12.24.2011
JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAP. 9 e 10)
CAPÍTULO 9
Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila...
O sucesso de Noel, interpretado por Aracy de Almeida, é quebrado pelo inconfundível Rodolpho d’Alencastro: “Amigo rádio-ouvinte da prg-3, Tupi do Rio! Interrompemos nossa programação para uma edição extraordinária! Uma mulher ‘desolhada’ e morta foi encontrada esta manhã na plateia do elegante cinema Plaza! Todavia, se desconhece sua identidade; porém, pela ausência ocular, pela conformação volumosa da falecida e pelas bananas entaladas em sua garganta e nas partes íntimas, a polícia associa a ocorrência ao intrigante Caso das Esganadas! Foi necessário o auxílio do nosso valoroso Corpo de Bombeiros para retirá-la do local. Esta mensagem é uma cortesia do sabonete Vale Quanto Pesa. Grande, bom e barato. Nas cores branco, azul e rosa, Vale Quanto Pesa deixa a cútis limpa e cheirosa. À venda em todo o Brasil.”
Noronha desliga o rádio Delco do seu Chevrolet e estaciona o carro ao lado do Instituto Médico-Legal na praça xv. Comenta a impropriedade do anúncio:
— Que reclame inadequado.
— O pior é que cortaram a Aracy no meio — muxoxa Calixto.
— Falar em cortar ao meio às portas do necrotério também não me parece lá de muito bom gosto... — diz Tobias Esteves. Os três se dirigem à entrada do IML Acima dos portões há uma inscrição em latim: FIDELITER AD LUCEM PER ARDUA TAMEN
— “Fidelidade à verdade custe o que custar” — traduz Tobias.
Com a criação do Departamento Nacional de Segurança Pública, o instituto modernizou-se. Valoriza-se o sistema de investigação científica, a seleção dos funcionários é mais rigorosa e a importação de aparelhagem sofisticada contribui para a melhoria. O problema é que ainda falta treinamento para o total uso dos equipamentos. Noronha torce o nariz a essas novidades. Ele acredita mais no instinto e na intuição.
— Isso tudo é pra aumentar o poder do Filinto.
O prudente Calixto não gosta quando Mello faz essas declarações. Teme pelo chefe.
— Doutor Noronha, cuidado! Alguém da polícia pode ouvir.
— E daí? Eu sou da polícia e estou me ouvindo.
Pelos seus serviços especiais de informação, Filinto Müller sabe muito bem o que Mello Noronha pensa dele e do regime, porém suporta o comportamento rebelde do subordinado porque não há na Força Policial ninguém mais competente.
Apesar da rabugice do delegado, o cadáver foi identificado pelo Arquivo Criminal do Estado. Trata-se da prostituta polonesa Halina Tolowski, de trinta e dois anos, residente à rua Pinto de Azevedo, na Zona do Mangue. Embora a prostituição não seja considerada crime, todas as “profissionais do sexo” são obrigatoriamente registradas na polícia. Assim como as atrizes.
Noronha e Esteves entram na sala de autópsias. Mesmo com as reformas, percebe-se que os ladrilhos das paredes guardam na memória a presença dos corpos nus de homens e mulheres abertos sobre as mesas de metal. Desprezando o ostensivo cartaz de proibido fumar, Noronha segue baforando a fumaça do Panatela. Calixto, que nunca se acostumou a participar dessas intervenções, usa a desculpa de sempre:
— Eu fico aqui fora vigiando.
Não há o que vigiar, mas Noronha entende a idiossincrasia do assistente. Conhece e respeita os medos e manias de Calixto. Tem, por ele, um carinho especial. Ao ver o cadáver exposto na mesa do iml, Noronha concorda com o temeroso Calixto. Em vinte e cinco anos de polícia, nunca viu nada mais grotesco. Ninguém devia ser obrigado a passar por aquela experiência. Os maiores especialistas em filmes de terror teriam dificuldade em reproduzir a cena escabrosa que se descortina diante dele. Nem o aroma acre do charuto disfarça o cheiro inexprimível da morgue. É o cheiro da morte.
O delegado se depara com uma mulher muito gorda, aparentando uns quarenta anos, a quem retiraram os globos oculares. Sua obesidade é tamanha que o corpo sobra pelas laterais da mesa de aço inoxidável. O tampo é levemente inclinado para o escoamento dos líquidos, o que, no caso específico, se torna desnecessário. Todo o material que transborda pela clássica incisão biacrômioesterno-pubiana é lavado com duchas manuais e recolhido por dois auxiliares de necropsia.
— Bem-vindo ao banquete! — graceja o legista-chefe, apontando para uma bacia com doze bananas-da-terra extraídas da vítima. O doutor Ignacio Varejão é conhecido por suas tiradas mórbidas.
— Esse quem é? — pergunta Varejão, agora apontando para Esteves. — Muito prazer, Tobias Esteves — apresenta-se o inspector, estendendo a mão.
Ignacio ignora o gesto. Mello Noronha tenta amenizar o constrangimento:
— O Tobias era um excelente policial em Lisboa e se prontificou a me ajudar nesse caso. — Não vejo como. O único português que admiro é Salazar — pontifica o médico, nomeado depois do Estado Novo. — De qualquer forma, já concluí a causa mortis. A gorda morreu por esganadura. Um final merecido pra uma esganada — completa ele, demonstrando novamente seu humor de necrotério.
Com uma pinça, Varejão retira do estômago da morta uma bola amassada de papel carcomida pelo suco gástrico e a entrega a Noronha:
— Acho que é um recado pra você.
Mello calça as luvas de borracha e abre o papel amarelado. Esteves lê alto por cima do seu ombro:
— Custei a achar um doce apropriado
— E não é prato pelo qual eu tenha amores.
— Mas apresento a quem estiver interessado As Bananas Merengadas dos Açores.
— Trata-se de uma sobremesa muito apreciada em Portugal. Tenho certeza de que o doutor há de encontrar na barriga dessa pobre rapariga uma grande quantidade de manteiga, farinha, açúcar, leite, gemas de ovos e as claras separadas. O cheiro de aguardente, sente-se daqui. A moçoila não bebia. A aguardente faz parte da receita — finaliza o detective.
Ignacio Varejão menospreza a precisão de Tobias:
— O senhor pode entender de cozinha, mas o fato de haver bebida na receita não garante que a mulher não fosse alcoólatra.
— É verdade, doutor Varejão. O que me garante que ela não bebia é o estado perfeito do fígado que eu observo daqui. Não vejo indícios de cirrose. Aliás, no seu estágio inicial, um dos sintomas é a perda de peso. Não me parece que seja o caso. E não se esqueça de anotar no seu relatório as irritações da pele na comissura dos lábios e nas cavidades nasais. Pelo leve odor que ainda sinto, tratase, por suposto, de triclorometano ou clorofórmio; pode usar o nome que preferir, a substância é a mesma.
Fazia muito tempo que Noronha não via o presunçoso doutor Ignacio Varejão ficar sem resposta.
— Se lhe apetecer, posso lhe mandar um prato de Bananas Merengadas dos Açores. Faço-as melhor do que essas — afirma Tobias, pegando a bacia com os restos não digeridos e pondo-a nas mãos do médico. Os dois policiais saem, deixando o legista perplexo.
CAPÍTULO 10
Não havia, no Rio de Janeiro, quem não conhecesse o café Lamas, no largo do Machado. O logradouro passara a designar-se praça Duque de Caxias cinco anos antes, mas a nova denominação não pegara. Todos continuavam a chamar o local de largo do Machado, na certeza de que o antigo nome voltaria. O Lamas não fecha nunca. A grade de ferro, comum aos estabelecimentos comerciais, permanece enrolada sobre o portão. Há mais de quarenta anos, acha-se emperrada por falta de uso. Tentaram abaixá-la pela última vez em 22, na primeira revolta tenentista. O exercício revelou-se inexequível.
As mesas são espalhadas sem critério algum e não se fazem reservas. O café Lamas é frequentado por artistas, intelectuais, políticos, jornalistas e desocupados. Essa amálgama forma o rico caldo cultural da cidade. Até Getúlio Vargas, na hora do chá, vem a pé do Catete trocar o chimarrão pela erva britânica. É lá que o delegado Mello Noronha, o inspetor Valdir Calixto e o detective Tobias Esteves almoçam, no dia seguinte da visita ao necrotério. Na véspera, evidentemente, ninguém jantou. Noronha jura que jamais comerá outra banana. Terminado o almoço, tomando o cafezinho de praxe, combinam ir ao Mangue, conversar com Bogdana Malkowa, uma amiga da morta encontrada no cine Plaza.
— Vai-me ser difícil voltar àquele cinema. É pena. Tenho belas recordações daquele sítio. Assisti lá a várias fitas do Bucha e Estica. Os acompanho desde quando era puto — afirma o português, deixando Valdir Calixto atônito.
— O senhor já foi puto? — espanta-se o desqueixelado Calixto.
— Pois não fomos todos?
— Eu não! — replica Calixto, indignado.
Noronha, rindo, se apressa a explicar:
— Puto, em Portugal, quer dizer “menino”, Valdir.
— Ah, bom... — suspira ele, ainda desconfiado.
— E Bucha e Estica?
— É como nós chamamos a dupla Laurel e Hardy.
Estava a mangar consigo. Sei muito bem que, cá, chamam-se O Gordo e o Magro. Vi muitos filmes da dupla: Bucha e Estica a caminho do Oeste, Bucha e Estica na prisão, O cabeçudo das trincheiras, Salta, salta, salta rico, Sim, sim, já te atendo...
— Mas vamos ao que interessa — interrompe Mello Noronha, acendendo seu Suerdieck Panatela. — Daqui vamos à zona, interrogar as colegas da vítima.
— Doutor Noronha, é melhor eu voltar pra Central. Alguém tem de ficar de plantão caso apareça alguma testemunha — sugere o atencioso Calixto, relutante.
— Nada disso. A área do Mangue é perigosa. Você vai conosco.
— Que perigo nada, doutor. A sua presença impõe respeito — bajula Valdir
Calixto, querendo se esquivar mais uma vez.
— Você vai conosco. Ponto final — assevera Mello, soltando uma baforada. O burburinho do restaurante vai se extinguindo aos poucos, como os lampiões da rua quando vão sendo apagados um a um. Calixto, Noronha e Esteves, sentados no fundo da sala, viram-se para a entrada buscando entender o motivo daquele silêncio. Uma mulher de rara beleza atravessa o café Lamas. De estatura mediana, cabelos castanhos, ela aparenta, no máximo, vinte e cinco anos. Usa um vestido Chanel branco, de crepe de seda, que lhe acentua os contornos do corpo, e calça sapatos Ferragamo de salto médio.
Eles se surpreendem quando percebem que a moça se dirige à mesa deles. Um sorriso avassalador ilumina-lhe o rosto. Sob os olhares invejosos dos outros clientes, ela senta-se ao lado de Esteves. Coloca um cigarro Liberty Ovais entre os lábios e pede numa voz suave:
— Alguém tem fogo?
A frase soa como uma carícia sensual. Os três apalpam avidamente os bolsos. Esteves é o mais ágil. Num gesto apurado, puxa um Dunhill Unique de prata e acende o cigarro da moça.
— Muito gosto, Tobias Esteves. O curioso é que não fumo; mas trago na algibeira este isqueiro que pertenceu ao meu pai. Ele admirava as coisas inglesas. É a primeira vez que o uso. Não poderia inaugurá-lo atendendo a senhorita mais bela. Ela fica encantada com o cavalheirismo de Tobias. Avalia o português gordote e gosta do que vê.
— Obrigada. Eu me chamo Diana de Souza, sou repórter e fotógrafa da revista O Cruzeiro. Estava à procura de vocês. Apesar da sua ranhetice e da ojeriza que sente pela imprensa como um todo, Noronha derrete-se.
— Delegado Mello Noronha a seu dispor. Ouso afirmar que, se o seu talento for proporcional à formosura, a senhorita é a melhor jornalista do mundo
— ele gorjeia, tropeçando nas palavras do galanteio exagerado.
Valdir e Tobias pasmam ante aquela exibição que beira o ridículo. O delegado está totalmente seduzido.
— Obrigada.
— E eu sou o inspetor Valdir Calixto e concordo com meu superior hierárquico — ele diz, não querendo ficar atrás.
— Obrigada de novo, mas prefiro ser chamada de repórter, assim como meu chefe. Diana se refere ao magnata da imprensa Assis Chateaubriand, dono de vários jornais, estações de rádio e d’O Cruzeiro. Chatô, como é chamado, gosta de dizer que é repórter. A revista, impressa em cores pelo sistema de rotogravura, é um sucesso editorial.
— Eu mesma ilustro as minhas matérias — ela completa, mostrando a Leica 250 a tiracolo. A câmera, apelidada de Reporter, comporta dez metros de filme trinta e cinco milímetros.
— O que podemos fazer pela senhorita?
— Quero acompanhar de perto o Caso das Esganadas.
Um mal-estar toma conta da mesa. Noronha pergunta, meio sem jeito:
— Como é que um caso tão horroroso pode interessar a uma jovem tão bonita?
— Sou como a deusa que leva o meu nome. Só que, em vez de bichos, eu caço notícias.
— Me parece que a senhorita ficaria chocada com...
Diana corta Mello Noronha:
— Chega de conversa fiada, delegado. Cobri a Guerra Civil Espanhola. Nada que eu veja pode superar os horrores que vi.
Esteves interessa-se mais ainda pela repórter.
— Cobriu a guerra civil na Espanha?
— Até o ano passado, quando meu pai usou da amizade com Oswaldo Aranha pra pedir ao embaixador Peçanha que me arrancasse de lá.
— Como é o nome do seu pai? — quer saber Noronha, desconfiado.
— Décio de Souza Talles.
O nome é conhecido nacionalmente. A informação vem, com clareza, à mente do delegado: Décio de Souza Talles, milionário de São Paulo, cujas indústrias têm imensa relevância na economia do país. Influente na política, nunca aceitou cargos no governo. Getúlio lhe ofereceu o posto de embaixador em Paris, que ele polidamente recusou. Conheceu e ficou muito amigo, sim, de Oswaldo Aranha, quando o gaúcho veio cursar a faculdade de direito no Rio. Sua mulher, Dulce de Souza Talles, é famosa como incentivadora das artes e pelo trabalho voluntário que exerce na Cruz Vermelha.
— Eu estava em Granada quando García Lorca foi fuzilado em Fuente Grande. Fotografei La Pasionaria, em Madri, mas a censura daqui não me deixou publicar.
— Desculpe a minha brutal indiscrição, mas por que não usa seu sobrenome completo? — indaga Esteves.
— Não quero me aproveitar do prestígio dele. Tudo que consegui foi por merecimento próprio. Até o doutor Assis se surpreendeu quando meu pai lhe disse que eu era sua filha.
— Então, é claro, os dois se conhecem?
— Claro. Papai é um dos seus maiores anunciantes — Diana revela, acendendo outro Liberty Ovais. — Mas vamos ao que interessa. Posso participar do caso? O que mais vocês descobriram?
Dizendo isso, levanta, afasta-se dois passos, empunha a câmera e tira algumas fotos do grupo em rápida sucessão. O vaidoso Calixto ajeita sua gravata.
Noronha, discreto, pede:
— Basta, por favor, senhorita. Não use essas fotos. Fica mal uma autoridade aparecendo nas revistas.
— Admito, com duas condições: primeiro, vamos todos nos tratar por “você”. Segundo, quero ajudar na investigação.
— Qual seria sua utilidade num caso como esse?
Diana senta-se novamente, pondo de lado a Leica.
— Posso ajudar a traçar o perfil do matador. As bananas enroscadas na boca e na vagina da última vítima, pra mim, indicam que o assassino tem problemas sexuais.—
A Diana, por suposto, tem razão. — Tobias acata o pedido e a trata pelo nome. — Não havia pensado nisso, mas Freud concordaria que duas bananas daquele tamanho, agarradas à boca e à... — ele ruboriza, olhando a moça —, enfim, lá onde estavam, são um símbolo fálico.
Noronha aquiesce com a cabeça, mesmo tendo ouvido falar muito pouco do cientista. Sabe apenas que inventou a tal da psicanálise. Para ele, cuidar de doenças da cabeça com falatório é, literalmente, conversa fiada. Calixto, por sua vez, não tem ideia de quem se trata. Não se acanha de perguntar:
— Esse moço aí é médico ou verdureiro?
— As duas coisas — brinca Tobias Esteves, só para confundir a cabeça de Valdir.
— Bem, e aonde vamos agora? — adianta-se a repórter.
Noronha responde, encabulado:
— Nosso próximo destino não é muito propício a uma moça de família como você. Nós identificamos a quinta vítima. É uma prostituta polonesa chamada Halina Tolowski que morava na Zona do Mangue.
— O que afasta a teoria de que o assassino só escolhe moçoilas virgens — deduz Esteves.
— Nós vamos à zona interrogar uma colega de trabalho dela — explica o delegado.
— Posso ser uma moça de família, mas fiz duas matérias lá sobre o tráfico de escravas brancas. Além disso, não ando sem a minha Derringer — ela declara, puxando da bolsa a pequena pistola de dois canos com cabo de madrepérola. — Presente do meu pai, preocupado com minha segurança. Não se preocupe, delegado, é claro que veio junto com porte de arma. E já estive em lugares piores.
Vi Guernica destruída e, ao contrário da Deusa da Caça, garanto que não sou virgem.
Não há mais o que argumentar. Calixto ainda insiste que deveria ficar na chefatura, mas Noronha está irredutível. Esteves brinca outra vez com ele:
— Desconfio que, em vez de voltar à Central, como agora sabes que foste puto, o que tu queres é ver algum filme do Bucha e Estica.
Leia também:
AS ESGANADAS (11 a 13)
Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 51-62. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.
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