encontrasse intransponíveis resistências paternas e maritais no atendimento clínico das moças e das senhoras.
Na verdade, a medicalização só penetra na intimidade feminina e no recesso dos lares oitocentistas depois que o doutor adere ao segmento parafamiliar tradicional, tornando-se médico e compadre, cheio de afilhados entre a prole de seus clientes. De qualquer modo, o prestígio dos médicos afirmava-se, inclusive, face à nobreza factícia da corte. No começo dos anos 1860, um processo opôs o visconde do Souto _banqueiro que iria à falência levando de roldão centenas de depositantes  ao seu médico particular, o doutor Bompani, que recorrerá à Justiça para receber os honorários que lhe eram devidos pelo visconde.
O "Jornal do Commércio" comenta o processo: "O sr. visconde do Souto continuou a pensar que na sua opulência esmagaria o médico. Mas não lembrou que a ciência não se mercadeja com esses títulos pomposos, porém vãos... que são olhados com perfeita indiferença pelas naturezas superiores que procuram as honras da ciência e somente essas". Ao longo dos anos, a presença passageira nos navios ou permanente nos consultórios de médicos americanos e europeus, ao lado dos debates das faculdades do Rio e da Bahia, liberou a medicina brasileira da estreiteza do ensino coimbrão, dando lugar a uma heterodoxia médica que contrapunha-se à heterodoxia social e cultural da corte. Como no resto do império, cultuavam-se certos santos para a cura de doenças específicas. São Brás, contra as doenças da garganta, Santa Luzia, dos olhos, São Sebastião, contra as epidemias da varíola, São Bento, contra o veneno das cobras.
Mario de Andrade, depois seguido por Sérgio Buarque, deu destaque, num ensaio luminoso, à utilização no Brasil de remédios feitos de excrementos. Prática terapêutica quase toda oriunda da medicina popular européia. Na corte, teorias e experimentos médicos tinham livre curso de permeio às terapias tradicionais. Certo doutor Santos publicou, em 1838, na "Revista Médica Fluminense", os resultados de uma experiência inédita: fizera uma cascavel picar um negro leproso para estudar os efeitos do veneno da cobra na evolução da doença. Mas o experimento fracassou porque o doente morreu em 24 horas.
Os problemas mais gerais de saúde pública punham todos em risco e geravam debates que a imprensa seguia atentamente e repercutia no resto do império. O médico Pereira Rego era o redator-chefe da principal revista médica do país, publicada por Paula Brito, importante editor da corte. Aproveitando a ansiedade gerada pela epidemia de febre amarela, trazida em 1849 por um navio vindo de Nova Orleans, Paula Brito faz publicidade de sua revista médica: "Febre Amarela - A Questão Científica entre os Srs. Drs. De Simoni, Carvalho e Pereira Rego Continua nos Annaes de Medicina Brasiliense". Terá sido essa curiosidade impositiva, essa heterodoxia médica necessária, vital no ambiente epidemiológico da corte, que facilitou a rápida divulgação da homeopatia no império. Não só na corte e nas principais cidades marítimas, como também na nova fronteira agrícola. Eram homeopatas dois dos cinco médicos que clinicavam em Campinas em 1857.
Geralmente humanistas, e até socialistas, médicos e farmacêuticos homeopatas atendiam gratuitamente os doentes pobres, propondo fazer no Brasil "novos matusaléns... e concorrendo para o bem geral da humanidade", como proclamava um anúncio da Botica Central Homoepathica, drogaria e centro de divulgação da homeopatia. O farmacêutico da botica assegurava dispor não só das tradicionais plantas curativas européias, como também de "uma preciosa coleção de todas as plantas brasileiras". Por meio da homeopatia e da valorização da fitoterapia tropical, a medicina científica européia vinculava-se à medicina popular indígena e afro-brasileira. Vínculo que terá contribuído para popularizar no país esse novo sistema terapêutico.
Paralelamente, aparecem os manuais médicos dirigidos aos fazendeiros e versando sobre o tratamento dos escravos. Mas aqui prevalece a peculiaridade brasileira, e os preceitos médicos assumem um caráter escrachadamente mercantil.
Diante da cessação do tráfico negreiro prevista desde os tratados anglo-portugueses de 1810 assinados no Rio e efetivada em 1850, os autores exortam os senhores a proteger a saúde de suas escravas grávidas a fim de garantir a reprodução de seu investimento. "As negras que acabam de parir, isto é, que acabam de aumentar o capital de seu senhor, não são sempre tratadas... com as atenções que seu melindroso estado requer", registrava o "Manual do Fazendeiro ou Tratado Doméstico sobre as Enfermidades dos Negros Generalizado às Necessidades de Todas as Classes" (1835), do doutor Imbert, médico francês clinicando na corte. Tentando juntar a filantropia leiga dos reformistas europeus aos interesses bem entendidos dos escravocratas, o doutor Imbert esboça um "plano filosófico, moral e higiênico, próprio para por ele se dirigir pela maneira que se deve presumir mais filantrópica e mais vantajosa, um estabelecimento agrícola contendo grande número de escravos".

Autoria de Luiz Felipe de Alencastro extraido do livro "Vida Privada no Brasil-Volume 2" organizado por Luiz Felipe de Alencastro e Fernando A. Novais, Companhia das Letras, São Paulo,1997. Editado para ser postado por LC.




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