11.12.2011

COMPORTAMENTO ALIMENTAR DO BRASILEIRO


O Brasil vai à mesa

Primeira parte de uma pesquisa de Superinteressante sobre o comportamento do brasileiro em relação a sua alimentação.

O gesto trivial de levar um alimento à boca é o primeiro flagrante da saúde do homem, o registro fundamental de sua qualidade de vida. O modo pelo qual funciona uma sociedade dá uma história que cabe num bocado. Eis aí, cru, o placar da competição entre os homens. As nações servem à mesa, entre a plenitude e a fome, a aptidão com que satisfazem a demanda primária da espécie: produzir e pôr ao alcance de todos alimentos em quantidade, qualidade e variedade suficientes para encher o estômago e aquecer o coração. A absoluta banalidade do ato de comer é ainda a síntese de uma das mais complexas dimensões da aventura humana, o produto de uma receita inimitável que mistura relações reais entre pessoas do mundo real com crenças e idéias que transitam pelo imaginário. Uma refeição é feita de alimentos e símbolos.

Ao comprar um pé de couve na feira, pratica-se uma transação racional que faz parte de uma cadeia de acontecimentos igualmente racionais que começaram na horta e vão terminar no prato. Mas, ao comer a couve temperada com alho, óleo, sal e bacon, pratica-se uma escolha tão arbitrária quanto seria comer a couve com mel, creme de leite e queijo suíço, com a diferença de que os costumes autorizam a primeira combinação e abominam a segunda. Claude Lévi-Strauss, o belga de nascimento e francês de biografia que está para as normas sociais como Sigmund Freud para as tramas da paixão, escreveu certa vez que a cozinha de uma sociedade é a linguagem na qual ela traduz inconscientemente sua estrutura. O antropólogo Lévi-Strauss é o autor da célebre fórmula segundo a qual um alimento deve ser não só bon à manger mas também bon à penser: isto é, não só biologicamente, mas também culturalmente comestível.

Pode-se, por tudo isso, conhecer um pouco melhor o Brasil espiando os brasileiros pela verdade de seus hábitos alimentares. Este, como se sabe, é um país que tenta correr atrás do futuro sem descalçar as botas de chumbo da extrema, ostensiva desigualdade entre os seus—uma simples fita métrica descreve o tamanho da desnutrição infantil nos centímetros que as crianças ficam devendo ao padrão internacional, que de outro modo nada as impediria de alcançar. Mais difícil é medir de que maneira costumes e atitudes calibram o tamanho das passadas nacionais rumo à tal modernidade, que deve se expressar também na vida cotidiana de cada qual. Ao identificar traços essenciais do comportamento do povo na constelação de escolhas, situações e atividades que se relacionam com o comer, quem sabe se consigam ao menos algumas pistas apetitosas.Com essa intenção, SUPERINTERESSANTE encomendou à empresa Feedback Serviços de Pesquisa, de São Paulo, um amplo levantamento se não o único, certamente o mais ambicioso já buscado nesse terreno por um órgão de comunicação sobre os brasileiros e a comida. A partir de uma minuciosa listagem de temas elaborada pela revista, a empresa produziu um questionário com nada menos de 65 perguntas e o aplicou a uma amostra representativa da população dos principais centros urbanos. Ao todo, 1200 pessoas foram entrevistadas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Belém. de modo a cobrir o país de norte a sul. A amostra incluiu homens e mulheres de 15 a 65 anos, de todos os níveis de instrução, com renda mensal familiar de dois salários mínimos em diante.

Da fornada inicial de informações saídas da pesquisa, dois resultados sobressaem desde logo. O primeiro indica que as taludas diferenças de renda que separam os brasileiros não se expressam em igual medida quando é servido o rancho de todo dia. Ricos, remediados e pobres costumam consumir o mesmo conjunto básico de alimentos, pinçados de um cardápio por sinal bastante restrito. É claro que os ricos comem mais, melhor e com maior variedade do que os pobres; uns e outros, porém, têm 12. hábitos. 12 alimentares menos distantes entre si do que seria de esperar quando se olha o espantoso tamanho das desigualdades sociais. Neste pais jovem, de cidades ainda mais jovens, onde uma parte da elite econômica—tendo subido faz pouco a rampa da afluência—, ainda não perdeu a memória da vida ao rés-do-chão, a dieta não se presta muito à função de distinguir quem é quem na sociedade.

O segundo resultado a repartir o lugar de honra esculpido pelos números é o de que no Brasil de hoje a celebrada cozinha regional tem sabor de reminiscência. E antes de tudo uma confecção folclórica para turistas. Com poucas exceções, fala-se de ponta a ponta do território praticamente o mesmo idioma culinário. Para o gasto cotidiano sobrevivem somente uns poucos sotaques característicos, como o da mandioca no Norte e Nordeste. A regra alimentar é a da uniformidade, disseminada pelo consumo cada vez maior de comidas industrializadas, adquiridas em estabelecimentos também padronizados, como os supermercados, com o suporte da publicidade via TV.

A pesquisa traz uma revelação perturbadora: 74% dos entrevistados (82% entre os mais ricos) se consideram bem-alimentados. Esse juízo colide com as informações geralmente aceitas sobre o estado nutricional dos brasileiros. De fato, os levantamentos consagrados indicam que cerca de 30% da população come menos calorias e proteínas do que precisa; que no mínimo outros 10% comem tão pouco que já são desnutridos; e que, entre as crianças até 5 anos, a desnutrição atinge 30%. Na pesquisa, menos de 15% das pessoas declararam alimentar-se mal, o que parece um dado suculento demais para ser veraz, mesmo considerando que a amostra não incorporou níveis de renda familiar abaixo de dois salários mínimos, onde a paisagem é a mais feia.Não houve ninguém que dissesse não saber a quantas anda nessa matéria. Mas pode-se supor que dos 12% que responderam "mais ou menos", uma parcela estava ou disfarçando uma avaliação negativa ou escapando do problema pela tangente. Tanto que esse tipo de resposta aumenta quanto mais baixo o grau de instrução do entrevistado. Praticamente o contrário ocorreu em relação à alternativa "não se considera bem alimentado": quase a metade dos insatisfeitos tem de colegial completo para cima.

Isso provavelmente não significa que os mais bem-educados estejam mesmo comendo mal, até porque níveis elevados de escolaridade quase sempre andam de braço dado com contas bancárias também saudáveis— e nenhum fator tomado isoladamente pesa tanto como a renda sobre o que vai no prato de cada um, por maior que possa ser a influência da tradição como formadora de hábitos alimentares. Mas talvez esses entrevistados façam um julgamento mais severo do próprio padrão alimentar, pelo acesso que a educação Ihes proporciona a um cardápio ampliado de conhecimentos sobre o assunto.Antes de buscar a opinião dos brasileiros sobre o estado de sua alimentação em particular, a pesquisa procurou aferir mediante uma pergunta aberta o que eles entendem por boa alimentação em geral. A multiplicidade de respostas dá a entender que muita gente ouviu o galo cantar mas não sabe exatamente onde, fazendo uma salada de acertos e meias- verdades. Houve ainda quem confundisse causa com efeito, dizendo, por exemplo, que bem alimentada é a pessoa "forte, saudável, firme, com muita energia". No entanto, só uma ínfima minoria se candidata à nota zero em nutrição, por haver servido disparates do gênero "bem alimentado é quem come o que tem vontade". Nove em dez entrevistados, aproximadamente, foram procurar a resposta em comidas específicas, de cujo consumo dependeria a boa alimentação. Verduras e legumes foram as mais mencionadas (68% no total), seguindo-se, empatadas, na casa de 58%, as frutas e a carne.

Esta, curiosamente, foi lembrada por apenas 1/3 dos gaúchos e por mais de 2/3 entre os pernambucanos, um recorde. Ora, nutricionista algum negará que verduras, legumes e frutas são essenciais à boa alimentação. É possível ainda que, apesar da crescente controvérsia a respeito, a maioria dos profissionais também inclua a carne, por seu valor protéico, desde que sem gordura e em porções moderadas —picadinho em vez de picanha.Mas é improvável que, numa amostra de nutricionistas, somente à metade deles ocorresse mencionar cereais, como arroz, feijão, lentilha e soja, além de pão e massas, entre os alimentos ricos em carboidratos, portanto indispensáveis à boa nutrição, pela energia que fornecem. Pois foi o que se deu na pesquisa: apenas a metade dos entrevistados falou em cereais. Nesse ponto, desenha-se uma ironia: um número proporcionalmente maior de muito pobres e de pouco instruídos parece estar mais perto de saber o que é uma pessoa bem-alimentada do que os ricos e os de educação universitária. Aqueles, que não por acaso comem mais arroz, feijão e macarrão do que estes—e quando os comem em quantidades adequadas passam bem—, demonstram ter um conhecimento intuitivo, empírico, do valor desses alimentos.

Na mesma linha, chama a atenção o fato de que, entre os que tentaram definir boa alimentação com base em um rol de alimentos, justamente os entrevistados analfabetos foram os que mais citaram doces (açúcar, mel, bolo, sorvete, marmelada), fontes de energia rápida muito úteis para quem vive de trabalhos braçais.Um terço da amostra mencionou também a regularidade nos hábitos alimentares, sem dúvida uma inclusão apropriada. Dois em dez entrevistados associaram boa alimentação a comidas ricas em vitaminas, proteínas e sais minerais, o que é uma resposta elegante, desde que se saiba que comidas são essas. É significativo, de todo modo, que ninguém tenha falado em calorias: provavelmente o termo está tão identificado a ruindades do tipo gordura e excesso de peso que as pessoas acabam esquecendo de sua importância como combustível do organismo. Apenas 10% da amostra ofereceu a que talvez seja a resposta mais adequada que um leigo pode dar em português claro à questão da boa alimentação. Um indivíduo bem-alimentado, disseram, é aquele que sabe "balancear os alimentos", "tem uma dieta variada", "come de tudo um pouco". Aqui também predominaram os entrevistados de níveis mais elevados de instrução.

Das três refeições clássicas do dia, o café da manhã é consumido habitualmente por 88% dos brasileiros ouvidos na pesquisa. Apenas 8% das pessoas saem para a luta sempre de estômago vazio. É uma atividade solitária para a metade dos entrevistados (principalmente para os mais jovens e para os idosos). Na renda está toda a diferença: quanto mais rica a pessoa, mais comum o café junto com familiares. Onde se passa o dia também influi: 11% dos homens (mas só 4% das mulheres) tomam a primeira refeição fora de casa a maior parte das vezes. Para estes, o lugar mais freqüente é a cantina ou restaurante de empresa. A hora típica do café vai das 7 às 8 horas: é o período preferido por quase a metade da amostra. A maioria absoluta líquida o assunto no máximo em 10 minutos. Eis um indício indireto de que, para o grosso da população, o café da manhã tem pouquíssimo a ver com aquela tão importante refeição de que falam os nutricionistas. Até existe entre eles o dito "café da manhã de rei, almoço de príncipe, jantar de plebeu". Plebeu, aqui, é o café.De modo geral, a receita desse rápido desjejum limita- se a uns poucos ingredientes. Como seu próprio e brasileiríssimo nome já sugere, o café da manhã é acima de tudo café. No dia em que responderam ao questionário, 37% dos entrevistados informaram tê-lo ingerido com leite, outros 28%, puro.

No conjunto da amostra, nenhuma outra bebida mereceu sequer 10% das menções, embora 17% dos mineiros tenham citado leite puro - o que está de acordo com a tradição do lugar. (E não, os gaúchos não queimam os lábios logo cedo na bomba de chimarrão escaldante; só um impenitente entrevistado ali se confessou adepto dessa folclórica marca dos pampas.) Sucos de frutas e vitaminas, de seu lado, são coisas de rico—e, mesmo entre eles, de uma minoria de 21% (o dobro do resultado geral).Café com pão, como no verso onomatopaico de Manuel Bandeira, é preferência nacional. O pãozinho amanhece, por exemplo, na boca de sete em cada dez paraenses. Bolachas, biscoitos, torradas, bolos, broas, pães integrais ou de glúten e ainda pães doces foram mencionados duas vezes mais pelas mulheres. Elas, os mais velhos e os mais ricos são quem passa mais manteiga do que margarina no pão de cada manhã. Um certo número de pessoas deve estar consumindo margarina pensando que é manteiga. Afinal, a palavra margarina foi banida da publicidade na TV; os comerciais vendem marcas sem dizer de que produto se trata. O consumo de queijos varia antes de tudo conforme a renda. A única diferença regional apreciável ocorre em Belém e Porto Alegre, onde o consumo matinal desses laticínios fica bastante aquém do total geral, que já não ultrapassa 25% do total.

Em compensação, os gaúchos apreciam uma porção matinal de frios três vezes mais do que os brasileiros de outras capitais, o que certamente se explica pela influência alemã.Peculiaridade local, mesmo, é o imbatível paladar açucarado dos pernambucanos, herdeiros de uma história escrita em canaviais e engenhos. Noventa e cinco por cento dos entrevistados do Recife -- 2,5 vezes o total —tomam o café com pão caloricamente acompanhado de algum doce. Os nutricionistas não vão gostar, mas apenas 13% das pessoas comem frutas na primeira refeição— um resultado que parece brotar do bolso: quanto maior a renda e menor a família, maior o consumo. É bom lembrar que há mais famílias menores entre as famílias ricas. Pelo visto, 98 em 100 pessoas não tomam conhecimento dos chamados cereais e farinhas matinais. Idem no caso dos ovos quentes e pior ainda em relação a outros acepipes da moda, como iogurte, mel e germe de trigo.Almoçar é um sacrossanto costume no Brasil: mais brasileiros almoçam do que tomam o café da manhã (talvez por isso mesmo) ou jantam. Noventa e sete por cento dos entrevistados comparecem todo dia ao compromisso com o estômago naquela que é apropriadamente chamada hora do almoço.

E, destes, pelo menos seis em dez homens o fazem sempre em casa. É uma proporção impressionante, dado que a pesquisa foi realizada apenas em grandes cidades, onde, segundo a sabedoria convencional, o tamanho das distâncias, a estreiteza do tempo e o enovelamento do trânsito virtualmente proíbem o luxo da volta diurna ao lar para tanta gente. Mas talvez não seja bem assim: de acordo com a pesquisa, o contingente dos que se beneficiam do almoço caseiro ultrapassa 83% na população mais pobre—uma senhora surpresa. Recife é a capital onde isso acontece com maior freqüência e São Paulo é onde acontece menos, mas as diferenças percentuais não chegam a ser significativas. O fator idade, sim: almoçam sempre em casa mais pessoas de 50 anos em diante do que de qualquer outra faixa—o que também faz sentido, pois ai estão incluídos os aposentados. A persistência do hábito de almoçar em casa em plena era do fast food e da multiplicação de lanchonetes que despacham sanduíches aos escritórios provavelmente faz bem tanto à carteira quanto à saúde dos indivíduos e talvez ajude a entender por que, mesmo no estrato de renda familiar de até cinco salários mínimos e apesar do café da manhã de faquir que a maioria toma, não suba pelas paredes o índice dos que se consideram mal- alimentados.

Quem sempre almoça fora (algo como 1/5 dos que almoçam) integra uma população com características bem definidas. Para começar, é uma espécie tipicamente masculina, na razão de dois homens para cada mulher. Depois, é uma confraria totalmente dominada pelos cariocas e paulistas. E seu perfil reflete, degrau por degrau, a escada de rendimentos: quanto mais bem de vida o cidadão, maior a probabilidade de que ele almoce por aí regularmente nos dias úteis. Quem não come em casa, não come obrigatoriamente em restaurante. A tradicional casa de pasto acolhe somente um de cada três daqueles entrevistados. Outro maneja os talheres no emprego mesmo, seja na cantina da empresa, seja servindo-se da marmita ou do lanche trazidos de casa. O terço restante compõe-se principalmente de freqüentadores de lanchonetes tradicionais, padarias e bandejões de escola. As lanchonetes tipo McDonald’s, tão visíveis na paisagem das grandes cidades brasileiras, têm a preferência confessa de 4% das pessoas.Os adolescentes destacam-se por filar a refeição em casa de parentes ou amigos. Por alguma ;razão que talvez só o boto tucuxi conheça, isso ocorre em Belém proporcionalmente quatro vezes mais do que em São Paulo e catorze vezes mais do que no Rio. Em casa ou na rua, sobretudo em casa, como seria de esperar, almoçar é uma atividade gregária: sete de cada dez entrevistados têm à mesa a companhia de parentes ou de outras pessoas.

Os solitários são tipicamente os paulistas, os mais pobres, os mais velhos e, como também seria de esperar, os membros de famílias menos numerosas. Mas o evento familiar por excelência é o almoço do domingo. Nesse dia, nove em dez entrevistados almoçam sempre (74%) ou às vezes (16%) com a família inteira. Não obstante, justamente entre as pessoas de 50 anos para cima se localiza o maior segmento dos que nunca ou só de raro em raro compartilham a refeição dominical com toda a parentela, o que reforça a percepção de que muitos idosos estão relegados a uma posição marginal na vida familiar.Nos dias úteis, a maioria dedica ao almoço o mínimo necessário—entre 15 e 30 minutos. Entre os 14% que mal devem mastigar a comida, ou mal devem estar se alimentando, visto que abatem um almoço em até dez minutos, destacam-se os mais pobres, as mulheres e os mais jovens. Confirmando o estereótipo, há proporcionalmente mais cariocas entre os raros espécimes que se demoram além de 45 minutos desfrutando os prazeres da mesa. Mas o que o brasileiro considera almoço? À pergunta "o que você comeu hoje na hora do almoço", quase todos responderam "comida", querendo com isso designar uma refeição completa, diferente de sanduíches, de um lanche ou de uma porção de salgadinhos. Nesse ponto, sai do forno outra surpresa: aqueles que por escolha (ou falta de) se bastam com um sanduíche não somam nem 4% da amostra.

São de preferência paulistas, de classe média, na casa dos 20 anos. Um regionalismo: em Belém, a alternativa mais comum para quem não almoça não é o sanduíche, e sim uma fruta—o onipresente açai, comido com farinha e açúcar.Quando em Brasília são 7 horas da noite e no rádio urna versão discutível da Aquarela do Brasil anuncia o começo da hora do governo, cerca de 25% dos moradores das principais cidades do país começam a mastigar a refeição da noite. Trata-se de um hábito comum a quase 90% das pessoas ouvidas na pesquisa. O horário nobre do jantar vai até às 8 horas. Dentro desse período, quanto maior a renda, mais tarde o jantar. Um resultado capaz de deixar engasgados de espanto os brasileiros que se sujeitam a tomar intermináveis chás de cadeira em restaurantes aos sábados à noite: dos entrevistados que têm o hábito de jantar, 88% sempre jantam em casa.O índice salta para 94% entre os mais pobres e alcança 95% entre os mineiros, lançando no ar a suspeita de que em Belo Horizonte é melhor abrir uma videolocadora do que uma churrascaria. Mas a surpresa maior da noite é que até no clube dos que ganham além de vinte salários mínimos 73% das pessoas jamais saem para jantar. Que o cadeado do orçamento doméstico tranca as pessoas em casa é óbvio: entre os que dizem jantar fora às vezes, por exemplo, a proporção dos mais abonados é seis vezes a dos pobres: no entanto, a menos que as pessoas estejam por algum motivo subfaturando os fatos sobre suas sortidas noturnas, o aperto já é um imenso torniquete.

Sendo o jantar uma atividade essencialmente doméstica, nada mais natural que seja também a refeição da família. De fato, jantam em companhia de parentes dois em cada três entrevistados. A proporção cresce para três em quatro na faixa de 40 a 49 anos. O tempo dedicado ao jantar é praticamente o mesmo do almoço: a maioria absoluta das pessoas leva não mais de meia hora do começo ao fim da refeição. Isso não quer dizer necessariamente que os brasileiros comam depressa dia e noite. Pois, na hora do jantar, diminui a fatia dos que fazem uma refeição inteira. Ou seja, as pessoas simplesmente se permitem comer menos em mais tempo. E duas vezes maior do que no almoço, por exemplo, o total dos que jantam sanduíche e quase quatro vezes maior o número dos que preferem outras refeições leves.Das muitas maneiras pelas quais a condição econômica influi sobre o comportamento alimentar, uma das mais expressivas tem a ver com o próprio modo de comer. Não há de ser por acaso que a freqüência com que as pessoas sempre sirvam a refeição à mesa, em travessas, varie rigorosamente conforme a renda—de apenas 13% entre os mais pobres ao quádruplo disso entre os mais ricos. Mas também chama a atenção que, mesmo no clã de cima, 24% raramente ou nunca sigam a norma que, sem dúvida, dá um tempero mais civilizado ao imperativo de matar a fome. A predileção brasileira aqui é cristalina como água da fonte: três em quatro pessoas gostam mesmo é de servir-se direto da panela, no fogão, ao menos de vez em quando. Essa inclinação aumenta na contramão do nível de renda.

E, consideradas as capitais da pesquisa, os mineiros são de longe os maiores adeptos do self-service à boca do fogo, com 82% dos casos. Os menos habituados parecem ser os paraenses, com 54% —ainda assim, uma nítida maioria.Feitos os pratos diretamente da panela, os comensais se põem em movimento. Oito em cada dez vezes, vão juntos à mesa, como convém sobretudo se forem paulistas, os recordistas absolutos do gênero. Os homens, por sinal, instalam-se à mesa um pouco mais comumente do que as mulheres. Elas são maioria quando a ordem é cada um comer onde quiser— o que pode dar uma indicação do lugar que a mulher ainda ocupa nos lares brasileiros. Seja como for, a ala radical do partido da livre escolha, que manda sempre comer onde se quiser, é integrada mais pelos pobres do que pelos ricos, mais pelos jovens do que pelos velhos, mais pelos pernambucanos (e quase nunca pelos gaúchos). Enfim, mais pelas famílias grandes do que pelas pequenas - o que faz sentido.Enquanto come, o brasileiro fixa um olho no prato e outro na televisão. Os hábitos focalizados pela pesquisa mostram que pelo menos quatro em cada dez entrevistados miram o inefável aparelho em toda santa refeição.

Alguns, apesar de ainda aboletados à mesa; outros, mais numerosos, tendo já dispensado esse conforto, acomodados com o prato como e onde podem, desde que nada se interponha entre a retina e a tela. Some-se o grande público eventual, os 48% que às vezes incluem a TV no cardápio, e se terá uma audiência de dar água na boca dos fazedores de jornais e revistas: a imprensa escrita é consumida às refeições, de vez em quando, por 6% do total e, sempre, por algo como 1 excêntrico cidadão em 100.Ainda uma vez, o critério econômico distingue os brasileiros diante da comida: o fã-clube da refeição com televisão vai buscar seus membros sobretudo nos estratos inferiores de renda, onde conquista 51% de adesões (contra 22%, por exemplo, na faixa mais rica). Seja qual for a classe social, porém, mais mulheres do que homens se entregam aos encantos das imagens enquanto se alimentam—o que confirma os dados habituais das pesquisas de mercado. Quando entra em cena o fator idade, a imagem é nítida o suficiente para indicar que a TV às refeições atrai em primeiro lugar os jovens: mais da metade deles sempre divide suas atenções entre o prato e a tela, sendo fácil imaginar quem sai ganhando nessa divisão. Além de aparentar horror à idéia de que cada qual deve comer onde quiser (apenas 3% dos moradores de Porto Alegre fazem isso sempre), os gaúchos abominam igualmente comer fora da mesa vendo TV (só 2% agem assim sempre).Sim, arroz e feijão, nessa ordem, continuam ainda a ser uma quase unanimidade no cardápio doméstico do dia-a-dia. (Domingo, como logo se verá, é outra história).

Está aí um forte indício de que o menu costumeiro do conjunto da população varia menos do que a renda que separa as diversas classes. Solicitados a dizer que pratos e alimentos representam adequadamente o que se come em casa durante a semana, 90% dos entrevistados mencionaram em primeiro lugar arroz; 82% deles, feijão. A campeã absoluta do consumo é Belo Horizonte. Ali, 98% das pessoas ouvidas cravaram a coluna do arroz e 94%, a do feijão. Em ambos os casos, o Rio de Janeiro fechou a raia. Quem diria: os cariocas comem menos feijão até do que os gaúchos. Em geral, o consumo aumenta na razão inversa do nível de renda e da faixa de idade e na razão direta do tamanho da família. Ou seda, os mais Jovens, os mais pobres e os membros de famílias mais numerosas são também os que mais costumam encher o prato de arroz e feijão.Isso não é só uma questão de preço, até porque já se foi o tempo em que se comprava arroz e feijão no armazém a preço de banana. Aqui o que orienta o consumo é a necessidade de fornecer ao organismo uma fonte de energia que literalmente dê para o gasto diário—comida "forte", conforme a clássica expressão popular. A pesquisa deixa patente que tanto o feijão quanto, em menor grau, o arroz são alimentos de homem, sobretudo dos que exercem atividade física mais intensa. É um resultado coerente com os fatos da vida: afinal, para desempenhar suas tarefas cotidianas, em casa ou fora, as mulheres não precisam tanto do combustível fornecido pela valiosa mistura.

No cardápio de segunda a sábado, a carne ocupa lugar de destaque logo abaixo dos cereais. No dia-a-dia, os brasileiros demonstram uma predileção absoluta pela carne bovina, comem frango modestamente, desprezam carne de porco e dão a impressão de ignorar patos, cabritos, coelhos, codornas e correlatos. Em diversos cortes e formas de preparo, a carne bovina foi citada por 75% dos entrevistados. O consumo parece variar relativamente pouco de acordo com o nível de renda. Ainda assim, os maiores consumidores são obviamente os mais ricos; os mais pobres não apenas consomem menos do que os demais como também são os que menos souberam (ou quiseram) mencionar os tipos específicos de carne que fariam parte habitual de sua dieta. Às vezes, existe o pudor da penúria. Mais homens comem carne de boi e mais mulheres comem carne de ave. Os adolescentes atracam-se com bifes e assemelhados numa proporção muito maior que a de qualquer outro grupo etário. Já quem mais aprecia um peito de frango ou uma coxa de galinha são os quarentões. E atenção: os habitantes de Porto Alegre não apenas não são os maiores comilões de carne vermelha durante a semana, corno ficam em último lugar, entre as capitais incluídas na pesquisa, 27 pontos abaixo dos supremos carnívoros, que moram—barbaridade, tchê! em Belém do Pará.

O consumo de verduras, citado somente por pouco mais da metade da amostra, acompanha passo a passo as variações na renda. Paulistas e membros de famílias pequenas são seus principais fãs. Junto à minoria dos que de alguma forma apreciam legumes rotineiramente, destacam-se as mulheres, os mais velhos e os mineiros. Mesmo no segmento mais rico, porém, seu consumo é apenas moderado. Nos dias úteis, a presença das massas na mesa nacional é limitada. Trata-se, como o feijão e o arroz, de um alimento mais freqüente no prato do pobre. A distribuição geográfica do consumo é porém inesperada: entre os pernambucanos é quase nove vezes maior do que entre os paulistas a proporção dos que comem, por exemplo, macarrão ao molho de tomate ou à bolonhesa; a pasta asciutta também comparece à mesa dos paraenses com insuspeitada freqüência: 39% dos casos. Já o consumo de ovos beira a insignificância. Frutos do mar come-se ainda menos. Até no Rio de Janeiro, não mais de 15% nutrem-se de peixes durante a semana.Os brasileiros dividem-se em partes praticamente iguais quando se trata de comer sobremesa nas refeições domésticas: 49% dizem não e 51% dizem sim. Destes, uma ligeira maioria dá preferência às frutas, principalmente laranja, banana e mamão, enquanto os demais são chegados a um doce, como pudim, gelatina, goiabada ou similares e sorvete. Os mais ricos comem duas vezes mais frutas (fonte básica de sais e vitaminas) e uma vez e meia mais doces do que os mais pobres. Fruta ou doce, as mulheres sucumbem à sobremesa com maior freqüência do que os homens.

A maioria das frutas é, digamos, unissex, mas melão e maçã são apreciados especialmente pelas mulheres, assim como as gelatinas, entre os doces. Em se tratando de doces, a situação curiosamente se inverte. E os pernambucanos são os que têm o menor apetite por sobremesas em geral.Durante a semana, sucos naturais, refrigerantes e água são as bebidas que normalmente acompanham as refeições dos brasileiros. No domingo, os refrigerantes tomam a dianteira. Enquanto o consumo de sucos naturais entre os mais ricos fica muito acima da média geral, o mesmo acontece com os sucos prontos entre os mais pobres. A julgar pelo que informam os entrevistados, este é quase um país de abstêmios: apenas 6% dos homens (e 1% das mulheres) disseram tomar cerveja e vinho às refeições. Mesmo aos domingos, quando o consumo declarado de cerveja na população masculina aumenta cinco vezes, apenas 1 em 100 entrevistados disse tomar com a refeição alguma bebida alcoólica mais forte, como caipirinha—o que autoriza a desconfiança de que o brasileiro seja um bebedor envergonhado.Ah, a liturgia do almoço de domingo.

Em homenagem à família reunida, a rotina do arroz-feijão dos dias úteis cede espaço a um cardápio mais variado, onde a carne continua a reinar, mas as massas governam—seu consumo simplesmente triplica, enquanto o de arroz cai além da metade e o de feijão, cerca de 2/3. Por massas, entenda-se na absoluta maioria dos casos macarronada, lasanha e nhoque. Os jovens, de preferência na faixa de 2 a 5 salários mínimos e de famílias pequenas, consomem três vezes acima da média uma iguaria que parece entusiasmar não mais de 2% das pessoas ouvidas na amostra—a pizza.São Paulo lidera o festival domingueiro de massas pelo Brasil afora. Segue-se o Recife, o que dá sustança à hipótese de que a geografia já não determina tanto assim os hábitos alimentares brasileiros—embora a tendência à homogeneização dos cardápios apareça mais nos dias úteis. Junto com os macarrões, o domingo registra a ascensão irresistível dos galináceos, que pousam em metade das mesas (2,5 vezes mais do que nos outros dias). Eis uma peculiaridade que vale a pena ressaltar: enquanto de segunda a sábado seu consumo cresce quanto maior a renda, no sétimo dia cresce quanto menor a renda. Já o apetite nacional pelas carnes vermelhas emagrece drasticamente, despencando de 78% para 43%.

O consumo tende a concentrar-se nas classes superiores de renda, nas famílias de tamanho médio e entre os mais jovens. Sob a forma de churrasco, é—agora sim—o prato número um dos gaúchos, que assim parecem compensar o virtual jejum de espetos durante a semana. Proporcionalmente, almoçam churrasco aos domingos, de preferência com maionese de legumes, dez vezes mais gaúchos do que paulistas. Em Belo Horizonte, honrando as melhores tradições mineiras, um naco das preferências carnívoras volta-se para lombos e pernis, muito além do que nas outras capitais. Isso deve explicar por que, também aos domingos, os mineiros lideram a perder de vista o consumo de feijão, provavelmente na versão tutu.

Outra mudança no padrão alimentar ocorre com as sobremesas. O domingo é o mais doce dos dias: é quando pudins e sorvetes, gelatinas e tortas, frutas em calda e outras confecções açucaradas proporcionam um fecho glorioso à comilança em família. De fato, enquanto um em dois entrevistados dispensa a sobremesa nos dias de trabalho, neste apenas um em três continua a dizer não. A degustação de doçuras em geral salta de 28% para 48%, impulsionada pela gula dos mais ricos e das mulheres. No domingo, como todos sabem, só os muito fanáticos continuam a contar calorias.

Aprendendo a comer

A segunda rodada de resultados da pesquisa de SUPERINTERESSANTE sobre os hábitos alimentares dos brasileiros revela até que ponto a população de fato se interessa por assuntos relacionados com a nutrição e o que entende a respeito. Revela também como é a divisão do trabalho doméstico no capítulo comida e quais os produtos mais consumidos.

Antigamente, para aqueles cuja mesa era risonha e farta, interessar-se por alimentação significava gostar de comer. Para aqueles cuja mesa era incerta e parca, preocupar-se com alimentação significava procurar o que comer. Mudou muito o mundo. Nas últimas décadas, começou a ser servida uma sopa de indigestas notícias, preparada por uma nova espécie de gurus, os especialistas em nutrição, e peneirada à la mode pelos meios de comunicação—e o resultado foi que preocupação e interesse por alimentos passaram a significar outra coisa, obrigando milhões de comensais a desdobrar seus guardanapos não apenas com apetite pelo prazer iminente, mas também com incerteza e ansiedade pelo que virá depois.

Que pena: justo quando a humanidade finalmente aprendeu a dominar as técnicas capazes de libertá-la do pesadelo milenar da escassez de alimentos, palavrões como agrotóxicos e aditivos, colesterol e sugar blues deram para azedar a hora do repasto. Comer bem virou ciência: qual a porcentagem máxima de gorduras saturadas admissível no total de calorias que se deve ingerir diariamente? Quais ingredientes químicos, daqueles codificados nas embalagens por meio de letras, pontos e algarismos romanos, são mesmo prejudiciais à saúde? O que contém mais fibras, um prato de lentilhas ou uma xícara de aveia? Que diferença existe entre a dieta de Scarsdale e a de Beverly Hills? Bebidas diet engordam ou não? Gado criado com hormônios é um perigo? Fertilizantes industriais ou adubos orgânicos?

Ao mesmo tempo, saber comer virou símbolo de status, prova de refinamento cultural. Livros e coleções de receitas desandaram a vender feito pão quente: 85% das pessoas dizem ter em casa algo no gênero. Na imprensa, restaurantes tornaram-se assunto de resenhas tão doutas quanto as críticas de livros, filmes e peças. Diante dessa pantagruélica feijoada de boas e más lipoproteínas, cozinha light e cucina mediterrânea, complexos de vitaminas e complexas polêmicas, como ficam os brasileiros? Será que têm gula de conhecer esse (nem sempre) admirável mundo novo? Será que no momento de empunhar os talheres pautam-se por alguma orientação médica? Ou acham tudo isso perda de tempo, conversa fiada que não enche barriga?

A pesquisa SUPERINTERESSANTE/Feedback (que entrevistou um total de 1 200 pessoas de diferentes classes em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Belém, e cujos resultados começaram a ser publicados na edição anterior) recolheu uma avaliação pessimista a respeito —e ela inaugura esta segunda rodada de apresentação dos números sobre os hábitos alimentares da população. Pode-se dizer que, diante do conjunto de questões que agitam hoje em dia o caldeirão alimentar, os brasileiros dão a impressão de ter ouvido o galo cantar mas ainda precisam aprender onde. Interessam-se, por exemplo, por agrotóxicos, sabem que a expressão calorias não engordam é uma baleia, mas ignoram informações fundamentais, como o que fazem no organismo as fibras dos alimentos vegetais.

A maioria, embora pareça digerir com dificuldade a dominadora presença dos produtos industrializados, com seu bufê de conservantes, acidulantes, edulcorantes e outros antes, que tornam as embalagens cada vez mais parecidas com bulas de remédio, há muito que fez a opção preferencial pelos supermercados, onde eles reinam absolutos, e comunica estar a salvo de tabus alimentares irracionais, tipo leite com manga. Mas a divisão doméstica das tarefas de escolher, comprar e preparar comida persiste em premiar a mulher com a parte da leoa do trabalho como nos velhos tempos em que ela era chamada rainha do lar e ganha pão era coisa de homem. Provavelmente por culpa da inflação, muita gente não sabe quanto gasta com os gêneros que coloca no carrinho—uma cesta básica que se compõe de um número algo restrito de produtos, varia pouco pelo país afora e, assim como os pratos que vão à mesa de todos os dias, decididamente é um indicador trôpego de riqueza ou nobreza.

Três quartos dos pesquisados apostam que o interesse dos concidadãos pela alimentação ou é escasso ou é simplesmente nenhum. E só um em dez acredita que os outros se preocupam muito com o assunto. Nessas respostas, decerto, vai embutido um juízo não muito açucarado dos brasileiros sobre seus semelhantes. Os mais céticos são os mais ricos e os cariocas. Estes últimos, por sinal, devem saber do que estão falando: chamados a qualificar as próprias atitudes, um terço e tanto deles se descreveram francamente como pouco ou nada interessados, um resultado bem superior ao das outras cidades.

No conjunto da amostra, mais de dois terços se acham muito ou razoavelmente interessados— isto é, não vestem a carapuça da indiferença que, a seu ver, os outros fazem por merecer. Os menos interessados são também os mais pobres, o que não surpreende. E sugestivo, no entanto que entre estes, assim como entre os menos instruídos, se concentre proporcionalmente o maior número dos que se dizem muito preocupados a respeito de alimentação: quem sabe para eles isso tem a ver antes com as atribulações de adquirir comida do que com a vontade de adquirir conhecimentos.

A televisão é, disparado,. a principal fonte de informações sobre questões alimentares, citada pela maioria absoluta dos que manifestaram algum interesse por tais assuntos. A TV foi mencionada sobretudo pelos mais pobres, pelas mulheres e pelos mais velhos. A correlação mais íntima porém, é com o grau de instrução, só que às avessas: a telinha alimenta além de dois terços dos que não chegaram a completar o primário e nem sequer um terço dos que concluíram o curso superior. Já o inverso ocorre com o público de revistas e jornais. A propósito, as mulheres e os mais jovens tendem a preferir revistas, os homens e os mais velhos, jornais. Conversar sobre comida com amigos e parentes é outra forma tipicamente feminina de se informar. Tudo isso, a rigor, está dentro do esperado. O que faz arregalar os olhos é a mínima participação daquelas que, supostamente, são as melhores fontes de iluminação nesse terreno: as publicações especializadas, a escola, os médicos e os nutricionistas.A falta que eles fazem não tardará a se mostrar.

Para aferir com certa segurança o que os entrevistados realmente conhecem de alimentação, pediu-se que respondessem se já ouviram falar em (e se têm interesse por) alguns temas que freqüentam qualquer curso elementar de boa nutrição: o uso de agrotóxicos nas lavouras e de conservantes na indústria de alimentos: colesterol; o papel das fibras; as diferenças entre alimentos refinados e integrais; dieta vegetariana e dieta naturalista. Aqui, aparentemente, tudo bem. É da ordem de 90% o contingente dos que garantem ter ciência da grande maioria desses assuntos. A informação só diminui em relação aos eventuais problemas de saúde causados por alimentos refinados, como arroz e açúcar brancos, e à importância das fibras: dois em cada dez entrevistados nem ouviram falar disso.Regra geral e previsível: quanto mais pobres e menos instrui das as pessoas, maior a incidência de respostas nunca ouvi falar. Assim. enquanto no computo geral apenas seis em 100 não sabem que colesterol é uma substância gordurosa que se acumula nos vasos e pode bloquear a circulação do sangue, a porcentagem de desinformados mais do que duplica entre os analfabetos e os de primário incompleto. Da mesma forma, um quinto destes —o triplo do restante—ignora o que sejam agrotóxicos. Passando do campo da informação para o do interesse, o caminho dos números é de descida e o resultado final, apenas satisfatório.

Pois. mesmo diante do tema que mais curiosidade desperta—agrotóxicos—o total de interessados não ultrapassa dois terços da amostra. Que confiança se pode ter nesse dado? Ora, é sabido que em anos recentes também no Brasil o interesse pela alimentação passou a ser valorizado socialmente, como sinal de que se é atualizado, moderno. Por isso, talvez a porcentagem dos que se declaram interessados ainda esteja algo inflacionada. De qualquer forma, o interesse aumenta de acordo com o grau de instrução—a variável decisiva nesse particular. Nas questões relacionadas a agrotóxicos, conservantes e colesterol, gira em torno de 80%, cerca de vinte pontos acima da média geral, o índice de respostas positivas entre os entrevistados de maior escolarização.

Quando o assunto é colesterol, os maiores interessados, além daqueles, são os mais ricos, as mulheres e sobretudo os mais velhos. Os mineiros, que segundo a lenda ficam de água na boca só de ouvir a palavra torresminho, lideram o pelotão dos que mais querem se atualizar sobre a perturbadora substância presente na gordura animal.

Quando o assunto são os conservantes, os maiores interessados são os mais ricos, as mulheres, a turma dos 30 anos e os paulistas. Mas é preciso adicionar um prudente grão de sal a essa manifestação de interesse, compartilhada por seis em dez dos entrevistados. Pois, diante de uma pergunta sobre leitura de embalagens de alimentos? apenas irrisórios 3%. praticamente só paulistas e cariocas, disseram olhar se o produto contém conservantes. (Em compensação, quase três quartos olham a data de validade, metade examina o estado da embalagem—e um quarto dos mais pobres procura singelamente saber o preço.)

Quando o assunto são os agrotóxicos, os maiores interessados são, de longe, os mais instruídos, os mais ricos, as mulheres, os trintões e os moradores de Belo Horizonte. Quando o assunto são as fibras, o interesse aumenta conforme a renda, a educação e a idade. As mulheres se interessam mais do que os homens; os paulistas, mais do que outros brasileiros. Quando o assunto são os alimentos refinados, de novo os principais interessados são os mais educados, os mais ricos, os trintões, as mulheres e os mineiros. Este, por sinal é um tema aberto a discussões. Há quem culpe os alimentos refinados por uma pá de doenças, incluindo alguns tipos de câncer. De certo, pode-se dizer que o refino empobrece o produto. Cem gramas de arroz integral. por exemplo, contêm 3,5 vezes mais proteínas e duas vezes mais carboidratos do que igual quantidade de arroz beneficiado. O refino também priva o alimento das fibras, cuja escassez no organismo prejudica o trânsito intestinal e pode ser a causa do aparecimento de pólipos. Cem gramas de farinha de trigo integral contêm o triplo de fibras do que a mesma quantidade de farinha refinada.

Quando os assuntos são alimentos integrais, dieta vegetariana e dieta naturalista, nessa ordem, o desinteresse predomina. Estes são definitivamente, temas alheios à grande maioria dos brasileiros O partido dos desinteressados inclui sempre mais homens do que mulheres, mais pobres do que ricos e mais gaúchos do que moradores de outras capitais.Uma forma indireta de medi r o que alguém sabe realmente de um assunto consiste em Ihe perguntar se concorda ou não com uma série de afirmações correlatas. Foi o que se fez: submeteram-se à amostra onze enunciados, cinco deles comprovadamente falsos. Diante de algumas dessas armadilhas, os entrevistados saíram-se honrosamente. Assim. apenas 13% (mas um quinto dos pernambucanos) concordaram plenamente com a bobagem de que "calorias não engordam". Mesmo entre os menos bem instruídos, metade entende o suficiente de alimentação para rejeitar totalmente essa falsidade. Um pouco pior foi o desempenho geral diante de outro despropósito: "Comer muita coisa no café da manhã tira a disposição para as atividades diárias".

Um quarto dos entrevistados, de novo com destaque para os pernambucanos, caiu na esparrela. A educação faz toda a sapiência: a maioria dos que perceberam o engodo tem nível médio ou superior de escolaridade.

Convencidas por inteiro ou em parte, algo como três em cada quatro pessoas assinaram embaixo da asneira "os alimentos mais ricos em fibras fornecem mais energia" e duas em três fizeram o mesmo ao serem apresentadas ao engano, as comidas congeladas são menos nutritivas . No primeiro caso, os mais velhos, os mais pobres, os menos instruídos e os paulistas revelaram o maior desconhecimento do fato de as fibras não fornecerem energia alguma, embora sejam essenciais à digestão. E 13% não souberam o que dizer. No segundo caso, o preconceito contra o congelamento se mostrou particularmente forte entre os mais pobres e os pernambucanos, variando também na contramão do grau de escolaridade.Finalmente, uma confusão muito comum sobre nutrição induziu quase nove em dez entrevistados, principalmente entre os mais pobres e os pernambucanos (de novo), a concordar com o enunciado de que "para o organismo, o melhor alimento é o que contém mais proteínas". A crença na absoluta supremacia das comidas ricas em proteínas, como a carne, é compartilhada por 85% dos menos bem educados, contra 36% entre os donos de diploma universitário. Eliete Salomon Tudisco, professora adjunta de Nutrição da Escola Paulista de Medicina, resume o consenso entre os nutricionistas: "Não existe um único alimento bom. Uma dieta balanceada depende da associação de diversos tipos de alimentos”."

A pesquisa ofereceu também um punhado de afirmações sujeitas a chuvas e trovoadas, como a de que "ao comprar alimentos, deve-se preferir produtos sem conservantes, mesmo se forem mais caros". Os entrevistados não hesitaram muito diante dessa sugestão: três quartos disseram concordar totalmente e outros 1:4%, parcialmente— o mais alto nível de apoios de toda a lista. Os mais ricos tendem a ser mais enfáticos do que os mais pobres, o que está na lógica das coisas. Aqui o fator educação pouco pesa: analfabetos e doutores, em igual proporção, recomendam evitar comida com conservantes, sinal de arraigada desconfiança em relação a alimentos industrializados que perpassa o povo de alto a baixo.“O problema”, comenta a nutricionista Eliete Tudisco, "está em não se saber com exatidão o que cada produto contém; nem mesmo produtos que dizem não ter conservantes estão realmente isentos de aditivas." De seu lado, Célia Coli. professora assistente de Nutrição Experimental da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo, ensina que "os conservantes causam menos mal do que se pensa".

Por via das dúvidas, ela aconselha, comprar produtos de empresas conceituadas, que dominam bem a tecnologia de alimentos e não expõem o consumidor a um excesso de produtos químicos"A preocupação da maioria com a pureza dos alimentos, embora bastante temperada pelas realidades da economia, manifestou-se também quando se serviu aos entrevistados um dos grandes dilemas relacionados com a idéia de uma agricultura voltada à produção em larga escala para ampliar a oferta de gêneros alimentícios a preços acessíveis—usar ou não agrotóxicos. Afirmou-se: "No Brasil de hoje. é preciso produzir mais alimentos para matar a fome do povo, e não proibir o uso de agrotóxicos". Na média ponderada das respostas (numa escala em que o apoio total vale +2 e a rejeição total -2), a afirmação foi reprovada, ficando com -0,06. Isso aconteceu mesmo nas classes de renda de até dez salários mínimos. Cidade por cidade, Porto Alegre se destaca entre os adversários dos agrotóxicos.

Pelas características de sua economia, o Rio Grande do Sul é um dos Estados em que esse debate é mais freqüente e visível.Também por escassa maioria (0,08 na média ponderada), saiu vitoriosa a polêmica afirmação de que "o açúcar branco faz mal à saúde". Apesar disso, oito em dez entrevistados adoçam com ele seu café. O eleitorado contra o açúcar branco é mais numeroso acima da divisa dos dez salários mínimos. O resultado se repete quando se dividem os entrevistados entre os que não completaram o ginásio e os que terminaram a faculdade. Alguns nutricionistas, porém, parecem pensar de outro modo. Diz Célia Coli: "O açúcar refinado é uma das melhores fontes de energia". Reforça Midori Ishii, professora de Nutrição da Faculdade de Medicina da USP: "E fundamental para o organismo. Ressalvam no entanto que o açúcar branco amplia o risco da obesidade, sem falar nas cáries, exigindo, de um lado, atividades físicas, e de outros hábitos rigorosos de higiene bucal.

A pesquisa identificou uma curiosa contradição. Uma nítida maioria (69%) concorda na íntegra ou em parte com uma afirmação—"A alimentação vegetariana é a mais saudável"— diante da qual os nutricionistas manifestam sérias restrições. Rebate Midori Ishii: "Bem dosado, qualquer tipo de alimentação é saudável". Mas uma maioria igualmente respeitável de leigos (67% ) apóia a tese de que a carne é um alimento indispensável, o que permite supor que as pessoas acreditam que uma comida pode ser ao mesmo tempo insubstituível e não fazer bem. A adesão (da boca para fora) ao vegetarianismo aumenta conforme a idade e diminui conforme o nível educacional. Já a crença de que nenhum alimento substitui a carne tem o maior número de adeptos entre os menos instruídos e os mais pobres, categorias que, como se sabe, tendem a se sobrepor.

Os nutricionistas alertam para o fato de que os vegetarianos fanáticos freqüentemente apresentam deficiências de minerais como ferro e cálcio, Mas lembram que "não basta comer carne para estar bem alimentado", como diz Célia Coli. De todo modo, os brasileiros são carnívoros convictos—e nisso estão mais perto dos americanos do que dos europeus dos quais descende a grande maioria. Quando uma família pobre melhora de vida, a primeira coisa que muda em seu cardápio é a quantidade de carne bovina. Isso é bom, mas nem tanto. "Aqui se compra carne por quilo", critica José Eduardo Dutra de Oliveira, professor de Nutrição da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto e presidente da União Internacional das Ciências da Nutrição. "Nós devíamos aprender a comer carne em gramas, como os chineses, que são magros e saudáveis".

A derradeira casca de banana lançada pela pesquisa para testar as idéias nutricionais dos brasileiros foi a afirmação de que "o tipo de alimento servido nas lanchonetes fast food é o melhor para os jovens" um ponto de vista que não entusiasma os nutricionistas, embora eles achem que não há nada de visceralmente errado com uma refeição rápida à base de hambúrguer. "O perigo é fazer disso um hábito", adverte Eliete Tudisco, "pois representa uma ingestão maior de gorduras e menor de fibras do que o necessário." Os entrevistados mostraram com clareza não acreditar nas alegadas qualidades nutritivas do fast food para os jovens. Apenas um quinto concordou com o enunciado. A oposição sobe com a educação, alcançando 80% no grupo dos possuidores de diploma universitário. Entre os próprios jovens, contudo, os sufrágios favoráveis ao fast food  algo que se poderia chamar de Mcvotos— somaram um terço.

Os brasileiros talvez entendam menos de alimentação do que deveriam, mas não entendem tão pouco a ponto de complicar a sua dieta com tabus alimentares que, dadas as condições de vida da grande maioria, só acabariam servindo para piorar as estatísticas de desnutrição. Assim, ainda acreditam na lenda de que leite com manga faz mal apenas seis isso mesmo, meia dúzia das 1 200 pessoas ouvidas. São três homens e três mulheres. Cinco moram em São Paulo, um em Belém. Nenhum foi além do primário. Convidados por outra, pergunta a identificar eventuais restrições a comidas ou a formas de preparo, virtualmente a metade dos entrevistados não se lembrou de nenhuma. A outra metade manifestou uma miscelânea de reservas, algumas procedentes, outras quem sabe exageradas.

Na primeira categoria se enquadra a preocupação com alimentos gordurosos ou de difícil digestão a carne de porco foi bastante citada— e com frituras em geral. Na segunda categoria, mais numerosa, reaparece a inapetência em relação à comida não feita em casa, que já se havia revelado nas respostas sobre consumo de alimentos com conservantes. Quinze por cento dos entrevistados (e 19% das mulheres) cultivam a suspeita de que alimentos industrializados ou comprados prontos em geral podem ser prejudiciais, principalmente por causa dos aditivos químicos. (As mães acrescentaram à lista negra doces, refrigerantes e chocolates.) Medo de aditivos não é coisa de iletrado: mais o manifesta quem cursou universidade.

O supermercado é por excelência o lugar onde o brasileiro compra comida: 99% dos entrevistados se abastecem nesses estabelecimentos, enquanto ao armazém, empório ou mercearia da esquina, tão populares em outros tempos, só vão 43% . Nove em dez pessoas, surpreendentemente, passam ao largo de sacolões e cooperativas de consumo. E sete em dez não mantêm relações comerciais nem sequer com os varejões. (Menos em Belo Horizonte, onde são procurados por 57% dos consumidores.) De norte a sul, mais gente vai ao supermercado do que à padaria (92%), ao açougue (90%) ou à feira (86%) e quem estiver em busca da receita da relativa parecença dos hábitos alimentares da população pode encontrar aí um ingrediente de muita importância. Supermercados padronizam produtos e opções. Firmemente implantado na vida dos brasileiros, o supermercado não é porém procurado por, igual pela população. Um terço tem o costume de ir a ele uma vez por semana, outro terço prefere uma vez por mês e o terço restante se divide entre a quinzena e a incursão diária. O lugar onde se vive pode ter algo a ver com isso.

Afinal. metade dos cariocas, por exemplo, freqüenta o supermercado semanalmente, bem mais, portanto, do que a média nacional. Já os gaúchos são os que mais comparecem todo dia ao supermercado. São também os que demonstram a maior fidelidade ao bom e velho empório: 80% deles recorrem a ele —e metade o faz dia sim, o outro também.No conjunto das capitais pesquisadas, vai-se à padaria, tipicamente, todo dia; à feira e ao açougue, toda semana. Quanto maior a renda, porém, menos comum o hábito de comprar em açougue, que não é propriamente um estabelecimento nobre (tanto que, para atrair a clientela classe A, surgiram nos últimos anos as auto-intituladas butiques de carne). De todo modo, parece haver um contra-senso na preferência dos pobres pelo açougue, visto que em geral a carne ali é mais cara. É provável que isso resulte da aversão popular à carne congelada vendida nos supermercados.

No modelo brasileiro de divisão do trabalho doméstico, ela faz e ele paga. É a mulher, de fato, quem escolhe os alimentos que a família irá comer (em 79% dos casos), quem escolhe o lugar onde eles serão comprados (75%), quem faz a compra (70%), quem decide o cardápio (85%) e quem cozinha (82%). O marido paga a conta (64%). Esse arranjo ortodoxo predomina sobretudo em Porto Alegre, onde tais porcentagens são sempre maiores do que nas outras capitais, podendo assim ser úteis aos interessados em carregar no estereótipo do machismo gaúcho.

Os maridos de Belo Horizonte, em contrapartida, são os que mais dividem os deveres conjugais quando se trata de preparar a lista de alimentos, escolher o lugar onde serão adquiridos e fazer a compra propriamente dita, sinal de que a família mineira talvez seja menos tradicional do que se diz. Já em Belém é menor o número de donas de casa que cozinham (apenas 59%)—não porque ali mais homens se disponham a encarar os mistérios do forno e fogão, mas porque em um quinto dos casos (o quádruplo da média nacional) quem cozinha é a empregada. Seja qual for a cidade, porém, nas famílias mais pobres, onde é elevado o número de mulheres que trabalham fora, é também maior a presença do marido—e de outros parentes—no conjunto das tarefas associadas à alimentação, como ir às compras.

Quando é a empregada quem cozinha, como acontece em um quinto das famílias da faixa superior de rendimentos, será que isso pode ter alguma conseqüência para a qualidade nutritiva da dieta que vai à mesa? Pode, sim, acredita a nutricionista Flora Spolidoro, do Ministério da Ação Social. A desinformação nesse terreno é grande", raciocina ela. "Não basta que a dona de casa saiba compor adequadamente o cardápio do dia-a-dia. Quem garante que o preparo será adequado?" Muitas vezes o bolso é que sai afetado. “É espantoso como se desperdiça comida neste país", acusa Flora. "O lixo dos brasileiros deve ser um dos mais ricos do mundo."Os economistas estimam que a alimentação consome algo como um terço do orçamento doméstico, sendo o item individual de maior peso na estrutura dos gastos familiares". É sabido também que a parcela abocanhada pelas despesas com comida tende a aumentar na razão inversa da renda. Ou seja, a fatia do rendimento que os mais pobres precisam desembolsar para matar a fome é proporcionalmente maior do que a dos mais ricos. Segundo uma pesquisa de 1983 do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio- Econômicos de São Paulo), enquanto as famílias paulistanas de renda per capita de até meio salário mínimo por mês comiam 36% do que ganhavam, nas famílias com renda superior a três salários mínimos per capita o mesmo índice não ultrapassava 18%.

Os economistas são ensinados a fazer contas para saber das coisas, mas os mortais comuns não —e assim não se pode culpá-los por nem sempre terem na ponta da língua certos números, ainda mais em um país onde os preços há tanto tempo praticam tais piruetas que se torna praticamente impossível lembrar quanto custa cada coisa. Não admira, portanto, que apenas a metade dos entrevistados saiba quanto deixa todo mês no caixa do supermercado. O mais bem informado é o chefe da casa, que é afinal quem paga a conta; os jovens e os outros parentes que eventualmente moram Junto (sogros, pais) são os que menos sabem. Quando se trata de contabilizar os gastos com a alimentação fora do lar, a desinformação alcança quase dois terços da amostra. Comparando-se quem sabe quanto gasta (em valores absolutos) com quem não sabe, verifica-se que os membros desta última categoria tendem a atribuir à alimentação um naco maior de suas despesas.

Entre os resultados da pesquisa publicados na edição passada, um dos mais esclarecedores identifica o cardápio típico da maioria, tanto nos dias úteis (arroz, feijão, carne bovina, verduras, frutas) quanto aos domingos (massas, carne de frango, doces, refrigerantes). Para fechar o círculo em torno desse capítulo—o mais importante de todos quando se pretende conhecer hábitos alimentares—, apresentou-se aos entrevistados uma extensa lista de alimentos para que indicassem quais costumam consumir e com que freqüência. As respostas apontam os ingredientes do que seria a cesta básica dos brasileiros das grandes capitais. Produto de um número relativamente pequeno de itens, sua composição é muito semelhante à da lista de alimentos mais consumidos no país, apurada já lá se vão dezesseis anos pelo Estudo Nacional de Despesa Familiar (Endef), do IBGE. Maior levantamento já realizado sobre o assunto no Brasil, o Endef descobriu não só quem consome o quê e com qual freqüência, mas também em que quantidade.

Óleo, arroz, açúcar, feijão, pão, leite, margarina, frutas, verduras, manteiga, carne bovina e queijo—nessa ordem e excluídos sal e café—são os alimentos mais ingeridos diariamente pelo conjunto da amostra. Além desses, carne de frango, batata, macarrão, ovos, peixe, doces, mandioca e gelatina, os de maior consumo uma ou mais vezes por semana, praticamente esgotam a cesta básica. A porcentagem de entrevistados que disse consumir todo dia feijão, arroz, açúcar, pão, margarina e óleo é maior na ponta pobre da amostra (renda mensal familiar de dois a cinco salários mínimos) do que na ponta rica (acima de vinte salários mínimos). No caso do feijão, a diferença pró-pobres alcança 24 pontos percentuais; no do arroz, 20 pontos. O inverso (maior consumo diário entre os mais ricos) se dá principalmente nestes casos, queijo, frutas, verduras, legumes, carne e leite, com diferenças de 35 pontos (queijo) a 16 pontos de porcentagem (carne bovina).

Esses dados confirmam que no Brasil as distinções de renda não se manifestam com todos os seus prodigiosos efeitos na hora das refeições: como já se viu quando a pesquisa arrolou os pratos que mais vão à mesa nas capitais investigadas, o cardápio que nutre a grande maioria da população é basicamente o mesmo. O que muda é a freqüência—e, com toda a certeza, a quantidade —com que certos alimentos aparecem nas mesas dispostas ao longo da escala social. Os produtos mais mencionados no segmento pobre têm em comum o fato de serem ricos em carboidratos, servindo portanto para fornecer a energia exigida pelas atividades diárias. (O feijão é ainda valiosa fonte de proteína e de ferro.) Faz sentido terem sido citados notadamente pelos homens.

Já os alimentos presentes na dieta cotidiana de um número maior de entrevistados mais ricos (e, com exceção da carne, do sexo feminino) contêm apreciáveis quantidades de proteínas e de micronutrientes (vitaminas e minerais), o que os torna essenciais ao bom funcionamento do organismo. O consumo de um alimento em particular serve de contraprova: um terço dos mais pobres raramente ou jamais come peixe; entre os mais ricos, porém, essa parcela não chega a um quinto. Do lado pobre, em suma, agrupam-se os alimentos que o povo chama "fortes"; do lado rico, ficam os alimentos "nobres". O economista Fernando Homem de Melo, da USP, e a professora Maria Antonia Martins Galeazzi, diretora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da Unicamp, identificaram a propósito um comportamento típico: sempre que aumenta a renda de um grupo, seu padrão de consumo de alimentos tende a ficar parecido com o do segmento mais rico, mesmo quando nenhum outro hábito se altera.

De um lado a outro do país, a cesta básica inclui quase sempre os mesmos produtos. Novamente, é a freqüência do consumo que varia— sendo as diferenças, porém, bem menores do que aquelas associadas à condição econômica. A principal exceção é a farinha de mandioca. Dois terços dos entrevistados em Belém e um terço no Recife consomem-na todo dia; na média das outras cidades, seus apreciadores mal vão além de um décimo. Da mesma forma, quatro em dez paraenses incluem o charque pelo menos numa refeição por semana—quase o quádruplo da média geral. Belém, aliás, se distingue por ser a capital onde, em graus variados, o consumo cotidiano supera a média geral em sete outros casos ainda: carne bovina, leite, margarina, pão, açúcar, arroz e óleo. Ali, curiosamente, também disseram comer carne bovina todo dia 60% dos entrevistados mais pobres—e apenas 34% dos mais ricos—, o que diverge radicalmente do padrão nacional.

A situação de Porto Alegre é também muito peculiar. Os gaúchos fecham, de longe, a raia dos números referentes ao consumo diário de nada menos de nove itens, notadamente ovos, verduras cozidas, manteiga, carne bovina e frutas. Em compensação, lideram proporcionalmente o consumo semanal de três desses produtos, verduras, carne bovina e ovos (e ainda batatas). Isso indica uma predileção por dois cardápios bem diferentes —um para os dias úteis, outro para os domingos. E, de fato, como a pesquisa demonstra, os almoços domingueiros em Porto Alegre, à diferença de qualquer outra capital estudada, celebram as delícias de um prato clássico ali: churrasco com maionese.

Questões de gosto

A terceira e última reportagem com base nos resultados da pesquisa sobre os hábitos alimentares dos brasileiros, promovida por SUPERINTERESSANTE, examina de perto, entre outros temas, o paladar da população: o prato mais apreciado do cardápio cotidiano, a comida dos sonhos de cada qual e a mais apetitosa refeição completa.

Dinheiro, sempre o dinheiro. O fator econômico parece ser a única barreira capaz de se interpor entre o brasileiro e o seu prato, pelo menos no caso da absoluta maioria dos habitantes das grandes cidades. Para eles, impedimentos ou limitações de outra natureza, como os relacionados à saúde ou a crenças religiosas, por exemplo, mal se manifestam. De fato, os números finais do inquérito sobre os hábitos alimentares da população, encomendado por SUPERINTERESSANTE à empresa Feedback Serviços de Pesquisa, de São Paulo, revelam que apenas 15% dos entrevistados sujeitam-se a algum tipo de dieta ou restrição ao comer.

Das 1200 pessoas ouvidas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Belém, não mais de 88 — entre elas, 62 mulheres — cumpriam ordens médicas de não ingerir determinadas substâncias (sal, gorduras). Três em cada quatro entrevistados jamais estiveram “de regime” e somente sete em cem tinham intenções nesse sentido. Eram mulheres também dois em três cidadãos que à época da pesquisa não comiam tudo o que gostariam, por motivos de controle de peso. Está-se falando, de qualquer forma, de uma minoria da ordem de 5% da amostra (chegando a 13% no grupo mais rico).Talvez devessem juntar-se a eles outros brasileiros — ou melhor, brasileiras. Pois mais de um quarto dos homens e praticamente a metade das mulheres informaram estar acima do peso. Esse predomínio feminino, que elas decerto jamais quiseram conquistar, mas deve ser uma das tais realidades da vida, tanto que aparece igualmente pelo mundo afora, já havia sido constatado pela Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN), realizada pelo governo federal em 1989. Segundo o estudo, cerca de um terço da população adulta pesa mais do que devia e um sexto, menos.

O fato é que, apesar de ter virado moda em certos ambientes, a idéia de praticar regularmente esportes ou ginástica está longe de apetecer à maioria da população: sete em dez entrevistados disseram que nunca ou raramente se exercitam. O restante, capaz de superar a preguiça física ao menos uma vez por semana, forma um time caracteristicamente jovem (45% no segmento de até 19 anos), de classe média para cima (47% dos que recebem mais de vinte salários mínimos) e masculino (41% ). Uma parcela das mulheres poderia ao menos alegar que já se movimenta bastante de sol a sol, ao desincumbir-se dos chamados afazeres domésticos, para ainda ter de suar a camiseta em academias esportivas.Com efeito, 90% das donas de casa ouvidas na pesquisa têm vida ativa, às vezes até demais — contra 66% no conjunto da amostra. O terço que se enquadra na tão difamada categoria dos sedentários, além de incluir mais homens do que mulheres, compõe-se principalmente, como seria de esperar, de profissionais de nível superior, na faixa mais alta de rendimentos.

Compreende também, em proporção, mais adolescentes do que membros de qualquer outro grupo de idade: esses, com toda probabilidade estudantes, pelo menos tendem a compensar o sedentarismo compulsório malhando numa parte do tempo livre.Volte-se à mesa, porém, e para um tema decididamente mais saboroso. Este brasileiro, que liga tão pouco para ginásticas e regimes, o que será que realmente gosta de comer? Para descobrir o ponto certo da resposta, a pesquisa desdobrou a pergunta em três. Primeiro, pediu-se aos entrevistados que informassem qual o seu prato predileto, entre os alimentos que fazem parte do cardápio habitual. Depois, pediu-se que identificassem o seu prato ideal — aquele que, caro ou barato, consumido normalmente ou não, de preparo fácil ou difícil, disponível ou raro, mais Ihes dá água na boca.

Por último, pediu-se que escolhessem, entre quatro refeições completas descritas no questionário, a que mais Ihes fala ao paladar, também independente de qualquer outra consideração.Na questão do prato predileto, nota-se de saída uma alta concentração de respostas em volta de um punhado de alternativas apenas. Isso, na verdade, confirma algumas características do padrão nacional de alimentação já reveladas pelo exame de outros resultados da pesquisa: 1) o brasileiro das grandes cidades tende a montar a sua dieta a partir de um rol relativamente restrito de possibilidades; 2) a localização geográfïca pesa nessas escolhas menos do que se imagina, fazendo com que a cesta básica do país seja bastante homogênea; 3) a renda tampouco é um fator decisivo na discriminação do gosto entre as pessoas.Pratos cuja personagem central é a carne são os preferidos da maioria absoluta no conjunto das capitais investigadas. Mesmo em São Paulo, onde a porcentagem de carnívoros é proporcionalmente menor, eles são quase a metade do total. E chegam perto de dois terços em Porto Alegre, o que dispensa comentários. A carne, quando aparece, faz a alegria da mesa do pobre — outra realidade que não deve surpreender.

Esse foi, em proporção, o alimento mais citado como predileto no segmento de renda mais rasa, de dois a cinco salários mínimos por mês, ficando com dez pontos percentuais acima da média dos demais grupos de renda. Tipicamente, o carnívoro pertence ao sexo masculino e tem entre 40 e 49 anos — uma boa idade para vigiar o colesterol.A carne que o brasileiro mais aprecia na vida real nada tem de exótico. Trata-se singelamente do bom e velho (no sentido figurado, espera-se) bife. Simples, grelhado, a cavalo, ou à milanesa, ou ainda rolê, é a preferência de um quinto dos entrevistados e de quase um quarto entre os mais pobres e os adolescentes. Entre os gaúchos quase um terço. Só os pernambucanos mantêm distância do bife, preferido por magros 6% dos moradores do Recife, menos do que os que se deliciam com carnes cozidas ou assadas, frangos e galinhas e — finalmente, um regionalismo em cena — carne-de-sol.Puxadas principalmente pelos paulistas, pelas mulheres e pelo pessoal na casa dos 20 anos, as massas (leia-se, macarronada) ganharam a medalha de prata na competição das preferências entre os alimentos normalmente consumidos.

Foram citadas no total por uma em cada quatro pessoas. É possível que, se a escolha se restringisse às comidas de restaurantes, a pasta destronaria a carne. Afinal, segundo um levantamento junto a 1 200 estabelecimentos de todo o país, feito pelo Guia Quatro Rodas em 1989, cinco dos dez pratos mais comuns nos cardápios são espaguetes, raviólis e pizzas. (Na presente pesquisa, a massa não perde por esperar.) Consumidos por uma minoria, peixes e frutos do mar são os preferidos de pouquíssimos brasileiros também — apenas 6%. Ali onde o consumo é mais freqüente. Maior igualmente é a preferência: em Belém, saudáveis 21% declararam-se fisgados por pirarucus, tucunarés e assemelhados de rio e mar.Das bebidas a que está acostumado, o brasileiro dá aos refrigerantes duas vezes mais preferência do que aos sucos de frutas e cervejas e quatro vezes mais do que aos vinhos. Sem surpresa, o refrigerante derrama-se absoluto sobre a população mais jovem: para seis em dez adolescentes (uma vez e meia acima da média geral) é a maneira predileta de matar a sede.

É ainda por excelência a bebida dos cariocas, mas faz pouca espuma entre os pernambucanos. Cercados por uma profusão de graviolas e ciriguelas, cajus e cajás, umbus e mangabas, os habitantes do Recife preferem os sucos às colas e sodas na proporção de 39% a 25% — um resultado que fará a alegria dos naturalistas e que não se repete nem mesmo em Belém, com todos os seus cupuaçus e açaís.Em nenhuma capital a cerveja tem tantos adeptos como em Porto Alegre, onde só perde para os refrigerantes como bebida predileta. Vinho? Que a turma de Bento Gonçalves não leve a mal, mas é a opção primeira de apenas 10% dos entrevistados gaúchos, mencionada por eles menos do que pelos paulistas, cariocas e até paraenses. Do mesmo modo que a cerveja aparece como a bebida clássica do homem em geral, o vinho inebria especialmente os mais ricos (e os paulistas).

É um gosto adquirido: de 3% de votos entre os jovens, transborda para o quíntuplo disso entre os que já tiveram quatro décadas de vida para aprender.O mundo da fantasia, onde por definição tudo é permitido e de onde em tese saem as respostas a perguntas do tipo “qual o seu prato ideal?”, tem mais matizes do que o mundo de verdade onde é preparado o prato predileto de cada um. A imaginação comparece à sala de refeições com uma respeitável carta de diferenças entre os entrevistados. Idade, sexo, renda e, agora sim, geografia orientam as respostas. Em comparação com o quesito anterior, aumenta consideravelmente também o número de opções mencionadas: nada menos de quinze pratos tiveram no mínimo 3% de indicações.Mas não se pense que, solicitado a devanear com comida, o brasileiro se entregue a um festim mental de extravagâncias digno de um gourmet de caricatura: iguarias de nobilérrima reputação, como caviar e salmão, faisão e perdiz, trufas e endívias, definitivamente não freqüentam o imaginário alimentar do país — nem nas fatias de renda robusta.

“Às vezes, mais difícil que enriquecer é acostumar-se aos queijos e vinhos da nova vida social”, escreveu anos atrás o economista Cláudio de Moura e Castro, um pesquisador de veia irônica que entende de alimentação e de Brasil. Com efeito, mesmo quando pode nutrir-se de fantasia, o paladar nacional tem um quê de feijão com arroz. O prato dos sonhos sai do mesmo forno que o da realidade, talvez porque os homens desejem em primeiro lugar aquilo que conhecem. Senão, como explicar que a lasanha — robusta, vistosa, porém irremediavelmente trivial — tenha sido o prato ideal mais citado? Camadas de folhas de massa cozida, intercaladas com fatias de presunto e muçarela, polvilhadas com queijo ralado e carne moída e levadas ao forno para gratinar — eis a rústica confecção que uma amostra representativa da população urbana do país considera o supra-sumo da comida (e, talvez por isso mesmo, faz dela um dos costumeiros atrativos na mesa dominical, como já se viu).Registre-se, desde logo, que se tratou de uma votação dispersa, tanto que a lasanha vencedora não arrebatou mais de 12% do total de menções. Mas o vice-campeão, com 9%, tampouco poderia ser mais corriqueiro — o bife, não por acaso o mesmo bife contemplado com o troféu “prato predileto”.

Ou seja, para algo como um em dez cidadãos, a comida ideal é simplesmente a de que mais gosta entre aquelas que já fazem parte da rotina alimentar. A presença em terceiro lugar do mais distinto camarão (empatado com a feijoada, aliás) não briga com a tendência geral: o crustáceo peneídeo só chegou a essa posição por ter sido o mais citado pelos entrevistados de Belém, onde não faz figura de acepipe do outro mundo. Graças a esse mesmo tempero da familiaridade, a lagosta abocanhou no Recife duas vezes mais votos (8% ) do que na média nacional.Das seis capitais pesquisadas, a lasanha saiu consagrada em Porto Alegre, São Paulo e Recife, terminou vice em Belo Horizonte e pegou bronze no Rio e em Belém. Quem mais gosta dessa criação dos cuochi da região italiana de Bolonha, dos idos de 1750, segundo o crítico gastronômico Sílvio Lancelotti,, que aportou por aqui no começo do século, são, pela ordem, os adolescentes, as mulheres e os mais pobres. Por que será? Insondáveis são os mistérios do paladar, mas parte da resposta talvez esteja no fato de tratar-se de um alimento apetitoso, fácil de comer e que dá aquela sensação de saciedade.

Já o honesto bife de todas as latitudes é o prato ideal dos mineiros, dos cariocas, dos homens, dos quarentões e, em segundo lugar, dos mais pobres. No grupo de até cinco salários mínimos, por sinal, os três pratos mais cotados concentram além de um terço dos votos, mais do que em qualquer outra faixa de renda. Os números parecem ensinar que — mesmo no reino do ideal — quando os rendimentos são parcos, estreito é o leque de escolhas.A feijoada, que a tradição autorizaria supor fosse para muita gente a delícia das delícias, só conquistou um lugar no pódio dos alimentos mais desejados graças à gula dos paulistas: em São Paulo, os que se declararam vidrados na borbulhante mistura de feijão-preto e enxundiosas carnes de segunda superaram os cultores do austero bife. Como se sabe, o nome pelo qual o sabático prato afro-brasileiro é mais conhecido é feijoada carioca. Seria o caso de perguntar por quê. No Rio, nada além de quatro entrevistados em cem a consideram comida ideal: seu cartaz não se compara nem ao da peninsular macarronada nem ao de outra alienígena iguaria que desfrutou dias de glória por aqui nos anos 50 — o guisado de origem russa chamado stroganoff, que nos cardápios virou strogonoff e no Aurélio, estrogonofe.

Confirmando os dados sobre a qualidade das diferenças entre os sexos no consumo de alimentos, invariavelmente mais homens do que mulheres escolheram como seu prato ideal “comidas fortes”: carnes (bifes, assados, churrascos) e feijoada. O contrário acontece quando o ideal está nas massas, no camarão e no stroganoff. Na vertente da idade, resultado curioso é a concentração do eleitorado da feijoada no grupo dos mais velhos. Na população de 50 anos para cima, eles são em termos absolutos duas vezes mais numerosos do que na média das outras faixas — e 26 vezes mais do que entre os adolescentes. Visto que a turma da terceira idade não se destacou na minoria que em outra passagem da pesquisa informara comer feijoada regularmente, tudo indica que se está diante de um rematado caso de nostalgia.Para fechar o círculo das preferências alimentares da população, os entrevistados foram convidados a escolher, levando em conta exclusivamente a satisfação do paladar, uma de quatro refeições inteiras (prato, sobremesa e bebida) inventadas pela pesquisa.

Ao mesmo tempo, SUPERINTERESSANTE organizou uma espécie de júri informal especializado, ao ouvir um total de vinte nutricionistas, nas mesmas capitais onde se realizou o inquérito, para que avaliassem esses cardápios do ponto de vista científico e em seguida fizessem suas escolhas pessoais pelo puro critério do gosto.A primeira refeição — arroz, feijão, bife, salada, goiabada com queijo e limonada — reflete aproximadamente o padrão alimentar brasileiro do dia-a-dia. “É ótima, sem defeitos. Come-se todo dia e não enjoa nunca. Se for a preferida da maioria, é prova de que a voz do povo é a voz de Deus”, entusiasmou-se a gaúcha Rosa Maria de Souza, da Escola de Nutrição do Instituto Porto Alegre. “Se todo brasileiro pudesse fazer essa refeição todos os dias seria ótimo”, aplaudiu Sônia Bittencourt, da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz, no Rio de Janeiro. “Equilibrada do ponto de vista qualitativo, mas energética demais para pessoas sedentárias. Eu trocaria o doce por uma fruta”, ressalvou Marlene Trigo, da Faculdade de Saúde Pública da USP.A segunda refeição — macarronada ao molho de tomate com almôndegas, torta de nozes e cerveja — inspira-se no cardápio dominical da maioria.

“Calórica demais para entrar na rotina alimentar das pessoas”, vetou Eliete Salomon Tudisco, da Escola Paulista de Medicina. “Muito carboidrato e pouca proteína”, criticou Ana Lúcia da Conceição Pinto, da empresa Master Food, do Rio de Janeiro. “Muito carboidrato e nenhuma fibra”, apontou em Belo Horizonte a pesquisadora Patrícia Maia, formada pela Universidade Federal de Ouro Preto. “Falta uma saladinha, uma fruta...”, encaixou Ivete Ciconet Dorneles, nutricionista do Grêmio de Futebol Porto-alegrense.A terceira — filé de peixe grelhado com batata cozida e creme de espinafre, mamão e suco de laranja — reproduz com pequenas variações o menu light, seguido supostamente por aqueles que têm um olho nos números da balança e outro nas últimas sobre os males do colesterol. “Muito boa, com a vantagem de que no Norte peixe custa menos do que carne. Mas podia vir com arroz-feijão”, analisou Walter da Silva João, diretor do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará, em Belém.

“Seria uma maravilha, se em vez de creme de espinafre tivesse apenas espinafre batidinho”, receitou no Rio Haydée Serrão Lanzillotti, da Universidade Federal Fluminense. “O espinafre poderia ser substituído pelo jerimum”, preferiu Sônia Lucena de Souza Andrade, presidente do Conselho Estadual de Nutrição de Pernambuco, chamando a abóbora pelo nome indígena usado no Nordeste.A última colação, enfim — cheeseburguer duplo-salada com fritas, sorvete com calda de chocolate e farofa doce, refrigerante —, é uma paródia do fast food que todo jovem conhece. Quase todos os nutricionistas ficaram horrorizados. “Pode pôr no lixo”, fuzilou Adyles Mezzomo, presidente do Conselho Regional de Nutricionistas do Rio Grande do Sul. “Abominável”, acusou Ihani Beatriz Torquato, da empresa Nata, em Belo Horizonte. “Engorda, faz mal à saúde e não alimenta”, arrasou Silvia Franciscato Cozzolino, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. “Nem no McDonald’s se vê uma mistura dessas”, comparou Sandra Albuquerque, da Universidade Federal de Pernambuco. “Vixi”, resumiu a carioca Sônia Bittencourt, da Fiocruz.O corpo de nutricionistas premiou a refeição à base de peixe com dez sufrágios, só um a mais do que os concedidos ao arroz-feijão-bife. É aquilo que as pesquisas eleitorais chamariam empate técnico.

Todos os paulistas preferiram o peixe. Todos os cariocas, menos um, escolheram o bife. Ninguém quis a macarronada. Auxiliadora Menezes de Souza, do Departamento de Nutrição da Universidade Federal do Pará, ficou, sozinha. com o cheeseburguer e companhia. Sua declaração de voto: “É uma refeição cheia de coisas deliciosas. Me daria mais prazer”. E os mortais comuns? Os nutricionistas aparentemente podem suspirar aliviados. Três entrevistados em quatro optaram por um dos dois cardápios abençoados pelo saber científico: pediram peixe 39%; arroz-feijão, 37%. A maioria da minoria (14% ) cravou macarrão e somente 9% foram para o cheese-salada. Devidamente debulhados os números, fica-se sabendo quem é quem em cada partido. A confraria dos apreciadores do filé de peixe grelhado e seus elegantes pertences acolhe tipicamente os mais instruídos, os mais ricos, os quarentões, os moradores de Belém do Pará e as mulheres. Nehuma surpresa, portanto. Pode ser, no entanto, que uma parcela desse eleitorado tenha votado menos por gosto do que por julgar a alternativa “certa”.

Afinal, o peixe não faz parte do cardápio cotidiano na quase totalidade dos lares pesquisadas (embora em 38% dos casos seja consumido ao menos uma vez por semana).No território dos fatos previsíveis, não admira que os adeptos do bife com feijão e arroz se localizem principalmente na ponta pobre e menos instruída da amostra (sobretudo entre os pernambucanos e cariocas). É um contingente de perfil similar ao dos que gostam mais de macarrão, caracterizado pela baixa renda e escolaridade mínima ou nenhuma (nesse caso, com ligeiro predomínio de gaúchos). E a patota do burguer não podia ser outra: reúne quase um terço dos entrevistados jovens. Nutricionistas e adolescentes, pelo visto, estão precisando almoçar juntos um dia desses para ter uma conversa franca sobre comida. Os pais talvez devessem aparecer também.

Pois, como lembra a nutricionista carioca Elizabeth Luiza de Souza, “as mães, sem tempo ou vontade de ir para a cozinha, levam os filhos às lanchonetes, imaginando que estão Ihes proporcionando uma alimentação equilibrada”.SUPERINTERESSANTE agradece aos especialistas ouvidos na fase de preparação da pesquisa: o professor José Eduardo Dutra de Oliveira, da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto; a professora Maria Antonia Martins Galeazzi, diretora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alirnentação da Unicamp; a socióloga Anna Maria Medeiros Peliano, do Ipea, e a nutricionista Flora Spolidoro, de São Paulo. A responsabilidade pelo questionário e pela análise dos resultados é exclusiva da revista.

A FOME VISTA DE PERTO

O que falta no prato do povo e o mal que isso acarreta: os feios resultados de duas grandes pesquisasSeparados por quinze anos, dois levantamentos nacionais guardam a mais opulenta coleção de informações a respeito dos hábitos alimentares e do estado nutricional da população. Foram sondagens apropriadas ao porte do problema, de tal forma que tudo o que se vem dizendo a sério sobre alimentação no país não é senão um diálogo com seus resultados. Eles acendem um holofote impiedoso sobre a panela do brasileiro. Provam que o seu tamanho, assim como o que acontece quando ela é menor que o desejável são realidades inseparáveis da renda dos cidadãos.Entre agosto de 1974 e agosto do ano seguinte, 55 000 famílias de todo o país tiveram um pedaço importante de sua intimidade devassado pelo IBGE. Instalados durante uma semana em cada casa e treinados para cercar por todos os lados os gastos das famílias com comida, os pesquisadores chegaram a pesar os produtos consumidos.

Graças a tamanha bisbilhotice, o Endef (Estudo Nacional da Despesa Familiar), como se chamou essa pesquisa pioneira de 12 milhões de dólares pôde conhecer a quantidade de alimentos, calorias e proteínas ingeridos todo dia pela população.Muito depois, entre julho e setembro de 1989, 62 000 brasileiros foram eles próprios pesados e medidos pela PNSN (Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição). Concebida pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, do Ministério da Saúde, com apoio técnico do IPEA, a investigação partiu da premissa de que centímetros e quilos revelam, melhor do que qualquer outra informação singular, se um povo 6. come direito. 6. A relação altura/idade, em especial, é tida como “o indicador-síntese das condições de vida de uma nação”, porque identifica a 4. desnutrição. 4 crônica.A principal descoberta do Endef foi que dois em cada três brasileiros não chegavam a consumir as 2 248 calorias diárias que se convencionou internacionalmente considerar necessárias para o desempenho normal das atividades de um adulto sadio.

O consumo médio contabilizado pelo estudo foi de 2 132 calorias. Em 64% dos casos, a carência que os nutricionistas denominam débito calórico oscilava entre 200 e 400 calorias. Nada que um bom almoço todo dia não resolvesse: 100 gramas de feijão com arroz contêm 390 calorias. Em 1975 havia pelo menos 13 milhões de brasileiros desnutridos, mais do que uma São Paulo inteira, em números de hoje. Em compensação, essa ficção estatística chamada brasileiro médio estava bem-servida de proteínas, consumindo 64 gramas por dia, 11 a mais do que o padrão recomendado. Outro estudo do IBGE, em onze regiões metropolitanas, a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), de 1988, cujos resultados começaram a ser divulgados em junho último, revela que, em média, o brasileiro consome 1,03 quilo de comida por dia, incluídos 193 gramas de laticínios e 84 de carnes e pescados. Na média, o brasileiro gasta um quarto do que ganha para comer.

Os mais pobres gastam 44%. Os mais ricos, 17%.Já os números produzidos pelas fitas métricas do PNSN somam um relato de boas e más notícias. A grande má notícia é que, por falta de alimentação adequada, principalmente nos primeiros meses de vida, um brasileiro (ou brasileira) de 25 anos é 7 centímetros menor do que um americano (ou americana) da mesma idade. Se for homem, sua estatura equivalerá à de um americano de 15 anos; se for mulher, à de uma americana de 12 ou 13. (A relação altura/idade na população dos Estados Unidos é o termo de comparação adotado no mundo inteiro.) A boa notícia é que o brasileiro ficou menos baixinho. Em todas as idades, até o limite de 18 anos, o brasileiro de hoje é mais alto que o de 1975. O ganho maior ocorreu entre os meninos de 1 ano: 2,6 centímetros.Isso à primeira vista provaria que o brasileiro passou a comer melhor. Os especialistas, no entanto, preferem explicar o avanço como o resultado de uma série de mudanças, ocorridas nos anos 80, que influem direta ou indiretamente na química do organismo. Na esfera pública, a melhoria do sistema de saúde e a expansão dos serviços de saneamento. Na vida particular, a forte queda das taxas de fecundidade, que fez aumentar a renda familiar por pessoa.

A rigor. ninguém tornou a se instalar nos lares do país para pesar o seu pão de cada dia e responder se os centímetros adicionais adquiridos pela população procedem de pratos mais bem servidos. O único indício não é muito otimista. Trata-se de uma pesquisa de orçamentos realizada entre 1982 e 1983 pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos de São Paulo) junto a 773 famílias paulistanas. A investigação confirmou o achado do Endef de que faltam calorias, e não proteínas, nas mesas nacionais. E capturou situações de desnutrição em todas as classes de renda: metade das famílias no grupo mais pobre (meio salário mínimo per capita) e um décimo no grupo menos pobre (três ou mais salários mínimos per capita) estavam inadequadamente alimentados. Os números do Dieese e do Endef autorizam concluir que a raiz da desnutrição não está numa suposta diversidade de hábitos alimentares, mas nas quantidades consumidas, ou seja, no poder de compra de cada família, pois ricos e pobres de todas as regiões tendem a recorrer, ainda que em proporções diversas, a um mesmo conjunto básico de alimentos.Dieese e Endef chamam a atenção para uma perversidade do modelo brasileiro de (des)nutrição: supõe-se que as pessoas que ingerem menos calorias do que precisam — notadamente, os nordestinos — acabam transformando parte das proteínas de sua dieta em combustível a ser queimado no dia-a-dia.

Ruim para o bolso, pior para a saúde. De um lado, porque proteínas custam mais do que calorias. De outro, porque o organismo corre o risco de se privar da matéria-prima que regenera as células e protege os tecidos. Além disso, quando se diz que uma população, em média, consome as proteínas de que necessita, se diz também que uma parte dela nem isso consegue, faltando-lhe portanto calorias e proteínas.Essa é a realidade por trás dos números geralmente mal-encarados do PNSN sobre a altura, o peso e a idade dos brasileiros. Como o de que na faixa de até 5 anos de idade, a julgar pelos quilos que Ihes faltam, quase um terço (31%) das crianças são desnutridas. No Nordeste, duas em cinco crianças apresentam algum grau de desnutrição aguda. Por outro lado, 16% dos brasileiros adultos têm baixo peso (menos de 58 quilos para

70m de estatura). Também aqui, no entanto, o país melhorou. Entre 1975 e 1989, o total de desnutridos na população até 5 anos diminuiu de 7,9 milhões para 5 milhões. Só que diminuiu menos onde deveria diminuir mais — no Nordeste.Mesmo um exame superficial dos dados do PNSN permite enxergar algo para o qual o Endef já alertava quinze anos antes: o fator renda. As crianças com desnutrição crônica se concentram nas famílias cuja renda mensal é inferior a dois salários mínimos. Em todas as idades, o déficit de altura aumenta à medida que cai a renda familiar — e é sempre maior no meio rural. E, se 20% dos jovens adultos brasileiros são tecnicamente nanicos (pelo seu grau de afastamento da estatura média dos americanos), na população que recebe até 0,25 salário mínimo o nanismo atinge 37% do total. Nanismo, advertem os cientistas, é muito mais do que uma problema de aparência. É a prova de que a plena manifestação do potencial genético de um grupo humano foi bloqueada. O culpado é aquilo que os estudiosos designam como agravo ambiental e que qualquer brasileiro pode identificar numa palavra: fome.

Principais resultados da pesquisa (parte 3)

Estão com peso certo 48%

Estão acima do peso 39%

Estão abaixo do peso 13%

Praticam esporte ou ginástica:

raramente ou nunca 71%

uma ou duas vezes por semana 15%

três ou mais vezes por semana 14%

Nunca fizeram regime 73%

Já fizeram 11%

Estão fazendo 10%

Vão fazer 7%

Têm restrições alimentares:

nenhuma 85%

de ordem médica 7%

de controle de peso 5%

de ordem filosófica 2%

de ordem religiosa 1%

Seu prato predileto é:

carne 52%

massa 24%

peixe 6%

arroz-feijão 4%

salada 4%

feijoada 3%

Seu prato ideal é:

lasanha 12%

bife 9%

feijoada 7%

camarão 7%

stroganoff 6%

Sua refeição predileta é:

filé de peixe, batata, espinafre, mamão 39%

arroz, feijão, bife, salada, doce, queijo 37%

macarrão, almôndegas, torta 14%

x-salada, fritas, sorvete 9%

Sua bebida predileta é:

refrigerante 40%

suco 21%.

Texto de Luiz Weis, Carla Leirner e Márcia Alves publicado em três reportagens da Revista 'Super Interessante' ('O Brasil Vai a Mesa', 'Aprendendo a Comer' e 'Questões de Gosto'). Digitalizado, editado e adaptado para ser postado por Leopoldo Costa.


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