12.24.2011

JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAP. 11 a 13)



CAPÍTULO 11

—Chegou o Vavá Boas Maneiras! — gritam as putas das janelas, ao verem Valdir Calixto saltar do carro.
— Ah, então é por isso que você não queria vir conosco? Tinha medo dessa recepção... — zomba o delegado.
— Que é isso, doutor! As meninas só me conhecem porque, quando eu era guarda-civil, fazia a ronda nessa área. Contato puramente profissional.
— Por parte sua ou delas? — pergunta, rindo, o detective português.
Diana não resiste e abandalha a brincadeira, usando o humor grosseiro aprendido nas brigadas da Espanha:
— Você fazia a ronda com o cassetete na mão ou na bainha?
O recatado Calixto assume ares de ofendido.
— Eu garanto que nunca mantive relações físicas com nenhuma profissional do ramo.
Assim que ele termina a frase, uma puta baixinha grita do outro lado da rua:
— E aí, Vavá? Vai de carona hoje?
Noronha encerra o assunto antes que a conversa degringole.
O quarteto desembarcou na rua Afonso Cavalcanti, onde mora Bogdana Malkowa. Nas portas e janelas dos pequenos sobrados, as prostitutas anunciam suas especialidades, servindo-se dos dedos e da língua em gestos obscenos e dando gemidos lascivos.
Bogdana não faz parte desse patético mafuá do sexo. A tísica galopante consome o que resta dos seus pulmões, mantendo-a agarrada ao leito. É uma pálida imagem da rapariga exuberante que desembarcou na praça Mauá há poucos anos. Os esparsos cabelos ruivos, sem viço, se assemelham a fios de lã escarlate despregados do novelo. Os olhos baços, encavados na face, perderam a tonalidade da safira. Ela respira pela boca escancarada, resfolegando avidamente, como um imenso fole. Bogdana ouve ruído de passos e, com esforço, vira a cabeça para a porta. Os quatro intrusos percebem estar diante de uma moribunda. Noronha desculpa-se pela invasão:
— Com licença, sou o delegado Noronha e esta é minha equipe — ele diz, apresentando os outros. — Estamos investigando o assassinato da sua amiga Halina Tolowski.
As palavras da pobre mulher saem num gorgolejo agonizante:
— Pobre Haly, quis venir para Brasil tanta... acaba morre... je aussi... Ela gosta muito Pqczek... comer muito Pqczek... doce polonês...
Quando vê Calixto, vestígios de uma lembrança iluminam-lhe o rosto. Ela aponta para o policial o dedo raquítico e curvo e, empregando as forças que lhe restam, deixa escapar um grito do mais profundo do seu ser:
— Putanherro!
E a polonesa Bogdana Malkowa exala o último suspiro, um sorriso feliz fixado nos lábios. Todos desviam o olhar para Calixto, que, num gesto carinhoso, ajoelha-se ao lado da heroica guerreira do bidê e cerra-lhe as pálpebras. Evitando qualquer comentário sobre o incidente tragicômico, Mello Noronha conclui:
— Não temos mais nada que fazer aqui. Calixto, chame o iml pelo rádio da viatura e peça pra virem recolher o corpo. Você fica aí de plantão, velando a morta, até o rabecão chegar. Depois, me espera na Central. Nós vamos até a casa da polonesa assassinada ver se achamos alguma coisa que ajude a esclarecer essa maçada.

A rua Pinto de Azevedo, onde Halina Tolowski morava, não difere muito da Afonso Cavalcanti, local da residência de Bogdana. As mesmas casas, os mesmos sobrados, as mesmas putas. A diferença era que Halina vivia numa pensão junto com outras profissionais. Uma pensão administrada por madame Giselle, que veio para o Brasil logo depois da Grande Guerra e foi uma das prostitutas mais requisitadas da Conde Lage. Quando seus dotes físicos deixaram de incitar o desejo dos homens, transformou-se em cafetina. Passou de explorada a exploradora. Magra, muito maquiada, os cabelos pintados de cor de azeviche presos em coque, madame Giselle senta-se numa banqueta alta atrás de um balcão.Diante dela, um caderno aberto onde anota, com caligrafia de estudante, os ires e vires do seu gado. Saca o lápis enfiado no coque rápida como um samurai. Agita um enorme leque rendado, que ela abre e fecha continuamente provocando um ruído seco. Antes que Noronha se apresente, madame Giselle se adianta, num carregado sotaque francês:
— Não precisa nem dizer. Police, non?
— Exato. Delegado Mello Noronha, Tobias Esteves, comissário adjunto à Brigada Internacional Portuguesa, e Diana de Souza, da... Cruz Vermelha — afirma Noronha, completando a mentira.
— Doutor delegado, minhas meninas são todas limpas. Eu exijo um exame de saúde por semana — ela frisa. — Eu garanto: são liiiiimpas. Na minha maison nunca houve um caso de gonorreia, cancro, crista de galo, gonorreia de gancho, cogumelo de Afrodite, cabeça de...
— Não estamos aqui por causa delas — interrompe Noronha, horrorizado.
— Só queremos examinar o cômodo que Halina Tolowski ocupava.
— Parfaitement, doutor delegado. É a terceira porta à esquerda. Fiquem à vontade, continua tudo como era — explica madame Giselle, aliviada.
— As outras inquilinas e a faxineira têm medo de entrar lá. Vous savez, gente primitive, superstition...
Ao avançar pelo corredor, o trio é surpreendido por um choro convulsivo vindo do quarto de Halina. Noronha saca seu Colt, Diana saca sua Derringer e Esteves saca seu pente.
Os dois olham atônitos para o português.
— Foi por reflexo — desculpa-se ele, mostrando a arma de barbeiro. O pranto intensifica-se quando abrem a porta. De relance, eles não enxergam ninguém lá. Finalmente, percebem, oculto pelo espaldar da única cadeira do lugar, esvaindo-se em lágrimas, o pequeno Rodapé. Com um suspiro de alívio, Noronha guarda o Colt, Diana guarda a Derringer e Esteves guarda o pente. O delegado mostra sua identidade e apresenta os dois parceiros. Rodapé enxuga as lágrimas, pula da cadeira e estende a mãozinha.
— Muito prazer, Otelo Cerejeira — anuncia-se, informando seu nome de batismo.
— Claro, sou mais conhecido como “o palhaço Rodapé” ou, como preferem os esnobes amantes da ópera, “il cantante Battiscopa”. Diana e Tobias acham graça, mas Noronha não entende. O português adianta-se:
— Tem piada, porque Battiscopa é “rodapé” em italiano. Percebe?
Diana traduz:
— Vem de “bater a vassoura” no rodapé. “Bate-vassoura”, entendeu?
— Sei, sei, hilário. Mas vamos ao que interessa. O que é que o senhor está fazendo aqui?
Otelo “Rodapé” “Battiscopa” Cerejeira veste-se com aprumo. Apesar da estatura liliputiana, ele porta seu um metro e trinta com invejável elegância. Os ternos, feitos sob medida no alfaiate Nagib, o melhor da cidade, os elevator shoes, importados de Londres, tudo empresta a Rodapé o requinte dos anões de Velázquez. O chapéu Borsalino e uma bengalinha com castão de prata completam o figurino. Enquanto anda pelo exíguo espaço, para ele de dimensões palacianas, declara, controlando a emoção:
— Senhor delegado, sou um homem bem-sucedido na minha carreira profissional. Trabalho desde pequeno. Deixe-me corrigir, desde criança. Como Rodapé ou Battiscopa, os picadeiros lotam pra me ver. Hoje, com trinta e cinco anos, estou rico. Continuo trabalhando pelo prazer da arte. Ainda ambiciono o sucesso internacional, mas confesso minha fraqueza: me apaixonei por Halina assim que a vi. Pedi diversas vezes que ela se casasse comigo, mas ela recusava. Gostava da sua liberdade e achava que o preconceito me prejudicaria.
— Ele pega uma boneca de madeira sobre a cômoda.
— Entrei aqui sem que madame Giselle visse pra buscar esta matrioshka. Halina costumava dizer que essa boneca russa que tem várias bonequinhas menores dentro era o símbolo da nossa relação. O pequenininho dentro da grandona — o anão revela, entre soluços.
Faz-se um momento de silêncio emocionado. Ele puxa o fino lenço com iniciais bordadas à mão que lhe enfeita o bolso e solicita, enxugando as lágrimas:
— Senhor delegado, gostaria de pagar o enterro da minha querida Halina. Meu secretário vai tratar de tudo. Eu faço questão de permanecer incógnito, não quero que a minha presença seja motivo de chacota no funeral. Depois da violência que ela sofreu nas mãos do assassino, é justo que seja enterrada com todas as pompas. Que ela tenha na morte as riquezas que não conseguiu em vida. Contratei o melhor serviço fúnebre da cidade pra cuidar de tudo. A funerária Estige.

Uma detalhada inspeção do recinto onde Halina morava não revela nada de interesse. Acima da cabeceira da cama, o clássico crucifixo ao lado de uma imagem de santa Maria Madalena, considerada a protetora das prostitutas. No velho guarda-roupa, alguns trajes, pretensamente excitantes; nas gavetas da cômoda, objetos para práticas sexuais, e, no armário do banheiro, aspirina, perfumes baratos, utensílios de maquiagem, um frasco aberto com cápsulas homeopáticas, pasta e escova de dentes; enfim, a parafernália habitual. Não há mais o que fazer ali. Diana sai do quarto na frente do grupo. De repente um “freguês” a segura pelo braço no meio do corredor. O homem é musculoso, porta um chapéu de abas largas, usa botas e traz um lenço vermelho amarrado em volta do pescoço.
Fala com um pronunciado acento do Sul.
— Bah! Nunca vi chinoca mais guapa na zona, chê! Quanto é que tu cobra?
— Eu não trabalho aqui. Me solta!
— Deixa de história, guria! Se tá na lagoa, é peixe.
Esteves aparece e dirige-se com firmeza ao gaúcho:
— Solte imediatamente a senhorita!
— Não te mete, portuga, que eu te furo — ameaça o gaúcho, puxando uma faca da bota. — Sou amigo do Bejo Vargas, te mato e não me acontece nada! — ele bazofia, referindo-se ao violento irmão de Getúlio.
Antes que Tobias reaja ou que Noronha interfira, um bólido passa por eles e atinge o arruaceiro no rosto, derrubando-o, inconsciente, no chão. O bólido é o palhaço Rodapé. Ele levanta-se, pega o chapéu e a bengalinha, arruma o paletó e despede-se beijando a mão de Diana:
— Não suporto pessoas grosseiras.
Otelo “Rodapé” “Battiscopa” Cerejeira desaparece pela porta da pensão de madame Giselle, deixando atrás de si um rastro de admiração, inveja e incredulidade.

CAPÍTULO 12

PUTSCH
a palavra em caixa-alta é a manchete dos jornais do país. Refere-se ao golpe de Estado integralista, fracassado um dia antes com o assalto ao palácio Guanabara, ao qual resistiram de arma na mão Getúlio Vargas e sua filha Alzirinha.
A revolta de extrema direita pretendia a execução de Getúlio, dos ministros e das altas patentes do governo. Nada deu certo. Um dos motivos pitorescos por que a patética operação se transformou numa farsa total foi o fato dos rebeldes terem esquecido de cortar as comunicações do pbx central entre o Guanabara e o Catete. O telefonista de plantão no Catete deu o alarme. A razão da demora das forças governistas em dominar a amotinação foi prosaica. A porta que separa o Guanabara do campo do Fluminense e permite o acesso ao palácio estava fechada. Em vez de arrombá-la, as tropas do governo preferiram esperar pela chave. O episódio causou profunda irritação em Alzira Vargas.
Na realidade, tudo ocorreu porque, depois de insinuar promessas a Plínio Salgado, o criador da Ação Integralista, Getúlio colocou o partido na ilegalidade. O curioso é que ambos tinham muitas ideias em comum, e talvez por isso mesmo Plínio Salgado tenha caído no conto do vigário do Estado Novo. Na funerária da rua Real Grandeza, Caronte perambula entre os caixões.
Para sua surpresa, dias antes do “golpe” um doador anônimo pagou um enterro de alto luxo para a polaca, sua vítima mais recente. Sente um arrepio de prazer ao lembrar-se de como a penetrou pela boca e pela boceta com a banana-da-terra. Não esperava que alguém ligasse para os despojos. Imaginava que o destino daquela puta gorda seria a vala comum.
Passa um olhar distraído pelo jornal, sem se abalar com as notícias sobre o Putsch. Não tem simpatia por Getúlio nem por Plínio. Seu único interesse na política são os cortejos fúnebres dos potentados, em que o fausto monumental testemunha o amor do povo. Esplendor ressarcido, é claro, pelo bolso do contribuinte. Admira os russos, que embalsamam seus líderes. Gastam fortunas na preservação do corpo de Lênin. Ele sabe o quanto esse processo é difícil. Quando uma evisceração é malfeita e restos de matéria orgânica são deixados no interior do cadáver, este acaba explodindo em virtude da formação de gases. Caronte imagina, com um sorriso, uma solenidade no Kremlin e pedaços da múmia de Lênin atingindo o rosto de Stalin.
Tamborila, nervosamente, na tampa das urnas, sem se importar com os olhares desconfiados dos funcionários. A transpiração empapa seu colarinho branco cuidadosamente engomado. O terno escuro esconde as manchas de suor sob as axilas. Caronte sente falta da solução de heroína e cocaína que ele mesmo prepara em seu laboratório. Tem de se abster até do cigarro de haxixe embebido em formol, não pode se expor a uma investigação casual provocada pelo atentado inútil.
O que o incomoda no evento são as medidas precaucionais tomadas pelo governo, reforçando a segurança. Pelotões do Exército patrulham a cidade, destacamentos da Polícia Especial, de quepe vermelho, montados em motocicletas, percorrem as ruas dia e noite. A Guarda Civil revista automóveis e solicita documentos a indivíduos suspeitos ou não. É improvável que um veículo de funerária seja revistado; porém, nessas circunstâncias, tudo é possível. Caronte é obrigado a refrear seu desejo de ir à caça. Pouco importa. No seu ofício, a paciência, mais que virtude, é obrigação. As longas horas gastas no preparo do morto, o pranto prolongado dos velórios, o desfile em passos majestosos da última jornada até o sepulcro, as orações fúnebres intermináveis à beira do túmulo, tudo requer a eupatia de um monge budista. Em breve, a tropa volta à caserna, a Polícia Especial reserva os quepes vermelhos para as escoltas e desfiles, e a Guarda Civil retorna às rondas de rotina. O país volta a trilhar os caminhos do Estado Novo. “Há três anos, falhou a Intentona Comunista, agora falha o Putsch fascista”, pensa ele. “Nada como um golpe depois do outro.”
Gostaria de partir para o antigo matadouro no galpão da Elpídio Boamorte, no bairro Praça da Bandeira, onde deixou o velho furgão, mas, como tem consciência de que a imprudência é sua inimiga, restringe o impulso. Caronte domina a arte da emboscada. Ele sabe onde encontrar suas presas e as escolhe quando passam inconscientes do perigo que correm. Pensativo, ele cessa o tamborilar, e seus dedos de unhas afiladas acariciam a tampa brasonada de um caixão de luxo: “Não há pressa. Sou senhor do tempo e a caça é farta”.

CAPÍTULO 13

Dentro de cada mulher gorda há uma mulher magra suplicando para sair. Fora de cada mulher gorda há uma mulher mais gorda ainda suplicando para entrar. O mês de maio vai se arrastando no outono mormacento, sem que surjam novidades no Caso das Esganadas. Graças a Tobias Esteves, e sem o conhecimento do delegado Mello Noronha, Diana teve acesso às sinistras imagens das mulheres assassinadas.
Nada se comparava em aberração na crônica policial do país desde o “Crime da Mala”. Sentada à sua mesa na redação d’O Cruzeiro, ela rememora o evento. Há dez anos, em São Paulo, o italiano Giuseppe Pistone estrangulou e mutilou sua esposa grávida, Maria Féa Mercedes, uma linda jovem de vinte e um anos. Para se livrar da morta, Pistone comprou uma enorme mala de couro. Como o corpo da mulher não coubesse, ele seccionou-lhe as pernas com uma navalha, na altura do joelho. Levou o fardo medonho até o porto de Santos e despachou-o pelo navio Massilia para Bordeaux, com um destinatário fictício. O cheiro insuportável e um líquido escuro que escorria da carga ao ser içada fizeram com que a Polícia Marítima averiguasse o conteúdo. Ao romperem o fecho, encontraram, dentro da mala, os despojos de Maria. Foram achados também pedaços de papel que forravam a base do baú, uma caixinha de pó de arroz Coty, um vidro com pastilhas para garganta, uma seringa, um vidro de extrato, um travesseiro sem fronha e peças de roupa feminina. Um colete de lã e uma camiseta de tricô cobriam o torso. As pernas seccionadas portavam meias de seda presas por ligas de elástico. O que mais revoltou os investigadores foi terem encontrado, junto ao corpo da moça, um minúsculo cadáver: o feto de uma menina de seis meses. Segundo o legista, o bebê nascera dentro da mala. Ela lera a notícia, sem que seus pais soubessem, numa publicação clandestina, ilustrada com desenhos sanguinolentos, que uma colega do colégio Sion lhe emprestara. Teve pesadelos durante meses.
Diana decide escrever sobre as esganadas. Até então, o interesse se restringe ao comentário momentâneo diante da notícia ou à curiosidade mórbida de leitores daqueles jornalecos sensacionalistas em que o sangue vaza das manchetes e se coagula nos quadrículos das palavras cruzadas. O que motivaria essa falta de indignação? Quando estudava jornalismo e fotografia em Paris, Diana fora a Viena para assistir a algumas palestras de Sigmund Freud. A psicanálise ainda era causa de escândalo e ela interessara-se pelo assunto. Sabe que esse tipo de crime tem uma motivação psicológica profunda. Ela quer que as pessoas se conscientizem de que há um assassino repulsivo à solta pelas ruas e espera que o seu artigo provoque um sentimento de solidariedade. A população precisa ficar alerta a qualquer atividade suspeita. Seus dedos ágeis martelam a Remington Noiseless portátil, e a matéria começa a tomar forma.
Existe um preconceito velado contra a obesidade. Na verdade, dificilmente os homens o sentem. Podem ser gordos inteligentes ou ricos ou oferecerem tantos outros atrativos. Quem sofre o problema com maior intensidade são as mulheres. As mulheres gordas. O leitor pode se escandalizar com o uso da palavra gorda. Os eufemismos mais comuns são: cheinha, forte, grande e, o mais ousado, gordinha. Geralmente, acham que a gorda (odeio a palavra obesa) não tem força de vontade. Nem caráter. Nem vergonha na cara. A gorda é um pária; o excesso de peso, um divisor de águas. O próprio adjetivo é um palavrão. Ninguém se importa com o sofrimento ou com a humilhação da gorda. Acham que ela é gorda porque quer.
Observem o olhar triste das moças gordas varrendo as vitrines da moda. Os figurinos são para as magras. Alguns vendedores ainda informam sem se alterar: “Aqui é só pra pessoas normais, madame”. E a gorda se afasta engolindo o ultraje. Restam-lhe as lojas especializadas ou as costureirinhas de bairro. Para mim, anormal é o tratamento do vendedor.
A obesidade é democrática, não faz diferença de classe. Há gordas ricas e gordas pobres. Todas sentem a mesma reprovação silenciosa da sociedade. Existem gordas belas, mas, se a beleza é notada, há sempre um apêndice ao comentário: “O rosto é lindo. Pena que seja gorda”.
Agora, cuidado! Além da opressão usual, todas as gordas da cidade, ricas ou pobres, feias ou lindas, virgens ou libertinas, correm o perigo de uma morte apavorante. As cinco mulheres torturadas e assassinadas nada têm em comum, a não ser o fardo da gordura. Um maníaco pervertido resolveu manifestar seu desagrado torturando e matando. Em princípio, minhas matérias são ilustradas por fotografias, mesmo nas reportagens que mostram a crueldade do ser humano em condições absurdas, como na Revolução Espanhola. Desta vez as imagens são repulsivas demais até para homens acostumados aos pavores da guerra. Resta-me perguntar:

QUEM É ESTE HOMEM?
Quem é este carniceiro insensível ao terror que provoca? Não há necessidade de um Belford Roxo ou da doutora Nise da Silveira para traçar o perfil da besta que perpetra esses horrores ou para analisar-lhe a psique. A banana que usou para violentar a última vítima é um símbolo claro da sua impotência. Certamente, não é humano; se fosse, teria asco do que fez. O homem é o único animal capaz de sentir nojo.
Diana de Souza


Leia também:


AS ESGANADAS (CAP 14 a 16)


Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 63-74. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.

No comments:

Post a Comment

Thanks for your comments...