11.17.2011

A CARNE NA HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO



A CARNE E O PÃO

Durante toda a Antiguidade, da época dos poemas homéricos ao Império Romano, a civilização mediterrânea é o mundo do pão ou, pelo menos, dos cereais e dos alimentos que servem para preparar as papas, 0 pão e os bolos. Afirmou-se que a alimentação na época micênica- portanto, pré-homérica - era diferente: os cereais teriam tido, apenas, um papel secundário em uma economia essencialmente pastoril, e a alimentação teria sido mais variada e mais rica em carne.

Essa hipótese foi, todavia, abandonada; nenhuma pesquisa recente a confirmou. Assim, com exceção dessa época arcaica e menos conhecida, a alimentação greco-romana era, muito provavelmente, à base de cereais  e a carne tinha um papel secundário. Homero chama os homens de "comedores de pão" e os contrapõe aos deuses, que vivem de néctar e de ambrosia, substâncias um tanto misteriosas para nós. O ciclope Polifemo, ser monstruoso e antropófago, alimenta-se de carne e de laticínios e ignora o uso do vinho, a bebida humana por excelência. Essas diferenciações serão encontradas em toda a cultura antiga. Embora esteja em segundo plano na alimentação e na economia do mundo mediterrâneo antigo, a carne reveste-se de uma importância ideológica e simbólica capital. Trata-se, com efeito, de um alimento excepcional que necessita que se mate um animal.

Reservada às grandes ocasiões, às festas que servem para estreitar os laços sociais e para pôr em contato o mundo humano e os deuses, a carne está presente nos momentos fundamentais da vida social. De resto, quando não está ligado ao sacrifício, o consumo de carne depende de uma atividade "a parte" na vida social da Antiguidade: a caça.


CARNES PROIBIDAS

Quais são os animais proibidos? Por que eles são considerados não-comestíveis? O estabelecimento dessas regras - difundidas sobretudo, segundo as fontes gregas e latinas, durante os períodos arcaicos - determina sistemas econômicos e alimentares em que os animais domésticos não são criados por sua carne. Já no fim do longo período da Antiguidade caracterizado por esse tipo de organização, Cícero elabora, em ua célebre passagem do 'De natura deorum', uma classificação em que  se reconhece a influência da sabedoria pitagórica. Assim, enquanto o porco é o único animal destinado ao consumo, o boi e o carneiro, que são vistos de forma radicalmente diferente, não podiam ser mortos e consumidos. Essa interdição atende a considerações pragmáticas, principalmente no que diz respeito ao boi, uma vez que Cícero o apresenta como o companheiro de trabalho do homem.

É evidente que o carneiro era criado por causa de sua lã e boi para puxar o arado ou a carroça; poucos sabem, em compensação, que era proibido matar o boi de lavoura - o que afirmam muitas fontes gregas e latinas- e que essa proibição era tão severa que, segundo vários autores, as antigas leis atenienses puniam o bovicídio tão dura mente quanto o homicídio. Essa tradição é confirmada por muitos textos da literatura antiga, que classificam o boi como animal humano, assim como pelos restos de ossos encontrados em escavações arqueológicas na Grécia e na costa tirrena da Itália, que revelam que  essas populações matavam e comiam poucos bovinos e, de qualquer forma quase nunca animais jovens.

Algumas fábulas de Esopo são particularmente representativas dessa literatura sobre a "humanidade" do boi . Assim, na vigésima fábula, os cães fiéis abandonam seus donos quando estes, premidos pela fome, acabam por matar e comer seus bois de lavoura. Todavia, essa matança é excepcional e traumatizante, como comprovam O ritual e a mitologia que envolvem as raras circunstâncias em que o sacrifício é permitido. Conhecemos três exemplos desses sacrifícios anuais - verdadeiros paradoxos religiosos e econõmico  - , característicos das cidades gregas de Lindo, na ilha de Rodes de Tebas e de Atenas. Nos três casos, o sacrifício de um ou de bois, tirados da carroça ou do arado, é realizado como um ato ritual ambíguo que encena as circunstâncias excepcionais do primeiro ato cruento da mitologia. Esse sacrifício envolve um ritual complexo destinado a purificar a falta do que continua a ser  como um verdadeiro bovicídio ('bouphonia').

Se o abate e o consumo do boi.equivalem a um crime para os autores gregos e latinos, em compensação, os gregos, e mais tarde os romanos, sacrificam e comem mais facilmente outros tipos de bovinos, embora essa prática não devesse ser muito comum por motivos econômicos evidentes, Duas passagens de Heródoto mostram que os egípcios do século V a.C., considerando a vaca um animal sagrado, condenam os gregos que são seus consumidores impuros: "Todos os egípcios sacrificam bois (...) e bezerros; mas eles não têm o direito de sacrificar as vacas, porque elas são consagradas a Ísis. Em outra passagem, ele precisa: "Um egípcio ou uma egípcia jamais beijariam os lábios de um grego, nem usariam a espada de um grego, nem um espeto nem um 'lebes', nem saborevam a carne de um boi, ainda que puro, que tivesse sido cortado com uma faca de sacrifício (machaira) grega".

Uma outra interdição alimentar da Antiguidade confirma essa relação direta entre o consumo ritual da carne e a matança do animal, que está na origem dessas regras. Trata-se da repúgnância, comum aos mundos grego e romano, pela carne de animais que não tenham sido mortos pelo homem.
O grego denomina-as 'kenebreion', 'thneseideion'. 'nekrimaia kreata', e essa terminologia, que se refere à morte, corresponde exatamente à terminologia latina e neolatina, em que essas carnes são designadas pela palavra 'morticinae', ainda hoje, na campanha toscana, a carne de animais mortos por doença, velhice ou acidente chama-se 'morticine'. A proibição - ou o asco ligado a seu consumo existia nas culturas próximas, como, por exemplo, nos textos bíblicos ou no mundo armênio, e se mantém até hoje na Europa.

Mas, se essa recusa em comer animais de que não se sabe a causa da morte se deve, provavelmente, a uma simples razão de higiene, a questão terminológica revela-se, em compensação, mais complexa. A terminologia apresenta sistematicamente essas carnes como provenientes de animais "mortos", como se só estivessem mortos os animais que não tivessem sido mortos pela mão do homem. Nessas culturas, os mamíferos domésticos mortos sem intervenção humana são evidentemente, carniças não-comestíveis. Em compensação, os animais mortos pelo homem podem ser comidos.


OS SISTEMAS SACRIFICIAIS

Durante o período arcaico, o mundo mediterrâneo antigo está sujeito a uma mesma regra: os animais não poderiam ser mortos a não ser no respeito à religião, ou seja, sacrificados. A relação entre a carne como alimento e a prática sacrificial foi estudada" pela escola de Jean-Pierre Vernant e Marcel Detienne, mas está longe de dar conta de todos os valores sociais e religiosos do ritualismo sacrificial, porque  é muito mais complexo do que os especialistas supunham. Para apreender os sistemas sacrificiais da Antiguidade é preciso, antes de tudo, voltar a atenção para os numerosos sacrifícios que não tem uma relação direta com o consumo de carne. No mundo grego, por exemplo, os holocaustos dedicados aos heróis ou relacionados à esfera fúnebre ou ctoniana, em que a vítima era queimada; ou ainda os sacrificios realizados em momentos de crise em que a carne não era consumida, em que se interpretavam as vísceras das vítimas com objetivos divinatórios. Assim, a relação entre práticas sacrificiais e o consumo de carne mostra-se muito menos estreita do que se poderia supor. Se existem sacrifícios sem consumo de carne há também consumo de carne sem sacrifícios. E é este último caso que constitui um verdadeiro problema na Antiguidade sobretudo grega, mas também romana. Em primeiro lugar, na realidade, não há nesse domínio uma fronteira precisa - de um lado, o sacrifício e, de outro, o consumo sem sacrifício -, uma vez que toda matança de um animal seguida de consumo implica que uma parte - mesmo mínima - do animal comestivel seja reservada para os deuses. Assim, os gregos lhes reservam alguns pêlos da cabeça, primícias do animal morto, enquanto na verdadeira 'thusia' (sacrifício), a divindade tem direito a certas vísceras ao sangue, aos ossos e à gordura.

Em segundo lugar, o consumo de carne e o abate de animais só muito progressivamente fogem à esfera fogem a separação acontece sobretudo em Roma, na época imperial e mais rapidamente a oeste que a leste da bacia mediterrânea. Uma inscrição grega encontrada em Pisídia (Anatólia), datando do fim da epoca imperial romana, deixa bem clara a vitalidade da relação que ainda existia entre o sacrifício e o consumo de carne.

Ela foi colocada por um certo Merdon, a quem Zeus Trosos - uma divindade local- tinha tornado mudo porque seus servidores tinham comido 'carne não sacrificada"; Meidon só recuperou a voz três meses mais tarde, um sonh depois de un sonho que o advertiu da falta cometida e lhe indicou como expiá-la, erigindo um monumento em memória do acontecido. Consumir a carne de um animal não-sacrificado ainda é, portanto, considerado um ato culpável nesse documento encontrado em uma distante região oriental do Império.

O sacrifício, de resto, é a expressão da estrutura social e representa um aspecto importante da vida civil, principalmente política. Consideremos, por exemplo, o sistema sacrificial da 'polis' de Atenas entre os séculos V e IV a.C. M. H. ]ameson, baseando suas pesquisas em inscrições e objetos encontrados em escavações, demonstrou que, ao longo dos séculos, o Estado ateniense praticou uma política extremamente precisa: grandes quantidades de cabeças de gado eram compradas para serem sacrificadas durante uma série ininterrupta de festividades públicas; os cidadãos podiam, então, nessas ocasiões, consumir as carnes dos sacrifícios.

Segundo os cálculos de Jameson, cada cidadão obtinha assim dois quilos de carne por ano, em média, o dobro do que as cidades gregas menores destinavam, na mesma época, à prática sacrificial. Tais investimentos eram, evidentemente, muito custosos, uma vez que "alimentar animais e abatê-los para consumir sua carne era muito menos econômico que cultivar cereais para comê-los ou para alimentar o gado leiteiro. Atenas pôde fazer essa opção política enquanto foi próspera".

Há um texto, justificadamente célebre, que pode nos ajudar a esclarecer o significado verdadeiramente político de uma opção como essa. Em 'Athenaion Politeia', obra curta do século V a.C., outrora atribuida por engano a Xenofonte e hoje, por certos estudiosos, a Crítias, lemos que o 'demos' (o "povo") aproveita sacrifícios públicos - assim como outras circunstâncias da vida política - para usufruir de bens e prazeres que, de outro modo, não estariam a seu alcance. Esse pequeno livro é um panfleto reacionário: sob o pretexto de uma crítica ao sistema sacrificial ateniense, seu autor ataca, na realidade, a organização política da Atenas democrática. Essa dupla crítica deixa clara significação da 'praxis' sacrificial ateniense - que Jameson descreve como deliberadamente dispendiosa e até "antieconômica" - e que servia, de fato, para aproximar os cidadãos da vida e da direção da 'polis'.

Cumpre notar que essa prática dispendiosa tornava-se possivel, por sua vez, devido ao imperialismo ateniense , ele próprio expressão da democracia ateniense em política externa. Compreende-se melhor agora por que o personagem do mais abjeto e ridículo demagogo criado por Aristófanes é precisamente um salsicheiro.

Nas prescrições sagradas escritas, trata-se, como foi salientado sobretudo de sacrifícios de ovelhas, enquanto os baixos-relevos votivos representam principalmente, sacrifícios de porcos, e os vasos, oferendas de bovinos.

Essa divisão se explicaria pelas funções diferentes que teriam os documentos e os monumentos. As leis sagradas ou os calendários religiosos dizem respeito aos sacrifícios públicos em que se imolavam principalmente ovelhas, animais de valor intermediário; os baixos-relevos representam sacrifícios "privados" em que se oferecem porcos, os animais menos caros; por fim, os vasos mostram sacrifícios grandiosos e prestigiosos, em que se matam as vítimas mais caras, os bovinos. Essas descobertas podem ser relacionadas com a especificidade das diferentes vítimas: os bovinos são animais mais caros não só porque podem fornecer uma quantidade maior de carne, mas, sobretudo, porque são capazes de trabalhar e são, por isso, companheiros de trabalho do homem nos campos. É por essa mesma razão que, segundo outras fontes e em outros contextos, o boi da lavoura não deve ser sacrificado.


BANQUETE SACRIFICIAL E RECUSA SECTÁRIA

Os sistemas sacrificiais que qdmitem o consumo de uma pane da vítima caracterizam-se, principalmente, pela partilha dos animais sacrificados entre os homens e os deuses e pelo banquete dentro do grupo social.

No sistema ateniense, toda a comunidade dos cidadãos participa privilegiada pelo regime democrático, e até corrompida por este, a acreditar no panfleto reacionário; em outros lugares, o grupo pode se revelar uma comunidade mais reduzida, tal como o 'demos' ático, ou uma família reunida  para um ritual como as núpcias. Assim, depois de separado o que não é destinado aos homens, as partes comestíveis são divididas entre os membros do grupo. As modalidades dessa distribuição variam. Ela é claramente desigual, até hierarquizada, no banquete sacrificial heróico descrito pelos poemas homéricos - em que os melhores têm direito aos melhores pedaços - assim como em algumas partilhas reveladas pela epigrafia. Em uma inscrição muito célebre, porque única, trata-se do sacrifício de um boi à deusa Héstia, na ilha de Cos, que destinava os miolos da vítima aos artesãos da comunidade citadina. Essa segunda distribuição é parcialmente igualitária na Atenas clássica; mas os especialistas ainda discutem esse igualitarismo.

Ao banquete sacrificial, certos grupos ou movimentos religiosos da Antiguidade - em palticular os pitagóricos e, segundo alguns especialistas, o "movimento órfico" - opõem a recusa ao sacrifício animal e ao consumo de carne. Embora se tratasse, também nesse caso, de estratégias com vistas à identidade e à coesão, é pela recusa a participar das refeições à base de carne consagrada da comunidade maior que estes grupos mais restritos e mais coesos resolvem se definir. Essa recusa ao sacrifício simboliza, portanto, uma recusa a matar. Embora manifeste e se justifique, por sua vez, de diversas maneiras, essa recusa em derramar o sangue está sempre ligada a doutrinas cosmológicas e religiosas bem definidas e resiste à visão do mundo comum, em particular à ordem política e cósmica aceita pela maioria da comunidade citadina.

Esses grupos nem sempre estavam em condições de se opor à práticas sacrificiais. É o caso, por exemplo, dessa comunidade pitagóríca, em suas origens, que abrigava, ao lado de membros completamente vegetarianos, um "campeão" da carne, como o olímpico Miron, grande devorador de bovinos e genro do mestre. Esse personagem que, de alguma maneira, representava a outra face da congregação, permitia a esta exercer o poder político no contexto aristocrático da 'poliS'. Grupos de sábios vegetarianos como este existiram durante toda a Antiguidade, da idade clássica aos períodos helenístico e imperial. Na época romana, são eles que criticam unanimemente o sistema do sacrificio cruento. Todavia, é sob os golpes que lhe inflige a nova religião cristã que este acaba por ser abolido ou, pelo menos, por ser seriamente atacado e transformado.


O MUNDO ROMANO

Os romanos também oferecem sacrifícios cruentos e, em certos casos, comem uma parte da vítima quando dos banquetes. Enquanto os gregos oferecem aos deuses os ossos longos, certas vísceras e a gordura que eles queimam no fogo, os romanos reservam para suas divindades uma espécie de mistura de diferentes partes da vítima, que constituem os 'extra', o 'augmentum' e, eventualmente, o 'magmentum'. Como no mundo grego, os ritos sacrificiais romanos são o arcabouço simbólico da vida social, ou antes, política. Enfim, a opçãó de sacrificar certos animais - e portanto, de comer - e a rejeição a alguns outros obedecem a critérios mais ou menos semelhantes aos que vigoram entre os gregos.

O mundo romano apresenta, no entanto, uma novidade com relação ao Mediterrâneo oriental, uma característica que se tornará cada vez mais sensível quando da passagem da República ao Império e, sobretudo, ao Baixo-Império: a importância crescente da carne na alimentação da população, em particular das classes superiores urbanas.

Dois pesquisadores demonstraram que o consumo de carne na Itália aumentou na época do Império romano. Depois de um estudo sobre a presença de estrôncio e de zinco em ossos humanos descobertos em necrópoles italianas e em outros sítios mediterrâneos (Atenas, Constantinopla, Gortina em Creta), concluíram que havia regimes alimentares de alto e médio teores de carne na Itália imperial. Chamando aenção para o fato de que essa situação é "claramente oposta à que mostraram os modelos etruscos ou gregos, na época arcaica, clássica ou helenística, todos baseados em economias alimentares exclusivamente agrícolas, eles propõem uma dupla explicação.

Por um lado, havia, nas grandes cidades economias alimentares "mistas" nas quais os sistemas de distribuição deviam permitir "uma disponibilidade abundante, mas sensivelmente equilibrada, dos diferentes tipos de alimento"; nesse caso, a situação era, pois, muito parecida com a de Atenas na época clássica. Por outro lado, havia uma correlação entre a alimentação com alto teor de carne e economias alimentares "pastoris", que se desenvolvem no fim da Antiguidade nas regiões em que a agricultura é progressivamente abandonada e substituída pela criação de animais. Acrescentemos a esses resultados os relatos dos textos históricos e sobretudo literários latinos, ou, em todo caso da época romana, que, freqüentemente, se referem à carne como sendo um componente importante da alimentação das classes abastadas. Esses testemunhos indicam que o consumo de carne foi-se distanciando do sacrifício cruento, ainda que este se tenha perpetuado ao longo dos séculos como uma prática tanto privada quanto pública.

Pode-se até afirmar que a história da alimentação à base de carne na época cristã - entre o século I e a desagregação do Império - tem dois aspectos divergentes: o consumo de carne se mantém (e até aumenta, em certos casos), enquanto as práticas sacrificiais diminuem progressivamente e tendem a desapare cer em alguns lugares.

A CRISE DOS SACRIFÍCIOS

Embora os grupos vegetarianos e os diversos movimentos que se opõem aos sacrifícios marquem toda a história da Antiguidade, eles não são, porém, responsáveis pelo desaparecimento das práticas sacrificiais. Particularmente forte no final da Antiguidade, o pensamento anti-sacrificial tem porta-vozes tão diferentes como pensadores crisãos como Teodoreto, Clemente da Alexandria e o autor da epístola a Diogneto, filósofos pagãos como Porfírio e judeus como Fílon. Mas é preciso distinguir, com clareza, essa corrente de pensamento da posição defendida pela nova religiosidade cristã, Esta, com efeito, reconhecendo na morte de Jesus e nas celebrações sacramentais ligadas a la, uma realidade sacrificial bem definida, cuja prática e teoria ela defende contra as outras religiões.
Há, nos primeiros séculos do cristianismo, dois testemunhos extremamente significativos sobre esse assunto. Trata-se, em primeiro lugar os escritos de São Paulo (em particular, a epístola aos Coríntios,10), depois um texto célebre conservado por Macário, bispo de Magnésia, atribuído a Porfírio, e que seria uma parte de um hipotético libelo contra os cristãos. Embora tenha chamado a atenção para as semelhanças entre a comunhão proto-eucarística do pão e do vinho - que são respectivamente o corpo e o sangue de Cristo imolado - e as práticas sacrificiais judias e pagãs, São Paulo precisa, todavia, que as diferenças mais acentuadas que as semelhanças, estão relacionadas ao caráter salvador da morte de Jesus.

O pseudo-Porfírio afirma, por sua vez que a fórmula proto-eucarística: "Se não comerdes de minha carne e não beberes do meu sangue, não haverá vida em vós" é, ao mesmo tempo brutal e absurda. Mesmo que esta frase do mestre dos cristãos se revista de um valor "alegórico" e "místico", no entanto, "o odor fétido deste texto, que penetra pelo ouvido, é tão forte que corrompe e pertuba a alma daqueles que o escutam e destrói sua própria significação oculta.

canibalismo - que ele rejeita porque ele próprio é o herdeiro da longa tradição anti-sacrificial dos filósofos gregos, Mas, paradoxalmente, é justamente o caráter do sacrifício cristão, como conjunto de crenças e de ritos, que leva a nova religião a lutar, com êxito, contra os sacrifícios cruentos dos pagãos, não sem ter sofrido ela própria sua influência.

Entre os autores cristãos dos primeiros séculos - Taciano, Eusébio de Cesaréia ou Orígenes - como na epístola aos Coríntios, os sacrifícios pagãos são condenados não porque sejam cruentos ou sirvam para dissimular um desejo puro e simples de comer carne (o que lhes censuram as tradições órficas e pitagórica), mas porque são dedicados a seres maus: os demônios. Segundo esses autores, esses seres malignos não só existem e são de algum modo mantidos vivos pelos sacrifícios que lhe são oferecidos, mas são, também, poderosos. Eles têm o poder de provocar doenças, de possuir os corpos humanos (os dois fenômenos, aliás, se confundem) e de, em seguida, se retirar para restituir a saúde ao doente, depois de terem recebido a oferenda sacrificial e, finalmente, se alimentarem de sangue e de fumaça.

Fazer um sacrifício para um demônio não é, portanto, uma prática vã, porque é o mesmo que agir como os parentes dos reféns que pagam o resgate e alimentam, assim, os raptores. Essa comparação é tirada de fontes cristãs, que chamam os demônios, precisamente, de "bandidos".

É a recusa em fazer sacrifícios aos deuses que define, aos olhos das autoridades imperiais, o comportamento dos cristãos e faz deles ateus. São considerados como 'lapsus' (trânsfugas) os cristãos que optam pelo sacrifício em lugar do martírio, e como mártires aqueles que dão testemunho de sua pertença à nova religião, recusando-se a sacrificar aos deuses; eles são, então, punidos. Bem entendido, os que se recusam a fazer sacrifícios aos deuses abstêm-se de comer a carne dos animais sacrificados, o que tem conseqüências sociais: na Roma imperial, as carnes sacrificiais são, freqüentemente, destinadas à venda e conservadas para um consumo posterior. Assim, uma carta do governador Plínio, o Jovem, mencionando a interrupção e, depois, a retomada da venda das carnes sacrificiais na província oriental de Bitínia, talvez estivesse ligada à difusão do cristianismo e, depois, à sua repressão nessa região. Nesse caso, o cristianismo certamente traz prejuízo ao comércio das carnes sacrificiais e não ao comércio das 'vectigalia' dos templos, como se chegou a aventar, porque, recusando-se a fazer sacrifícios para os deuses, os cristãos perturbam todo um equilíbrio econômico e prejudicam interesses precisos e e consideráveis.

A cura da pitonisa (Ac 16, 16 e seguintes), ou ainda a pregação de Éfeso, quando São Paulo é atacado pelos ourives do santuário de Ártemis (Ac 19, 23 e seguintes) são apenas exemplos limitados, mas significativos dessa situação.

SOBREVIVÊNCIA DOS SACRIFÍCIOS

Enquanto o consumo de carne aumenta e se desvincula da prática do sacrifício à qual esteve ligado por tanto tempo durante  a Antiguidade, os novos ritos sacramentais cristã s afirmam  a primazia do pão e do vinho nessa parte fundamental da liturgia. Esta é a mais evidente herdeira da 'thusia' e reflete, em particular, seus mecanismos comunitários e de redistribuição. A preeminência simbólica da alimentação vegetal - baseada principalmente nos cereais - está estreitamente ligada à natureza do mundo mediterrâneo, ainda essencialmente agrícola a apesar da progressiva, mas parcial, diversificação da alimentação que por sua vez, decorre de uma crise da cultura de cereais. Devido a igação entre as espécies da Eucaristia e a agricultura mediterrânea, a difusão da agricultura - e, em particular, do pão, do vinho e do óleo - será quase sempre associada, durante a alta Idade Média, à difusão do cristianismo entre os pagãos da Europa.

Os cristãos, apesar de não serem vegetarianos, são portadores de um novo sistema sacrificial que exclui o sacrifício animal.


Os autores cristãos pintam os pagãos como sacrificadores e defensores do sacrifício cruento. Assim, Amiano Marcelino descreve o comportamento do imperador Juliano, o Apóstata, restaurador tardio do paganismo, e de seus soldados, nesses termos: Juliano "regou os altares com o sangue de um número exorbitante de vítimas, imolando, às vezes, uma centena de touros, inúmeros rebanhos de variado gado pequeno, pássaros brancos caçados na terra ou no mar; a tal ponto que, quase todo dia, seus soldados se empanturravam de toda essa carne e tombavam vítimas de sua embriaguez: apoiados nos ombros dos passantes, eles saíam dos santuários públicos onde se entregavam a esses banquetes, que melhor seria que fossem reprimidos, e eram transportados através das praças até seus alojamentos".

Esse quadro de desregramento e de embriaguez forma um estranho contraste com o texto de Juliano, o Apóstata, intitulado 'À mãe dos deuses' em que o imperador filósofo, imbuído do pensamento pagão, enuncia as prescrições  alimentares ligadas ao culto de Cibele. Nesse texto condena, por exemplo, o consumo do porco, animal impuro, o que é paradoxal, dada a longa tradição itálica e romana da qual Cícero foi porta-voz.



OS CRISTÃOS DO ORIENTE

A contradição entre a prática sacrificial atribuida ao imperador pagão pelas fontes cristãs e as convicções religiosas e ditéticas que ele próprio exprime em seus escritos é, contudo, menos surpreendente que a sobrevivência dos sacrifícios cruentos no cristianismo, em  particular no cristianismo oriental. Nas civilizações grega, síria, árabe e armênia, o sacramento da Eucaristia mantém ritos como a matança "santificada e a oferenda de animais-fenômeno verificado, também, na Itália e na Europa ocidental. Todavia, a vitalidade do sacrifício cristão dos armênios é excepcional. O mito fundador desse rito encontra-se no 'Cânon de Sahak, o Grande' (século V d.C.): logo depois de ser convertido ao cristianismo por São Gregório, o Iluminador, o rei armênio Tiridates III oferece valiosos presentes aos sacerdotes pagãos, pedindo-lhes que renunciem à idolatria.

Os sacerdotes e seus seguidores confiam então a São Gregório a sua preocupação no que diz respeito ao prejuízo que lhes causaria a abolição dos sacrifícios: as partes da vítima que lhes são entregues são, com efeito, necessárias a sua subsistência. São Gregório responde-lhes que, depois de se batizarem, eles poderão, como sacerdotes da  nova religião, continuar a imolar animais, mas esses sacrifícios serão dedicados ao verdadeiro e único Deus e não mais aos espíritos imundos que eles adoravam até então. Eles receberão as partes das vítimas que lhes eram destinadas, assim como muitos outros pedaços: a pele e a parte direita da coluna vertebral, os membros e a gordura, a cauda, o coração, o pulmão, as tripas com toucinho, costelas, as tíbias, a língua, os beiços, as narinas, a orelha direita e todas as partes "secretas".

Até então eles tinham direito, apenas, à espinha dorsal e à pele, devido à avareza dos que ofereciam o sacrifício e só com muita má vontade cediam essas partes às congregações de sacerdotes pagãos. 'O Cânon de Sahak, o Grande', faz, portanto, remontar a existência de sacrifícios de animais - verdadeira sobrevivência de uma prática pagã - entre os cristãos da Armênia à própria época de sua conversão. Ora, não possuímos provas tão confiáveis da prática desse rito em relação a qualquer outra comunidade cristã. Na Grécia, ao contrário, o do sacrifício de animais na época moderna, 'kourbani', remete ao cruento e ao árabe, portanto, ao mundo islâmico. Contudo, no sacrifício cruento grego ortodoxo a espinha dorsal, a pele, as patas e a cabeça do animal é que são reservadas para o sacerdote, ou seja, as mesmas recebidas pelos sacerdotes armênios; o costume grego acrescenta a essas partes, a omoplata, talvez devido às práticas divinatórias ('scapulomantie').  Sem dúvida, existe uma semelhança entre a seleção das partes destinadas aos sacerdotes na Armênia e na Grécia e, portanto entre esses dois sistemas sacrificiais. Por fim, o costume ritual da Igreja de Roma - comprovado no que diz Z respeito ao século XII pelas 'Ordines XI e XII' de Mabillon - não deriva de práticas sacrificiais antigas; trata-se de uma inOvação medieval, uma vez que esses dois textos contam que o papa e onze outros convivas comem a carne de um cordeiro logo depois da missa de Páscoa, em uma sala da basílica leonina chamada 'Casa Maior'. O bispo de Roma distribui pedaços de carne de cordeiro depois de tê-los benzido. Esse ritual perdurou por muito tempo, mesmo depois que os pedaços de carneiro assado foram substituídos pelos 'Agni Dei', medalhas de cera e bálsamo, com a imagem de um cordeiro, que tinham poderes taumatúrgicos. Não há evidências, em todo esse ritual, de um verdadeiro sacrifício do cordeiro e de sua oferenda no altar.

O que é importante, ao contrário, é a benção, a distribuição e o consumo ritual do cordeiro, fundados na identificação do Cristo com o cordeiro pascal e justapostos - ou melhor, pospostos - à liturgia sacrificial da missa, fundada, por sua vez, no pão e no vinho. Em pleno triunfo da Eucaristia, a função simbólica da carne reaparece para dar um valor particular à liturgia cristã.

Por Cristiano Grottanelli  como 'A Carne e Seus Ritos' no livro 'História da Alimentação', direção de Jean-Louis Flandin & Massimo Montarnari, tradução de Luciano Vieira Machado e Guilherme João de Freitas Teixeira, Editora Estação Liberdade- São Paulo, 1998, Cap.6 p.121-136. Digitalizado, editado e adaptado para ser postado por Leopoldo Costa.

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