12.21.2011

ALEIJADINHO É UMA FICÇÃO DA LITERATURA




Um personagem comum entre os artistas do romantismo é o belo-horrível. Trata-se de uma figura horrenda, defeituosa e atormentada que é capaz de praticar as ações mais encantadoras.

Uma história bastante conhecida com esse tipo de personagem é 'A Bela e a Fera', conto bem popular na França já no século 18. A jovem Bela, filha humilde e gentil de um comerciante, toca o coração da Fera, um ser assustador que aos poucos se revela um homem bom. A mesma figura está no romance Frankenstein ou o Moderno Prometeu, escrito em 1818 pela inglesa Mary Shelley, que conta o estranho caso do monstro criado pelo jovem cientista Victor Frankenstein. Apesar de a toda hora ser agredido pelas pessoas comuns por causa de sua aparência monstruosa, o homem artificial consegue se instruir e aprender o comportamento moral. Pensa até mesmo em se matar para se redimir de seus crimes e deixar os humanos em paz.  Um terceiro exemplo, talvez o melhor de todos, foi criado em 1831 por Victor Hugo: Quasímodo, o corcunda de rosto deformado do romance Notre-Dame de Paris. Adotado quando criança por um cardeal, Quasímodo cuida dos sinos na torre da Catedral de Notre-Dame. Raramente sai de lá, pois sua feiura espanta e provoca o desprezo dos cidadãos. No desenrolar do livro, enquanto as pessoas comuns e decentes cometem atos monstruosos, o monstro da história cultiva um amor genuíno à jovem cigana Esmeralda. Quasímodo, a Fera e o monstro do doutor Frankenstein exemplificam a ideia romântica de que a beleza teria uma raiz pouco racional. Dependendo da intuição e da sensibilidade de seu criador, o sublime poderia nascer do repugnante.
Em 1858, Rodrigo Ferreira Bretas, um jurista, deputado estadual e diretor de ensino de Ouro Preto, resolveu escrever a biografia de Antônio Francisco Lisboa, um dos tantos artesãos que construíram os adornos e as igrejas durante a corrida do ouro de Minas Gerais. O escultor havia morrido quase cinco décadas antes e era um mistério. Corria a lenda popular de que ele tinha uma ou as duas mãos paralisadas por alguma doença, o que viajantes estrangeiros que estiveram em Minas incluíram em seus relatos.

Mas nenhum documento da época ou texto mais confiável certificava a história ou dava detalhes. Apesar da escassez de fontes, o intelectual mineiro não se conteve. Publicou no Correio Oficial de Minas um relato minucioso, contando a trajetória de vida, detalhes de personalidade e episódios trágicos. A partir dos 47 anos, Antônio Francisco Lisboa teria sofrido de uma doença desconhecida, provavelmente sífilis ou lepra, que o fizera perder os dedos, os dentes, curvar o corpo, não conseguir andar a não ser de joelhos e mutilar-se, numa tentativa dramática de que a dor nos membros diminuísse. Em poucos meses, teria se transformado num monstro.

Escreveu Bretas: As pálpebras inflamaram-se e, permanecendo neste estado, ofereciam à vista sua parte interior, perdeu quase todos os dentes e a boca entortou-se como sucede frequentemente ao estuporado, o queixo e o lábio inferior abateram-se um pouco, assim o olhar do infeliz adquiriu certa expressão sinistra e de ferocidade, que chegava mesmo a assustar a quem quer que o encarasse inopinadamente.

Bem ao costume do romantismo, o estilo literário de seu tempo, o biógrafo criou a história de uma pessoa defeituosa e assustadora que teria executado, com as ferramentas amarradas ao braço, as obras mais belas do barroco mineiro. A esse personagem fascinante, ao mesmo tempo horrível e sublime, monstruoso e genial, Bretas deu o nome de Aleijadinho.

Muito já se discutiu sobre o que é ou não verdade na história da vida de Aleijadinho - na década de 1990, o pesquisador Dalton Sala chegou a questionar se o escultor tinha alguma enfermidade ou mesmo se existiu. Os arquivos de Minas Gerais já foram diversas vezes vasculhados na tentativa de achar uma menção a sua doença, mas o máximo que se conseguiu foram alguns recibos assinados por Antônio Francisco Lisboa.

Esses documentos, similares aos de outros artesãos que trabalhavam para as irmandades mineiras, comprovam a existência de um artífice com aquele nome, mas nada mencionam sobre sua vida, personalidade, doença ou sobre o apelido ”Aleijadinho”.


A feiúra da criatura de Bretas lembra a do corcunda de Notre-Dame, descrito assim por Victor Hugo ”A careta era o próprio rosto, ou melhor, a pessoa toda era uma horrível careta: uma cabeça grande ouriçada de cabelos ruivos, entre os dois ombros, uma corcunda enorme da qual o contragolpe se fazia sentir na parte frontal de seu corpo, um sistema de coxas e de pernas tão estranhamente tortas que se tocavam apenas por meio dos joelhos”.

A filósofa e escritora Guiomar de Grammont, autora de uma tese de doutorado da Universidade de São Paulo que resultou no excelente livro 'Aleijadinho e o Aeroplano', publicado em 2008, preferiu entrar nessa polêmica de outro modo. Ela mostrou como as histórias contadas por Bretas e outros escritores são ecos de personagens e cenas da literatura.

”Compreendemos ‘Aleijadinho’ como um personagem literário, sucessivamente reconstruído na história do pensamento em letras e artes no Brasil, de acordo com os interesses do momento em que se produzia cada discurso sobre o tema”, escreveu ela. Além do clichê belo-horrível, Antônio Lisboa ganhou outros traços de artista romântico: o indivíduo isolado de seus semelhantes e de genialidade espontânea. Autodidata, sem ”mestres científicos”, como contou Bretas, o homem entocava-se em igrejas, separado do mundo com cortinas improvisadas, para poupar os passantes de topar com suas chagas.

A biografia lembra também histórias sobre os mestres do Renascimento. Assim como Michelangelo teria feito com o papa Júlio Segundo, o Aleijadinho de Bretas deixou cair, de propósito, pedaços de granito na cabeça de um general que vistoriava seu trabalho. Como Rafael, vingou-se de um desafeto usando o rosto dele como modelo de uma de suas obras.


O personagem do monstro genial era tão fantástico e verossímil para a época que seu criador logo se consagrou. Bretas ganhou de dom Pedro II o prêmio da Ordem da Rosa, destinado aos grandes artistas da nação, e virou sócio-correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. O instituto incentivava autores regionais a escrever biografias sobre filhos ilustres e vultos notáveis das províncias, numa tentativa de fazer os brasileiros terem um pouquinho de orgulho do país.  O maior êxito de Bretas foi ter seu texto erigido à condição de documento de um personagem histórico. O que era para ser uma dessas curiosas lendas locais, que dão cor às cidades históricas e alimentam a fala dos guias turísticos, virou ícone nacional. Com o passar dos anos, o universo de Aleijadinho foi crescendo e se cristalizando como realidade, a partir do esforço avassalador de estudiosos modernistas, que enxergavam no escultor uma das raízes da cultura autenticamente brasileira, de médicos a dar detalhes de sua doença, de historiadores a falar de sua infância como assistente do pai, o arquiteto português Manuel Francisco Lisboa, de críticos a apontar intenções psicológicas que explicariam o seu trabalho, e de moradores a atribuir ao escultor sem mãos a autoria de centenas de obras de Ouro Preto, Mariana, Congonhas, Caeté, Sabará, Tiradentes, São João Del Rei, Catas Altas, Campanha, Nova Lima e Barão dos Cocais, a ponto de que, se todas fossem de fato feitas por ele, o artífice teria de ter vivido em três cidades ao mesmo tempo. O empenho dessas pessoas foi similar ao do ”hipnotizador que, para causar maior impressão ao público, começasse por hipnotizar-se a si próprio”, como escreveu Carlos Drummond de Andrade numa crônica sobre Minas. O Quasímodo brasileiro virou de repente o maior representante da arte sacra de Minas, do Brasil e da América do Sul, autor de obras em quase todas as vilas da corrida do ouro.

O culto a Aleijadinho logo ganhou um problema. A importância que ele passou a ter tropeçava numa verdade incômoda: nem todo mundo considerava o monstro genial. A forma e o acabamento de muitas obras atribuídas a ele pareciam grosseiros - as figuras tinham o nariz desproporcional, maçãs do rosto salientes demais, polegar na mesma direção dos outros dedos e olhos exageradamente amendoados.

As igrejas que contaram com seu esforço pareciam uma versão pobre de monumentos europeus.O pior é que isso ficava mais claro nas obras em que ele certamente trabalhou. Os recibos e atas confiáveis que citam Antônio Francisco Lisboa sugerem que ele construiu esculturas e detalhes das igrejas de Sabará, Ouro Preto e do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas. No começo do século 19, os viajantes que falaram sobre o conjunto arquitetônico de Congonhas eram no máximo benevolentes, como se estivessem diante de um artista infantil.

”Embora suas vestimentas e figuras sejam por vezes sem gosto e desproporcionadas, não se deve desconsiderar os belos dotes de um homem que se formou por si próprio, e nunca viu nada”, escreveu o barão de Eschwege, um geógrafo alemão que visitou Minas em 1811, sobre os profetas diante da igreja.

Falando do mesmo conjunto, o inglês Richard Burton afirmou que ”pouca coisa se tem a dizer sobre o interior da igreja; as paredes são almofadadas e pintadas com afrescos pretensiosos e repletas de gravuras sem valor, ao passo que as imagens são abaixo da crítica”. Burton escreveu também que o conjunto de Congonhas ”compara-se de maneira desfavorável com a Igreja de Bom Jesus de Braga, perto do Porto, e com o mais humilde dos santuários italianos”.

É verdade que a visão dos viajantes estava contaminada por um ar de superioridade europeia. Ao escrever sobre os países que visitavam, eles se esforçavam para caprichar nos relatos sobre paisagens e ligavam pouco para o que os países exóticos tinham de civilizado. Mas... será que eles não estavam certos em sua avaliação? A semelhança entre igrejas e santuários era muito comum, já que muitos artesãos vinham da Europa ou tentavam copiar monumentos europeus que eram retratados em livros.
Comparando o santuário de Congonhas com o de Portugal, é difícil não concordar com o inglês Richard Burton. Os monumentos são muito parecidos: para chegar às duas igrejas, é preciso passar por uma escadaria entremeada com estátuas sacras. Mas enquanto o santuário mineiro tem doze profetas e três pequenos lances de escadas o de Portugal tem dezenas de estátuas e fontes, além de três escadarias dispostas em formato de labirinto que somam um desnível de 116 metros. É difícil não achar que a obra-prima de Antônio Francisco Lisboa é uma cópia sem gracinha do santuário português.
Não foram só os viajantes estrangeiros que acharam Aleijadinho ”abaixo da crítica”. No fim do século 19, um padre chamado Júlio Engrácia escreveu que as esculturas dele eram ”mais próprias para fazer rir às crianças do que para atrair a veneração e a simpatia dos corações devotos”, cujos ”membros que mais deviam chamar-lhe a atenção artística como rosto, mãos, pés são muito imperfeitos”. O padre se incomodava especialmente com o nariz das imagens de soldados: ”Jamais houve guerreiros romanos tão narigudos, a não ser que eles usassem suas probóscides como os elefantes usam as trombas”. Tão forte quanto as palavras do padre Engrácia é o silêncio dos poetas árcades mineiros. Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manoel da Costa e Basílio da Gama, poetas contemporâneos a Antônio Francisco Lisboa, não gastaram sequer uma linha para falar do escultor. A avaliação do trabalho de Aleijadinho mudou só no começo do século 20. Foi quando os intelectuais modernistas escolheram o personagem do monstro genial como símbolo da ”brasilidade”, do talento mestiço e popular do Brasil. Em 1923, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral fizeram uma excursão a Minas na companhia do poeta francês Blaise Cendrars. Voltaram das vilas mineiras considerando a aventura uma viagem de ”descoberta do Brasil”, como disse Oswald. A arte mineira parecia encaixar-se bem na ”raiz popular da cultura brasileira”, ideia que nunca fascinou tanto os intelectuais brasileiros quanto naquela época.

Em Minas, eles se encantaram não propriamente pela arte, mas pelo artista. A primeira coisa que lhes chamou atenção foi o fato de Aleijadinho ter sido mulato, filho de escrava com pai branco, coisa que Bretas, sete décadas antes, havia lembrado bem superficialmente. A partir dessa informação, os jovens críticos construíram outra literatura sobre Aleijadinho, em que ”o valor das obras encontra-se não nelas mesmas, mas no artífice que as teria realizado, pressupondo-se anacronicamente nele a imagem de uma luta por igualdade racial”, como diz Guiomar de Grammont.


Na hora de defender a importância de Aleijadinho, os modernistas tiveram que dar um troco às críticas do padre Engrácia e dos viajantes. Montaram um dispositivo retórico para justificar o fato de as obras de Aleijadinho não serem aquela cocada toda. Não foi propriamente a avaliação que mudou - eles continuaram achando as esculturas resultado de ”irregularidade vagamunda”, ”diletante mesmo”, como afirmou Mário de Andrade. O que mudou foram os motivos: Aleijadinho não teria criado obras estranhas porque não sabia fazer melhor, e sim porque queria. Deixou de ser um trabalhador interessado apenas em conseguir esculpir direito para se tornar um artista consciente e completo.

Mário de Andrade, principalmente ele, viu nas estátuas narigudas a expressão da suposta personalidade atormentada do suposto artista aleijado. Se as obras pareciam grosseiras diante da tradição, é porque o escultor sem mãos queria romper com os padrões antigos de beleza e ser original, aproximando-se da arte gótica. A deformidade imaginária virou um ponto essencial da crítica dos modernistas. Doente e deformado, o escultor teria expressado sua verdade interior como obra de arte. ”Raro realista, ele foi um deformador sistemático. Mas a sua deformação é de uma riqueza, duma liberdade de invenção absolutamente extraordinárias”, afirmou o escritor paulista.

Mário dividiu a obra de Aleijadinho em duas fases, antes e depois da tal doença. Na fase sã, o artista seria mais equilibrado e claro, o que se expressaria em suas obras de São João Del Rei (apesar de ninguém ter certeza de que Antônio Francisco Lisboa tenha ido a essa cidade); e, na fase doente, ”surge um sentimento mais gótico e expressionista” que não seria uma cópia simples da arte europeia. ”Antônio Francisco Lisboa tratou o barroco, renovando-o com um espírito verdadeiramente genial”, afirmou o escritor, revelando a origem de um pensamento muito comum sobre Aleijadinho quase um século depois.

Até Gilberto Freyre arranjou motivos para explicar por que a expressão artística do escultor não era lá essas coisas. Sugeriu que as obras eram resultado de uma revolta contra a condição de mulato, ”de modo que, na escultura de Aleijadinho, as figuras de ’brancos’, de senhores, de capitães-romanos aparecem deformadas”.

O grande ponto fraco do dispositivo retórico dos modernistas foi o anacronismo. Eles escreveram sobre um escultor barroco como se ele fosse um artista romântico ou integrante das vanguardas modernas do século XX. A ideia de Aleijadinho como um gênio solitário a expressar sua personalidade enraivecida em forma de arte original diz mais sobre como enxergamos os artistas hoje do que sobre aquela época.

O marketing que os artistas carregam atualmente - de seres diferentes, donos de uma criatividade espontânea e uma sensibilidade especial - é muito recente: vem do romantismo europeu. Durante os séculos 18 e 19, enquanto as pessoas comuns passavam os dias apertadas entre as máquinas da Revolução Industrial, o artista romântico se considerava o homem solitário que se perdia em viagens ou divagações na natureza. Essa ideia é muito forte no romance  Os Sofrimentos do Jovem Werther', escrito por Goethe em 1774, e no quadro 'O Viajante sobre o Mar de Névoa', criado pelo alemão Gaspar David Friedrich em 1818.

Antes de essas obras máximas do romantismo mudarem a cara dos artistas, eles eram muito mais próximos das pessoas em geral. A arte, especialmente durante o período barroco, era um esforço coletivo feito sobretudo em louvor a Deus, e não ao próprio artista. Escultores dividiam trabalhos com colegas de corporação, instrutores assinavam as melhores obras dos seus alunos (que encaravam o fato como uma homenagem), e quase ninguém pensava em expressar seus sentimentos nas obras.
No Brasil do fim do século 18, muito antes de o romantismo chegar por aqui, a glamorização dos autores começava a acontecer com os poetas. Escultores contratados pelas irmandades, porém, como Antônio Francisco Lisboa, trabalhavam como quem hoje pinta paredes de casas ou faz bolos para festas por encomenda. Pouco ligavam para o fato de a obra expressar sua individualidade. Uma mostra disso é que raríssimas igrejas, altares ou estátuas de Minas Gerais levavam assinatura dos autores. Quando isso acontecia, era em forma de agradecimento ao patrão ou à comunidade.

Numa capela de Santa Rita Durão, por exemplo, está escrito: ”Pintei este painel, em louvor de N. Sra., e em obséquio ao seu tesoureiro José dos Santos Lisboa pelo grande zelo com que este mandou pintar esta capela, ainda com dispêndio seu no ano de 1792”. As obras não eram feitas individualmente: os artífices costumavam trabalhar juntos, em oficinas patrocinadas pelas irmandades religiosas, e também passavam tarefas para amigos quando estavam atarefados demais, como fazem hoje em dia os freelancers. Acontecia também de um empreiteiro ganhar a encomenda de um trabalho sem saber realizá-lo, contratando pessoas capacitadas para botar a mão na massa.

Baseados nessa produção coletiva, alguns críticos aproveitaram para montar uma nova explicação às ”falhas” das imagens atribuídas a Antônio Francisco Lisboa. Para o historiador de arte francês Germain Bazin, as obras mal-feitas não eram exatamente do escultor, mas de seus sócios ou assistentes. Foi o que teria acontecido com as estátuas de madeira das seis capelas do santuário de Congonhas. ”As diferenças de qualidade dessas diversas estátuas levaram a exagerar-se a parte de colaboração nesse conjunto, retirando-se do artista a autoria de um número muito grande delas”, afirma ele no livro 'Aleijadinho e a Escultura Barroca no Brasil'.

A hipótese dos assistentes é central no livro 'Aleijadinho e sua Oficina', publicado pelos pesquisadores Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Antônio Fernando Batista dos Santos e o estudioso Olinto Rodrigues dos Santos Filho, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). De acordo com o livro, publicado em 2003, só um terço das estátuas de madeira das capelas de Congonhas teria sido criado por Aleijadinho. Mais uma vez, o argumento científico se baseia na literatura: Aleijadinho era um gênio, então aquilo que não é genial deve ter sido feito por outras pessoas.

”Essa forma coletiva de produção hoje provoca esforços patéticos dos críticos de arte no sentido de identificar traços ou características do autor-mito, ’ocultas’ em obras realizadas, em geral, por mais de um oficial”, afirma a filósofa Guiomar de Grammont. ”Nessa sociedade, contudo, as obras são produzidas coletivamente e não obedecem a um código de pertença ou de ’criação’ do autor.
Como nenhum trabalho de Antônio Francisco Lisboa foi assinado, as obras consideradas de sua autoria são aquelas que ganharam o aval de críticos e historiadores. Esse processo de promover ou atribuir a grife Aleijadinho foi e continua sendo estranhíssimo. Envolveu grandes arquitetos falando enormes besteiras, disputas judiciais para calar pesquisadores e até suspeitas de fraude cometida com o objetivo de valorizar esculturas genéricas. Em alguns casos, documentos ambíguos e até com suspeita de terem sido adulterados viraram provas de sua autoria.

Para sustentar que Aleijadinho participou da construção da igreja de São Francisco de São João Del Rei, pesquisadores se basearam numa ata que fala de ”um arquiteto”, vago assim mesmo, sem ter certeza de que o tal arquiteto era Antônio Francisco Lisboa. Um outro documento sobre a mesma igreja conta que a obra foi feita por Antônio Martins - esse sobrenome, porém, está riscado e corrigido para ”Francisco Lisboa”. Ninguém sabe quando essa correção aconteceu.

Para convencer que uma obra era de Aleijadinho, os críticos usaram poucos argumentos estéticos. Na maioria das vezes, o que valeu foram a autoridade e as palavras difíceis dos estudiosos. Se se tratava de alguém famoso, como o homem que projetou a capital do país, ficava difícil discordar. Em 1961, logo depois da construção de Brasília, o arquiteto Lúcio Costa escreveu sobre Aleijadinho. Atribuiu a ele a escultura de uma mulher que fazia parte do Chafariz do Alto da Cruz, construído em Ouro Preto em 1761. Recibos mostram que esse chafariz estava a cargo do arquiteto Manuel, o pai de Aleijadinho. Mesmo assim, Lúcio Costa concluiu que havia ”indícios inequívocos de [o chafariz] haver sido concebido por seu filho, Antônio Francisco Lisboa, então com 19 anos de idade”. Os indícios não eram nada inequívocos.  Lúcio Costa adotou como provas o uso de pedra-sabão, material comum em Minas, e a ”ousadia da temática e da colocação do busto no lugar tradicionalmente reservado à cruz”. Repare no criativo processo de etiquetagem: os trabalhos que pareciam inovadores ou ousados eram cravados como tendo sido feitos pelo personagem que obcecava a cidade — Aleijadinho. Lúcio Costa fez o mesmo com outro chafariz, desta vez no Palácio dos Governadores, obra de 1752 que também era encomenda do pai do escultor. Apesar de não existir nenhuma prova de Aleijadinho ter trabalhado desde tão cedo, o crítico, em vez de questionar a possibilidade de haver um escultor-menino, comoveu-se com o próprio equívoco: achou ”significativo e comovente” o fato de ”a personalidade já estar presente neste risco, feito aos 14 anos”. Como é de esperar, avaliações como a do criativo Lucio Costa são subjetivas. Por isso, mudam de acordo com o crítico que analisa as obras. De um dia para outro, aleijadinhos se transformam em obras genéricas e vice-versa. Nasce daí muita polêmica entre colecionadores e estudiosos. Em 2003, o engenheiro Renato Whitaker, dono da maior coleção atribuída ao escultor mineiro, de 36 obras, tentou barrar a circulação do livro 'Aleijadinho e sua Oficina', dos três pesquisadores do Iphan.

Os autores tinham concluído que diversas peças da coleção de Whitaker e das colecionadoras Leda Nascimento Brito e de Beatriz Pimenta Camargo não tinham sido feitas por Antônio Francisco Lisboa, mas por seus ajudantes. A Justiça chegou a mandar recolher os exemplares à venda, ordem que durou quase dois meses. Os colecionadores ficaram mais satisfeitos com o livro 'Aleijadinho - Catálogo Geral da Obra', publicado em 2006 por Márcio Jardim. Esse advogado e historiador mineiro é o campeão de atribuições a Aleijadinho. No livro, ele considera 425 obras como fruto do escultor-personagem, incluindo todas as esculturas dos colecionadores e outras que pouca gente conhecia. Tendo esse número como base, dá para dizer que nunca a obra de um artista cresceu tão rápido em todo o mundo. Se há cinco décadas cerca de 160 peças eram consideradas de Aleijadinho, hoje o número é quase três vezes maior.

E não para de crescer: em abril de 2009, enquanto este livro era escrito, mais sete esculturas ganharam a valiosa grife. O colecionador José Marcelo Galvão de Souza Lima disse ter encontrado obras em antiquários e coleções particulares que pareciam ser de Aleijadinho. Meses depois, as peças já tinham laudo de autenticidade, concedido pelo historiador Márcio Jardim, e foram exibidas em exposições no Rio de Janeiro e em Itu, no interior de São Paulo, como relíquias ”autênticas” nunca antes vistas pelo público. Um sistema tão proficiente de atribuições parece estranho.

Para um colecionador, nada melhor que ver uma obra sua ser de repente considerada fruto de um dos artistas mais famosos da história do país. ”Tenho razão para desconfiar que existe um conluio entre colecionadores e críticos para valorizar obras anônimas”, disse-me, por telefone, a filósofa Guiomar de Grammont. De qualquer modo, a história de Aleijadinho fica cada dia mais interessante. O escultor monstruoso e genial foi capaz não só de trabalhar com dedos mutilados e mãos paralisadas. Também criou grandes obras depois de morto.


Por Leandro Narloch no livro 'Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil',Editora Leya, São Paulo, 2009. p.134-147. Digitado, editado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

Sobre o Livro:
É hora de jogar tomates na historiografia politicamente correta. Este guia reúne histórias que vão diretamente contra ela. Só erros das vítimas e dos heróis da bondade, só virtudes dos considerados vilões. Alguém poderá dizer que se trata do mesmo esforço dos historiadores militantes, só que na direção oposta. É verdade. Quer dizer, mais ou menos. Este livro não quer ser um falso estudo acadêmico, como o daqueles estudiosos, e sim uma provocação. Uma pequena coletânea de pesquisas históricas sérias, irritantes e desagradáveis, escolhidas com o objetivo de enfurecer um bom número de cidadãos.

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