12.24.2011
JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAP. 14 a 16)
CAPÍTULO 14
Dez horas da noite da última quinta-feira do mês. Tobias e Diana estão sentados junto às vitrines, na sorveteria Americana, tomando um sorvete de creme com calda de chocolate. As vitrines envidraçadas da sorveteria permitem que os fregueses observem o movimento animado da Cinelândia. Os dois acabam de sair do Rival, onde assistiram à primeira sessão da peça Fontes luminosas, de Louis Verneuil e Georges Berr, com Dulcina e Odilon, o casal mais ilustre do teatro nacional. — Confesso que tenho imensa dificuldade em entender o Odilon — comenta Tobias Esteves. — A voz é grave, bonita, mas as palavras jorram-lhe da boca aos borbotões. Deve ser porque eu sou português.
— Não é por ser português, não, Tobias. Eu não entendo metade do que ele fala. Na dupla, a grande atriz é, sem dúvida, Dulcina. Odilon é um belo homem, com porte nobre, mas às vezes sua dicção torna o texto indecifrável. Mesmo assim, a química da dupla em cena é perfeita. Uma jovem se aproxima da mesa, empunhando o último número d’O Cruzeiro aberto na página de Diana. É transparente sua admiração pela repórter.
— Desculpe, mas pode me dar seu autógrafo? Adoro as suas matérias. Meu pai é escritor e eu também pretendo escrever.
— Como é o seu nome?
— Maria Clara.
— E seu pai? Como ele se chama?
— Aníbal Machado.
— Gosto muito do que seu pai escreve. Espero que você tenha o mesmo talento — Diana diz, redigindo a dedicatória.
— Obrigada — agradece a jovem, satisfeita, afastando-se. Acena com a revista assinada para o seu grupo numa mesa distante, como se fosse um troféu.
Tobias Esteves aproveita o gancho para comentar o artigo de Diana:
— A propósito, não acha que a menina está a se expor demais? Não é possível calcular-se a reação do anormal.
— Duvido muito que ele se arrisque. As ruas continuam muito patrulhadas em função do golpe do dia 11. Ele pode ser louco, mas não é burro. Tanto que não há sinal de novos ataques. Depois, não faço parte da categoria de sua preferência.
— Mesmo assim, a obsessão do assassino por mulheres gordas pode mudar a qualquer momento. Sabe-se lá o que se passa naquela mente? Aliás, quando eu ainda era inspector de polícia em Portugal, desvendei o “Crime da Fechadura” — informa o detective, com uma ponta de orgulho.
— Foi um crime famoso?
— Em Portugal, sim. Era um padre fanático que matava miúdos. Chegou a matar e a cortar a língua de vinte e três, antes que eu o prendesse. Diante do cenho franzido de Diana, ele traduz:
— Cá diz-se meninos.
— Eu sei, minha reação foi de espanto pelo absurdo do crime.
— Pois! Quando o prendi, ele explicou que matava as crianças pra curá-las do pecado mortal de espiar pela fechadura.
— E por que cortar fora a língua?
— Pra que eles não contassem o que viram.
Pela expressão inescrutável de Esteves, Diana não sabe se ele fala a sério.
— É muito tênue, a linha que separa o louco assassino do assassino louco. Por isso, chamou-me a atenção o que escreveste sobre o perfil psicológico do criminoso. Disseste-o bem, não carece um Freud pra perceber que estamos diante de um psicopata perigoso. Pelo que se averiguou nas autópsias, presume-se que seja impotente. Não há vestígios de conjunção carnal e o sêmen encontrado na parte externa das coxas de todas as vítimas pressupõe a incapacidade de penetração. As bananas enfiadas na pobrezita da polaca são um símbolo fálico óbvio.
— Mas por que gordas, só gordas?
— E por que doces portugueses, só portugueses? Será português?
Os dois se quedam pensativos por alguns momentos. Diana rompe o silêncio num grito:
— É a mãe!
As pessoas das mesas vizinhas se assustam, pensando que é uma ofensa de Diana ao companheiro. O maître se aproxima, pronto para intervir a fim de evitar qualquer comoção.
— Perdão, estou só contando uma história... — Diana explica, sorrindo.
Esteves continua, num tom mais civilizado:
— Claro, só pode ser fixação materna! Amor e ódio à própria mãe!
— E a mãe é gorda — completa Diana, entusiasmada.
— Gorda e portuguesa!
Esteves refreia sua animação:
— Ou de família portuguesa. Claro que não há provas de nada do que nós deduzimos, mas isso ajuda a formar uma imagem do assassino. Felizmente, ainda não houve outra atrocidade.
— Bem, vamos mudar de assunto? Tenho uma ótima notícia — revela Diana, pedindo mais sorvete para os dois. — Hoje, passei nas provas eliminatórias.
— Não faço a mínima ideia do que a menina está a falar.
— Santo Deus, Tobias, me classifiquei pro Circuito da Gávea, o Trampolim do Diabo! Vou correr no domingo. É o primeiro grande prêmio só pra pilotos brasileiros. O susto é tão grande que Esteves se engasga e derruba a taça de sorvete na gravata.
CAPÍTULO 15
Tobias Esteves acredita na competência de Diana como motorista. Sabe que ela guia com maestria o seu Lagonda lg6 Drophead conversível. Isto é, sabe por ouvir falar. Valdir Calixto, a quem Diana deixou em casa uma vez, jura que nunca mais pega carona com a bela piloto. Apesar da habilidade comprovada da moça ao dirigir a linda barata verde Racing Green, ele prefere quem conduza fazendo as curvas nas quatro rodas e evitando cavalos de pau para entrar numa vaga.
Na tarde do dia seguinte, mesmo sabendo do perigo, Tobias prontifica-se a ajudá-la. Ele é um aficionado do automobilismo. Quando estudante, nas férias disputava com os colegas carreiras ilegais ao volante de um Chevrolet pela estrada de Sintra. Ficara amigo do extraordinário corredor português Manoel de Oliveira, que correria no vi Circuito Internacional da Gávea, no dia 12 de junho, e estava no Rio ajustando seu Ford Menéres & Ferreirinha, feito no Porto. Vencera, com o mesmo carro, o Circuito Internacional do Estoril, chegando à frente das Bugatti e Mazerati. Manoel, que era também cineasta, acabara de lançar o documentário Já se fabricam automóveis em Portugal.
Diana seria a segunda mulher a participar do Circuito da Gávea. Dois anos antes, a francesa Mariette Hélène Delangle, mais conhecida pelo nome artístico de Hellé Nice, do tempo em que dançava no Casino de Paris, fora a sensação da corrida. Na última volta, quando ela disputava o terceiro lugar com Manuel de Teffé, as rodas dos carros se tocaram e Hellé voou sobre os espectadores. Resultado do acidente: três mortos e quarenta feridos. Entre os mortos, o soldado que acolheu o impacto direto do corpo de Hellé, que escapou. Algumas testemunhas do acidente disseram que a culpa havia sido de Teffé, que fechou o carro da francesa: “Ele não admitia ser ultrapassado por uma mulher”. De qualquer forma, nada foi comprovado e Manuel de Teffé ficou com o terceiro lugar.
Diana classificara-se na última prova eliminatória fazendo o percurso em nove minutos e dez segundos, abaixo do limite de dez minutos. Mesmo assim, seu tempo precisava melhorar. Ela alinharia seu carro ao lado de Chico Landi, Nascimento Júnior e outros corredores de grande experiência. A periculosidade do percurso já cobrara o seu ônus. Durante um dos treinos, José Bernardo, pilotando um Ford V8, bateu num barranco e morreu no hospital. Por ironia, o mesmo veículo já matara Irineu Corrêa, em 35, e Dante Palombo, em 36. O carro ficou conhecido como “O Assassino”.
— Se estás mesmo disposta, tens de melhorar a performance do teu galimão... — brinca Esteves, chamando o Lagonda de calhambeque. — Eu aprendi como ajustar um carro com o meu amigo Manoel de Oliveira. Ninguém afina um motor como ele. Diana se admira com a descoberta de um novo talento de Esteves. Quem diria que aquele portuguesinho gorducho entendia alguma coisa de automóveis? Aceita a oferta na hora, e os dois partem no belo Lagonda de Diana para uma oficina mecânica na rua Francisco Otaviano, onde Manoel de Oliveira preparava seu carro para a prova internacional. Depois das manifestações afetivas entre Manoel e Tobias, o detective apresenta Diana ao famoso corredor e explica o motivo da visita. Segue-se uma conversa que deixa Diana mais espantada ainda. Ela jamais poderia supor o conhecimento técnico de Esteves, que trocava ideias, de igual para igual, com o grande piloto português.
— Sabes muito bem que o Lagonda não é o carro apropriado pro circuito — começa o corredor.
— Sei, sei, mas a Diana é teimosa e conseguiu se classificar. Fez a volta em nove minutos e dez segundos.
— Com este Lagonda, assim, como está?!
— Pois.
— Meus parabéns — diz Oliveira, cumprimentando Diana. — Então a coisa muda de figura. Vamos ver o que podemos fazer pra melhorar o desempenho desta máquina. Manoel abre o capô do conversível e estuda, em detalhes, o conjunto do motor. Depois de uma breve avaliação, ele declara:
— Acho que a primeira providência pra melhorar a velocidade do carro da senhorita corredora é rebaixar o cabeçote.
— Ao mesmo tempo, deve-se trocar a lona dos freios por lonas trançadas, pra evitar o aquecimento e tornar o conjunto mais eficaz — aconselha Tobias.
— Perfeito. Temos que substituir o carburador por um maior pra usar um giclê mais aberto.
— Claro! Isso vai fazer com que o resultado, por volta, melhore em torno de um segundo — concorda Tobias.
— O Rio é uma cidade muito quente, é melhor substituir a bobina elétrica por uma com mais capacidade. A colocação debaixo do capô é muito próxima ao bloco do motor e, depois de aquecida, pode fazer o carro falhar.
— Exato. Por isso, temos que trocar a ventoinha do radiador, que vem equipada com quatro pás, por uma de seis pás, que vai ventilar mais e baixar a temperatura —sugere Tobias Esteves.
Manoel examina os pneus.
— Está ameaçando chuva. Pra melhorar a aderência, é bom frisar os pneus com serrote para aumentar as ranhaduras. O Chico Landi e o Pintacuda fazem isso. Terminando a inspeção minuciosa, ele abaixa-se atrás do carro.
— Pronto. Só falta agora colocar um cano de descarga reto no lugar do silencioso. A potência do Lagonda vai melhorar e a Diana vai se fazer notar pelo ronco ensurdecedor da máquina, antes mesmo que o público possa vê-la na pista.
Tobias diverte-se com a ideia:
— É tudo que a menina gosta, já chegar fazendo um barulho louco...
CAPÍTULO 16
Rio de Janeiro, domingo, 29 de maio de 1938. Desta vez, a previsão do tempo acertou. Chove forte antes das nove, hora da largada do i Circuito da Gávea Nacional. Com mais de cem curvas e quatro tipos de piso diferentes: asfalto, cimento, paralelepípedo e areia, o traçado é um verdadeiro desafio à perícia dos pilotos, e a chuva torna o percurso mais perigoso ainda. No local da largada, os corredores passam pelos trilhos escorregadios dos bondes, aumentando o perigo. Oduvaldo Cozzi vai irradiar o acontecimento pela rádio Nacional e, dada a presença das autoridades, a rádio Tupi resolve transmitir o evento na voz de Rodolpho d’Alencastro:
“Muito bom dia, amigo rádio-ouvinte da prg-3, Tupi do Rio de Janeiro. Os heróis da pista estão literalmente get out little cockroaches race, expressão que, segundo me consta, vem da monárquica Grã-Bretanha e significa ‘fora das baratinhas de corrida’. Digo isso porque as divindades não pouparam os valorosos competidores das pesadas bátegas d’água que se abatem sobre suas cabeças, encharcando-lhes os bólidos e deixando o traçado ainda mais periclitante, o que em nada favorece o aguardado embate. Enfim, trocando em miúdos para os menos ilustrados, chove muito.”
Mello Noronha, Calixto e Tobias Esteves estão num lugar especial junto às tribunas, graças à posição privilegiada do delegado. Apesar de ocuparem uma arquibancada coberta, o precavido Calixto permanece com o guarda-chuva aberto para se proteger de eventuais respingos. Tobias é o mais nervoso de todos. Conhece bem os riscos do percurso, ainda mais com a chuva que cai. Noronha manifesta a ranzinzice de sempre:
— Só falta agora essa moça se estabacar contra uma árvore ou mergulhar do trampolim. — O delegado se refere ao Trampolim do Diabo, uma das curvas mais perigosas do trajeto. — Bom, pelo menos não se tem notícia de outra gorda assassinada.
Minha mulher ficou tão assustada com o artigo da Diana n’O Cruzeiro que começou a fazer dieta.
— Mas a dona Yolanda não é gorda — pondera Calixto.
— Toda mulher acha que é — filosofa Noronha.
— Ser gordo ou se achar gordo são duas coisas diferentes — afirma Tobias Esteves — Minha alcunha em Lisboa, junto aos colegas da delegacia, era Gordo; no entanto, não me acho gordo.
— O senhor não é gordo, é só um pouco baixo pro seu peso — declara o diplomático Calixto.
Escuta-se um alvoroço e é dada a partida. Os vinte pilotos se lançam em alta velocidade em busca da vitória.
A largada é na rua Marquês de São Vicente, em frente às tribunas. Os carros seguem pela Visconde de Albuquerque, margeando o canal, e entram na avenida Niemeyer, beirando o mar. Depois, se afastam da orla marítima e seguem, em terreno plano, até subir pela estrada da Gávea. Passam pelo Trampolim do Diabo e, tendo atingido o topo da montanha, retornam à Marquês de São Vicente. São vinte voltas num percurso de onze quilômetros. Nas retas, as máquinas chegam a alcançar duzentos quilômetros por hora. Com chuva, é quase um suicídio. Tobias teme pela jornalista. O pelotão completa a primeira volta e a voz hipnótica de Rodolpho d’Alencastro faz-se ouvir pelos alto-falantes instalados sobre as tribunas:
“Por mais que me esforce, como profissional dedicado, é difícil transmitir a emoção que me embarga em momentos de tamanha intensidade. Só não enrouqueço porque faço uso permanente do Xarope São João, que evita graves afecções da garganta e do peito. O Xarope São João é um remédio científico apresentado sob a forma de saboroso licor. Não ataca o estômago nem os rins e facilita a respiração, tornando-a mais ampla. O Xarope São João fortalece os brônquios e protege os pulmões da invasão de perigosos micróbios.” No tempo que Rodolpho d’Alencastro leva para ler o reclame, Nascimento Júnior, Chico Landi e o resto do pelotão passam em frente ao palanque completando a quarta volta.
— Olha lá! A dona Diana está em quarto lugar! — grita o impetuoso Calixto.
— Mas, pelo ronco, o motor está a falhar — informa Esteves, que entende do assunto.
Na altura da décima segunda volta, eles notam a ausência de Diana. Os três se preocupam, há sempre a possibilidade de um acidente fatal. Vários carros desistiram da corrida. De repente, veem a moça, desolada, vindo a pé pela Marquês de São Vicente, em direção ao palanque. Ela tira a touca de couro e sacode seus cabelos lisos empapados de suor, sob a chuva que continua a cair. Lembra um cãozinho desprotegido saindo da água. O rosto está coberto de lama, a não ser no espaço protegido pelos óculos que ela traz nas mãos. Os óculos deixaram um espaço limpo formando uma máscara branca. Ela senta-se ao lado dos três, lamentando-se:
— Não deu.
— Como, não deu? — protesta Tobias. — Ficaste em quarto lugar durante boa parte da prova. Não te esqueças que correste junto a profissionais excelentes. E o trajeto não é fácil. O Quirino, irmão do Chico Landi, parou na quinta volta — consola ele, segurando timidamente a mão de Diana.
O grande prêmio segue numa certa monotonia até a última volta, confirmando a vitória de Nascimento Júnior, na ponta desde o início da prova, com Chico Landi no seu encalço.
Noronha, que odeia automóveis, apressa-se a sair, empurrando os companheiros.
— Calixto, amanhã, segunda-feira, às nove, na minha sala.
Esteves comenta baixinho com Diana:
— É impressionante como o delegado forma frases inteiras sem usar verbos.
O público vai pouco a pouco deixando o Circuito da Gávea. Há um clima melancólico de final de domingo. Ainda se escuta Rodolpho d’Alencastro tecendo seus últimos comentários:
“É quase impossível a este locutor, amigo rádio-ouvinte, resistir a tanta emoção. A corrida contou, inclusive, e pela segunda vez, com a participação de uma mulher, a notável sportswoman Diana de Souza, repórter d’O Cruzeiro, revista que, como a nossa emissora, pertence ao doutor Assis Chateaubriand. Se consegui ter forças para narrar evento tão extraordinário, foi devido à mão salvadora da Phytina Ciba. Tal é a Phytina: seu elemento de fósforo vegetal assimilável tem uma ação excelente sobre o sistema nervoso, neurastenia, excitabilidade, insônia, falta de memória, falta de apetite, esgotamento nervoso, enfim, todos os padecimentos provocados pela perda diária de fosfatos. Além disso, a Phytina Ciba contém cálcio e magnésio, elementos...” A cantilena maviosa é interrompida pelo grito longínquo de um espectador que retorna a casa:
— Cala a boca, veado!
Pela primeira vez na vida, Rodolpho d’Alencastro não sabe o que falar.
Leia também:
AS ESGANADAS (CAP. 17)
Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 75-84. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.
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