12.24.2011
JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAP. 6 a 8)
CAPÍTULO 6
“prg-3,Tupi do Rio. — Anúncio fúnebre. Deu-se, ontem, no cemitério São João Batista, a inumação das quatro desditosas moçoilas misteriosamente imoladas em nossa cidade. Nosso distinto chefe de polícia, doutor Filinto Müller, garante, contudo, que várias pistas foram encontradas e promete, para breve, a captura do desequilibrado que praticou atos tão ignóbeis”, declara Rodolpho d’Alencastro, impostando, num registro grave, sua voz multifacetada. “Esta triste notícia é uma cortesia da Matricária Dutra, a melhor para as gengivas do seu bebê. Se o nenezinho chora quando o dentinho aflora, Matricária Dutra alivia na hora.”
— Belo reclame! — diz Mello Noronha, desligando o rádio. — As famílias vão adorar...
Passa das seis horas da tarde. Noronha e Tobias Esteves conversam no gabinete do delegado. Ereto, perto da porta, o inconcusso Calixto. O inspetor tem as mãos cruzadas atrás das costas, hábito adquirido nos tempos em que era guarda-civil. Apesar do que afirmou Filinto Müller, os três sabem que ainda não existe o menor indício sobre nada.
— Ajudava mais se ele calasse a boca e parasse de me apoquentar. Aqui na Central, só se fala nisso, todo mundo dá palpite. Acaba virando bagunça — sentencia o delegado, mascando o Panatela.
— Pois. O caso está a se transformar num cafarnaum — concorda o português.
Pelo semblante enigmático de Noronha e Calixto, percebe-se que os dois não fazem ideia do que Esteves está falando.
— Numa mixórdia — ele explica.
O delegado retoma a conversa:
— Então, seu Esteves, por onde se começa?
— Pelo começo, parece-me.
Calixto e Noronha entreolham-se.
— Temos de descobrir se as raparigas tinham algo em comum. Além de ser gordas, claro. Mas, antes, vamos por partes, como diz um açougueiro amigo meu. Esteves faz uma pausa, esperando a reação ao chiste. Ninguém ri, ele prossegue:
— Os conteúdos estomacais revelados nas autópsias realmente referem-se aos doces escritos nos bilhetes: Brisas de Figueira, Caprichos de Setúbal, Fofos de Creme e Musse à Fatia. Isso nos leva a supor que o assassino conheça a culinária portuguesa. Ipso facto, deve ser português ou filho de.
— Tão simples assim? — debica Mello Noronha.
— Meu caro delegado, sigo uma lógica simples, o princípio de Ockham.
— Quem é esse Ockham, algum detetive português?
— Longe disso, delegado, longe disso. Ockham foi um frade inglês da Idade Média, um filósofo. A sua teoria é a de que, se uma acção tiver várias explicações, a mais simples é a melhor: “Si plures interpretationes eiusdem actionis admittuntur, simplicissima est optima”. Claro, em latim fica muito mais bonito.
— O senhor fala latim? — pergunta o imutável Calixto.
— Formei-me em filosofia e psicologia pela Universidade de Coimbra.
— Tudo isso é muito bonito — interrompe Mello Noronha. — Mas como é que nos ajuda?
— Não sei. Primeiro, temos de procurar os suspeitos.
— Eu não gostei nada do papa-defuntos — sugere Calixto, rompendo a tradição de não se intrometer.
— Não desconfio de ninguém. É óbvio que ele estava alterado. Provavelmente, emborcou uns copos antes pra acalmar os nervos. Afinal, tratou de quatro enterros ao mesmo tempo e de pessoas importantes. Não era lá uma malta qualquer.
— Claro! — aquiesce Mello Noronha, admoestando Calixto. — A funerária Estige é tradicional. Acusar o homem só porque ele é meio esquisito é tão idiota quanto dizer que “o assassino é o mordomo”. Súbito, o inspector põe-se de pé e começa a andar em círculos, olhos semicerrados, gemendo baixinho.
— Está sentindo alguma coisa? — preocupa-se Noronha, esquecendo-se do cacoete de Tobias.
O supersticioso Calixto sugere de longe:
— Vai ver que ele é espírita. Tem pai de santo em Lisboa?
Noronha fulmina Calixto com o olhar.
— Só perguntei porque eu sou filho de Xangô, doutor. Se for preciso, conheço...
— Não é nada disso, por favor, me desculpem — corta Tobias Esteves.
— É o meu jeito de raciocinar melhor. Estou cá a pensar no perpetrador e se pode estimar, por exemplo, que trata-se de um músico frustrado. Deu-se o trabalho de colocar instrumentos de corda dispostos como um quarteto clássico: dois violinos, a viola e o violoncelo. Imagino, também, que o gajo possua uma camioneta grande ou qualquer veículo capaz de transportar essa carga imensa. Não deve ser um caminhão aberto, pois seria logo notado. Como elas não se conheciam, é preciso saber se alguém conhecia as quatro, se frequentavam os mesmos lugares, e, por suposto, é flagrante o ódio que o homem devota às gordas, bonitas ou não. Fica a pergunta: por que matá-las? Matou antes? Vai seguir matando? Com certeza, já sabemos que o depravado é provavelmente canhoto.
— Como assim? — espanta-se Noronha.
— Pelas manchas secas de sêmen deixadas na parte externa das coxas direitas das moçoilas. Fica mais fácil ao canhoto encostar-se à direita pra fazer as suas vergonhas.
Mello Noronha levanta-se incrédulo e consulta seu relógio. A bela Yolanda o espera em casa. Depois do jantar, ele ainda tem de suportar uma apresentação de L’après-midi d’un faune no teatro República.
— Parabéns pelas suas deduções. Só que elas não provam nada — conclui, impaciente, o delegado.
— Talvez, senhor doutor delegado, talvez... mas, segundo meu professor de lógica em Coimbra: “Vacuitas indiciorum indicium vacuitatis non est”.
— Em português, por favor?
— “Ausência de prova não é prova de ausência.”
CAPÍTULO 7
“... em nosso país, o trabalhador, principalmente o trabalhador rural, vive abandonado, percebendo uma remuneração inferior às suas necessidades. No momento em que se providencia para que todos os trabalhadores brasileiros tenham casa barata, isentados dos impostos de transmissão, torna-se necessário, ao mesmo tempo, que, pelo trabalho, se lhes garanta a casa, a subsistência, o vestuário, a educação dos filhos...”
Depois da ovação recebida ao entrar em carro aberto no estádio São Januário, do Vasco da Gama, o presidente Getúlio Vargas lê o discurso escrito por Lourival Fontes, diretor do Departamento Nacional de Propaganda. Como em todo Primeiro de Maio, o povo lota o estádio para festejar seu ditador. Ficavam em casa ouvindo pelo rádio os doentes, inválidos, paralíticos e quem mais não conseguisse entrar.
No Mangue, zona do meretrício, a clientela é escassa. Além do feriado, é domingo, dia fraco nos randevus da cidade. As “polacas”, como são chamadas as prostitutas vindas do Leste Europeu — sejam polonesas ou não —, tiram o dia para descansar. A expressão “mulher de vida fácil” está longe de refletir a verdade. As ruas estão desertas. Durante a semana, os passantes são abordados agressivamente naquela área; hoje, não há clientes.
Como em todos os domingos, a freguesia guarda as festas para a família. Como em todos os domingos, Halina Tolowski volta para casa, na rua Pinto de Azevedo, depois de visitar sua amiga de infância Bogdana Malkowa. Como em todos os domingos, ela usa saia preta longa e blusa cinza; trajes discretos para os dias de folga, e não as roupas quase obscenas que veste no resto da semana para cativar os homens.
Halina e Bogdana são de Zelazowa Wola, uma aldeia no leste da Polônia. Os cabelos ruivos, os olhos azuis e a pele muito branca, raros nos trópicos, garantem às duas boa aceitação no mercado do sexo. Vieram para o Brasil no mesmo navio que trouxe centenas de moças do Leste Europeu, fugindo da penúria que grassa na região.
Halina aguarda ansiosamente as visitas dominicais, porque Bogdana sempre prepara uma travessa de Pqczek, bolinhos de massa fritos semelhantes aos sonhos, recheados de geleias e de frutas em conserva. Ambas relembram, pelo paladar, a terra natal. Na verdade, Bogdana nem toca mais nos bolos. Há meses, a tuberculose lhe consome os pulmões, tirando-lhe o apetite e os fregueses. “Lepiej, jest wiecej”, pensa Halina, em polonês, curvando-se sobre a bandeja. “Melhor, mais fica.” Halina Tolowski daria a vida pela amiga, porém jamais conseguiu resistir aos carboidratos. Nem percebe a vida da companheira esvaindo-se na sua frente.
Apesar das vicissitudes pelas quais passou, ela continua obesa, característica que a acompanha desde o berço. Chupava as tetas da mãe com a avidez das sanguessugas. Contemplando-se sua silhueta, era difícil imaginar-se diante de uma sobrevivente da miséria. Seu belo rosto de traços caucasianos contrasta com a vastidão do corpo. Halina é um desses mistérios da natureza. A fartura das suas carnes atrai um tipo especial de habitué. Homens que amam se engolfar nas cavas da volumosa polonesa. Numa irônica contradição, o maior deles é o palhaço Rodapé, anão famoso do circo Spinelli, igualmente celebrado nos picadeiros como baixo-barítono, interpretando, entre outras árias de óperas, “Nessun dorma”, de Turandot, e “Vesti la giubba”, de Pagliacci. Rodapé, conhecido pelos amantes do bel canto como o Pequeno Gigante, gosta de cobrir a polaca nua com notas de contos de réis. Adora mergulhar naquelas banhas, perder-se em suas dobras. Halina Tolowski vem rente aos muros das casas. Pelo vão das janelas ainda se escuta a arenga do ditador numa cacofonia demagógica. Ela engole um último Pqczek e arrota de prazer. Não se dá conta do bizarro automóvel parado na esquina da rua Júlio do Carmo.
CAPÍTULO 8
Os gemidos intermitentes da vítima abafados pela mordaça não o incomodam. Há dias que a mantém submissa num estado de semissedação, pensando na guloseima mais conveniente. Ele busca inspiração sentado ao piano Pleyel de cauda inteira no galpão da Elpídio Boamorte. Caronte toca uma das suas composições favoritas, a Polonaise, op. 53. As mãos longas de unhas vítreas do emissário da Morte dedilham o teclado com destreza insuspeita. Ele toca furiosamente, exaltado pela polonesa gorda amarrada na mesa ao lado. A Polaca é como costumam chamar a criação genial de Chopin. A interpretação seria impecável, não fossem as pausas que o concertista usa para fumar. Seu talento natural é exacerbado pelo cigarro de haxixe, embebido em líquido de embalsamar, que ele aspira sofregamente.
Aturdida pelos eflúvios do clorofórmio, a polonesa mal consegue distinguir a Heroica, composta para homenagear sua terra natal. Por uma dessas ironias inexplicáveis, Chopin nasceu em Zelazowa Wola. Como todas as pessoas de lá, Halina conhece a história. Sabe de cor a Heroica. O pequenino Rodapé, por quem ela tem um carinho especial, deu-lhe um gramofone de presente com uma série de discos do compositor, entre eles o Opus 53 em lá bemol maior.
O cheiro de vômito não incomoda Caronte. Ele teve de praticar uma lavagem estomacal na gorda semiadormecida. Não quer que a preciosa receita que
em breve vai administrar se misture aos doces vulgares ingeridos anteriormente. Caronte é o purista da basse cuisine, o gourmet do post mortem. Ele está quase chegando ao final do seu concerto particular. Pena que a audiência não lhe faça justiça. Ele observa com o olhar carregado de cobiça a gorda esparramada sobre a mesa. Os seios enormes pendem para os lados, e o ventre dilatado, coberto de estrias, transforma a realidade em devaneio. Os vapores do haxixe encharcado em formol aglutinam no seu cérebro as imagens daquela gorda puta nua às da sua mãe. Ela, também gorda, também nua, também puta. Puta gorda. Gorda puta. Gorda filha da puta. Caronte já sabe o que vai preparar. Os dedos nodosos ferem as teclas no último acorde da Polonaise.
As poltronas estofadas de couro do Plaza, na rua do Passeio, ainda mantêm a aparência do dia da inauguração, dois anos antes. Silver screen, projetores modernos, amplo fosso de orquestra e o estilo art déco do luxuoso prédio tornam o cinema um dos pontos de atração do centro da cidade. Após a última sessão, uma equipe de faxineiros limpa os papéis de bala e outras pequenas imundícies descartadas pelos espectadores. Feito isso, entregam as chaves da sala a Juan Arrieta. Arrieta é um anarquista basco foragido que faz biscate como vigia noturno. Veio para o Rio com uma equipe de pelota basca depois que os aviões nazistas arrasaram sua cidade. Nessa madrugada, por volta das três horas, Arrieta é despertado por um estrondo.
— Es un atentado! — grita.
Saindo do torpor do sono, Juan se dá conta de que está no pequeno quarto onde dorme, ao lado da cabine de projeção. O barulho veio do salão principal. Com quarenta anos, Juan Arrieta não tem medo de nada. Enfrentou uma guerra civil e foi casado com uma bailarina de flamenco.
Pega um flashlight dos vaga-lumes e desce as escadas até o foyer. As portas do salão de baixo estão abertas. O facho de luz da potente Eveready varre a plateia deserta. As poltronas perfiladas lembram-lhe os execrados batalhões de Franco. Arrieta avança pelo corredor entre as fileiras vazias. Fascinado pelo reflexo da lanterna na tela prateada, quase tropeça no parapeito do fosso de orquestra. A lanterna escapa-lhe das mãos, cai em cima de uma das cadeiras dos músicos e ilumina a gorda polonesa nua, escarrapachada sobre o piano.
— Carajo de mierda, me cago en la reputa madre que parió a Franco! — pragueja o basco, estupefato.
Da boca escancarada de Halina Tolowski surge uma enorme banana-daterra. A ponta de outra banana sobressai como o topo de um iceberg em sua vagina de pelos rubros. Um colar de cascas de banana enfeita-lhe o pescoço. As órbitas, sem os olhos, se assemelham a dois pequenos lagos negros e profundos. Grampeado em seu corpo, um cartaz colorido anuncia a estreia da próxima semana no cine Plaza: a canção do adeus. Com Jean Servais e Lucienne Le Marchand, o filme francês conta a vida de Frédéric Chopin.
Leia também:
AS ESGANADAS (CAP. 9 e 10)
Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 42-50. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.
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