12.25.2011
JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAP. 17)
CAPÍTULO 17
Nos primeiros dias de junho, há um relaxamento na vigilância ostensiva das ruas da cidade. Primeiro porque não houve nenhuma repercussão a favor do golpe integralista e, segundo, e mais importante ainda, o Brasil estreou na terceira Copa do Mundo, na França, com uma vitória de seis a cinco sobre a Polônia. Os europeus se espantaram com a habilidade de Leônidas da Silva, o Diamante Negro, criador da “bicicleta”. Durante o jogo, no meio do campo encharcado, Leônidas perdeu as chuteiras, mas, mesmo assim, descalço, fez um gol. A Copa vem sendo marcada pela política. A Alemanha nazista invadira a Áustria e incorporara alguns jogadores austríacos à sua seleção. Os italianos eram vaiados por entrarem em campo fazendo a saudação fascista.
Caronte não é torcedor, odeia futebol. Na verdade, odeia qualquer tipo de esporte. A coisa mais parelha a uma arena esportiva que ele conhece é o cercado das rinhas de galo. Ele adora uma boa rinha. Principalmente aquelas mais sanguinolentas, quando os donos revestem os esporões das aves com esporas de aço afiadas como navalhas.
O que importa é que a competição está sendo transmitida em cadeia nacional diretamente da Europa. Acomodado nas gerais, junto ao público, o speaker Leonardo Gagliano Neto, da rádio Clube, narra os jogos do Brasil. Pouco interessa a Caronte o resultado das pelejas. O que vai favorecer o seu passatempo predileto é que a maioria da população fica em casa ouvindo pelo rádio. Os que não têm aparelho se juntam diante da galeria Cruzeiro ou nos estádios de futebol para ouvir as transmissões pelos alto-falantes que as emissoras ali instalaram. Caronte acha esse entusiasmo de uma absoluta vulgaridade. Prefere ouvir programas de música clássica.
Lendo os jornais, soube que o jogo da véspera pelas quartas de final, contra a Tchecoslováquia, havia sido de uma violência ímpar e que o radialista, ao narrar a disputa, criara um trocadilho devido à brutalidade dos adversários, dizendo: “Eles não são tcheco-los-vacos, são tcheco-los-toros”. E que repetira essa tolice ad nauseam durante a partida.
Tarde de quinta-feira, 16 de junho de 1938, feriado de Corpus Christi. Milhares de torcedores escutam a transmissão feita por Gagliano Neto do confronto semifinal da Copa do Mundo, entre Brasil e Itália, no Stade Vélodrome de Marselha. Exceto por um ou outro transeunte desinteressado, a cidade está deserta. No seu gabinete, Noronha e Calixto, ouvidos colados ao rádio, sofrem com a irradiação. Faltam vinte e cinco minutos para terminar o primeiro tempo, e o placar ainda não se moveu. Num dado instante, referindo-se ao zagueiro italiano Pietro Rava, o locutor deita o verbo numa linguagem elaborada: “Em um impacto mais violento de encontro ao pé do stopper itálico, a esfera perdeu sua rotundidade legal, ficando inadequada para a prática do viril esporte bretão”.
— O que é que aconteceu? — pergunta o intrigado Calixto.
Noronha responde, lacônico:
— A bola furou.
A “esfera” é trocada e a partida continua.
Indiferente ao certame, Caronte aproveita o momento para retomar a caça às adiposas. Lera com desprezo o que Diana escrevera sobre ele. Impotente? Ele? Logo ele, que subjugava as gordas a todas as suas vontades? “Eu só me sentiria impotente na Índia, onde as vacas são sagradas”, ele sorri do próprio gracejo. Nem chega a sentir ódio daquela fêmea burra falando em banana com seu psicologismo hortigranjeiro. “Ah, será que ela é gorda?...” Ele imagina uma Diana imensa saindo da redação. Caronte afasta o pensamento dispersivo e se concentra no seu prazer macabro. Logo após o início do jogo, ele volta à espreita habitual, no vão escuro do Beco dos Barbeiros. É lá que as escolhe, é lá que tocaia o próximo butim. Sua boca enche-se de saliva numa antevisão do gozo reprimido. Duas gordas saem do reduto. Ele se encolhe junto ao muro e, num gesto generoso, as deixa passar. “Hoje, tenho algo singular”, ele pensa, sua magra silhueta camuflada pelas sombras dos portais. Caronte já seguiu a presa ideal inúmeras vezes e sabe para onde ela se dirige, porém quer sentir novamente a emoção da caça. Como um atirador de elite, ele aguarda o alvo. Agora, com a cidade tomada pela paixão dos jogos, é tempo de abate.
Na delegacia, Calixto rói as unhas. O ataque italiano procura superar o meio-campo brasileiro. Aos trinta minutos do primeiro tempo, o Brasil vai ao ataque e Gagliano Neto se entusiasma, narrando rápido, sem fazer vírgula: “O Brasil ataca pela esquerda Perácio combina com Luisinho Luisinho a Martim Martim passa de primeira para Romeu Romeu a Patesko Patesko perde para Ferrari Ferrari a Andreolo que estende a Serantoni Zezé interfere e devolve a Romeu Romeu a Lopes Lopes avança pela lateral e chuta a gol o goalkeeper Olivieri salta e espalma para a linha de fundo!” Caronte não tem que esperar muito. Logo surge a candidata eleita. Basta segui-la ao local da colheita. Ela vem andando rápido, com seus passinhos estreitos; olha para todos os lados da rua deserta, para certificar-se de que ninguém a observa. Quer passar despercebida, tarefa pouco provável para alguém daquele tamanho. “Ainda mais com essa roupa!” Caronte ri baixinho, quase revelando sua posição.
O drama continua a se desenrolar no campo do Vélodrome. Noronha e Calixto se esforçam para decifrar, entre os ruídos da estática, a locução irrepreensível de Gagliano, que, num fôlego, consegue a proeza de pronunciar com clareza cerca de duzentas palavras por minuto:
“Faltam poucos minutos para o término do primeiro tempo a bola é lançada por Domingos que adianta para o centro do campo a Luisinho mas Ferrari corta o passe e desvia para Meazza Meazza para Piola dentro da área vem Machado e rouba-lhe o balão de couro Machado devolve a Romeu Romeu passa para Lopes que escorrega e perde a bola para Locatelli Locatelli entrega para Colaussi na entrada da área Colaussi chuta com violência porém nosso goalkeeper defende com firmeza e o juiz Hans Wüthrich da Suíça trila seu apito encerrando o primeiro tempo!”
Sem ter ideia do monstro que a acossa, a jovem deixa o Beco dos Barbeiros e entra na igreja do Carmo. Caronte observa da porta a moça se benzer molhando os dedos na água benta da pia ao lado da entrada. Ela se ajoelha com dificuldade, segurando um pequeno frasco entre as palmas unidas, numa oração silenciosa. Levanta-se e sai na rua Primeiro de Março. Caronte a acompanha pela calçada oposta. A gorda vira à direita na rua São José e anda até o largo da Carioca, para pegar o bonde no Tabuleiro da Baiana, em direção à zona sul.
Durante o intervalo, Diana e Esteves chegam ao gabinete de Noronha. Como Portugal foi eliminado pela Suíça, Esteves torce pelo Brasil. Nervosa, Diana fuma em cadeia seus cigarros Liberty Ovais. Noronha acende um Panatela, adensando o nevoeiro. Valdir Calixto e Tobias Esteves tossem.
Tabuleiro da Baiana. O bonde está quase vazio. Há poucos carros circulando devido ao jogo. O condutor, que preferia estar na galeria Cruzeiro ouvindo o jogo pelos alto-falantes, ajuda a gorda a subir no estribo. Ela transpira bastante, empapando o lenço que usa para enxugar o rosto. As vestes largas não lhe ocultam a nediez. Caronte instala-se no último banco do carro e permanece de atalaia. Tilinta a campainha do condutor e o motorneiro avança pela Senador Dantas, o bonde rangendo nos trilhos. No largo da Glória, uma brisa suave atravessa o carro aberto e agita o chapéu de largas abas brancas da jovem, que então se assemelham às asas de uma gaivota alçando voo. O que primeiro excitou a imaginação do monstro foi precisamente o fato da gorda ser freira. Na Itália, são dezenove horas e seis minutos. Gagliano Neto retoma sua metralhadora verbal:
“Atenção torcedor brasileiro! Vai recomeçar o confronto entre Brasil e Itália! Os players das duas equipes vão para as suas respectivas posições! O juiz apita e Romeu dá a saída passando a Lopes que dá a Luisinho este vem com velocidade e retorna a Lopes que o acompanha e chuta contra o gol italiano mas o back Foni percebe e põe a bola a corner! Luisinho bate o corner mas novamente Foni intercepta e cabeceia pondo a bola para a lateral! Domingos cobra para Perácio Perácio perde para Piola na altura da nossa linha média Piola dá um passe longo para Biavati na extrema direita Afonsinho o persegue mas não consegue apoderar-se da bola! Domingos domina a situação e devolve a bola para Patesko Patesko rompe a linha média adversária mas é derrubado por Foni! O bandeirinha assinala e o árbitro marca o foul contra a Itália no limite da área perigosa! Grande oportunidade para o Brasil! Machado bate a penalidade mandando a esfera para fora do gramado!”
Catete. O bonde desliza nos carris. Irmã Maria Auxiliadora refestela-se no banco duro de madeira. Continua a suar muito, confirmando que o pesado hábito monacal não se constitui na vestimenta ideal para os trópicos. Seu nome de batismo é Genoveva, em homenagem à santa de quem sua avó era devota. Sendo filha de pai desconhecido e tendo sua mãe, Mirtes de Souza, uma lavadeira vinda do interior do Paraná, morrido muito cedo, a pequena Genoveva fora criada pelas Irmãs Clarissas, no mosteiro Nossa Senhora dos Anjos da Porciúncula, na Gávea.
É para onde a irmã Maria Auxiliadora se dirige. Herdara da mãe os lindos olhos azuis e o extenso diâmetro. Aos trinta anos, depois do noviciado, Genoveva recebera, na consagração, o nome de irmã Maria Auxiliadora. Nesta quinta-feira de Corpus Christi, o convento está praticamente vazio. A abadessa aproveitou o feriado para organizar uma peregrinação até a cidade de Aparecida, em São Paulo, para alegria das freiras e noviças. Sua hospedagem ficaria a cargo da arquidiocese de Nossa Senhora Aparecida. Irmã Maria Auxiliadora sente-se culpada, porque burlou a confiança da abadessa. Inventou uma forte enxaqueca para permanecer sozinha no Rio. Não podia faltar ao encontro no Beco dos Barbeiros e era a ocasião perfeita para se ausentar sem muitas explicações. O veículo deixa o largo do Machado, passa pela praça José de Alencar e chega à rua Marquês de Abrantes.
Para Caronte, a viagem é o aperitivo antes da ceia. O prélio estende-se pelo gramado francês e Gagliano informa ao Brasil:
“Luisinho passa para Perácio e este a Patesko que embora acossado por Andreolo consegue devolver a bola a Perácio que chuta a gol Olivieri num salto felino pula mandando a bola para corner! O Brasil perde uma ótima oportunidade de abrir a contagem! Tiro de meta a pelota vai em direção a Martim que cabeceia para Luisinho este para Romeu que estende um belo passe a Patesko Patesko escapa quando vai chutar é derrubado por Foni e a bola volta ao centro do campo! Patesko consegue romper a linha média adversária e entra na área italiana mas é derrubado por Foni! Nosso ponta-esquerda sofre foul! O bandeirinha assinala mas o juiz não consigna! Para mim a Suíça deixou de ser neutra!” Botafogo. O Gávea, bonde elétrico no 10, atravessa a praia e entra na Voluntários da Pátria. Caronte se abana com o chapéu preto de abas largas, sem desgrudar a vista da monja. Para passar o tempo, irmã Maria Auxiliadora lê os anúncios que estão afixados naquele vagão, bem como em todos os vagões da Light:
Larga-me... deixa-me gritar!... Na tosse, bronquite ou rouquidão, use Xarope São João. O clássico: Veja, ilustre passageiro, O belo tipo faceiro Que o senhor tem a seu lado. E, no entanto, acredite, Quase morreu de bronquite, Salvou-o o Rhum Creosotado. E o reclame de um produto muito usado por Maria Auxiliadora: Coceira, frieira, assadura, Ai, meu Deus, que grande tortura; Mas eis que encontrei a solução: Passei a pomada de São Sebastião. A irmã enrubesce de vergonha, como se o mundo associasse aquela propaganda às intertrigens das suas reentrâncias. Ela se benze e põe-se a rezar o terço.
Na França, o drama toma forma de tragédia: “Dez minutos do segundo tempo e Machado dispara o tiro de meta para o Brasil Luisinho apodera-se da pelota mas é desarmado por Andreolo Andreolo entrega para Biavati Biavati foge pela direita e centra para Colaussi na cabeça da área Colaussi chuta e é gol.” Humaitá. O no 10 segue pela Voluntários da Pátria, bamboleando nos trilhos, serpenteando como um dragão nos festejos do ano-novo chinês. “Olha à direita!”, grita o condutor, avisando sobre uma passagem mais estreita. Na chefatura, a decepção é total. Noronha, nervoso, acende mais um charuto, esquecendo-se do primeiro fumado pela metade, e profetiza:
— Agora, não tem mais jeito.
O eterno otimista Calixto replica:
— Calma, doutor, ainda dá tempo.
Esteves, o sem metafísica, torce a teoria de Ockham:
— Pela lógica, quando algo começa errado, geralmente termina errado. Diana enuncia a frase mais gasta pelas torcidas do mundo inteiro:
— Futebol não tem lógica.
Calixto replica com outra verdade acaciana:
— Eu diria até mais: futebol é uma caixinha de surpresas.
Pelas ondas curtas do rádio, Gagliano Neto tenta animar a torcida: “Nosso valoroso goleiro Walter não se abate amigos ouvintes de todo Brasil pois sabe que o tiro itálico era indefensável! Romeu dá nova saída passa a bola a Luisinho Luisinho perde para Andreolo que chuta para fora! Zezé cobra o lateral em direção a Machado mas quem recebe o balão é Colaussi Colaussi mata a bola no peito mas perde para Lopes Lopes tenta fugir pela direita mas é desarmado por Foni que passa a Locatelli! Nosso meio-campo com Martim Luisinho e Perácio parece envolvido pelos adversários! Nesta altura o técnico Adhemar Pimenta deve lamentar a ausência daquele que já é considerado o maior crack da competição Leônidas da Silva o Homem de Borracha! Adhemar alega que o player sofre de dores musculares porém alguns comentam que Pimenta estaria poupando o Diamante Negro para a final! A verdade é que o nosso brilhante center-forward está fazendo falta!”
Largo dos Leões. Escutam-se os berros da multidão que se aglomera em torno dos alto-falantes instalados pela Light nos portões da imensa garagem de bondes localizada no largo. Irmã Maria Auxiliadora se assusta e Caronte boceja. “Apesar da desvantagem de um gol nossos heroicos atletas não desanimam! Patesko conduz um perigoso ataque pela esquerda mas é desarmado por Pietro Rava e os italianos se fecham na defesa trocando passes com o objetivo de gastar o tempo! A falta de Leônidas na nossa equipe ganha dimensões dantescas! O Brasil domina territorialmente a Itália sem entretanto atingir o alvo! Serantoni desce pela direita e desfecha um potente chute mas Walter pratica uma bela defesa aplaudida pela multidão! Ferrari se apodera do couro e cruza para Biavati que passa a Meazza o forward italiano dribla Martim e devolve a Ferrari que perde o couro para Domingos! Domingos estende para Lopes no centro do gramado mas é Locatelli quem responde! Walter sai do gol e põe a bola para fora!
Epa! Que que é isso minha gente! Piola dá um violento tranco em Domingos e Domingos revida aplicando-lhe uma rasteira! O juiz apita penalty! A pelota estava fora de jogo mas mesmo assim ele assinala penalty contra o Brasil! Meu Deus meu Deus meu Deus! Penalty! Sua Senhoria errou! A bola estava fora de campo o máximo que o árbitro helvético poderia fazer era nos punir com a expulsão do back! Domingos da Guia apenas revidou a agressão do atacante italiano mas o juiz não viu! Atenção torcida brasileira torçamos juntos! Estamos a doze minutos da segunda etapa! São mais de quarenta milhões de brasileiros colgados no silvo do apito de Hans Wüthrich! Meazza acaricia a pelota antes de pousá-la na marca para cobrar a penalidade máxima! Ele corre para a bola e na corrida seu calção arrebenta e desce-lhe pelas pernas mas mesmo assim Meazza chuta! A esfera fatídica vai para um lado Walter pula para o outro! Gol.”
— É culpa do escroto do puto do filho da puta do Filinto Müller! — esbraveja Noronha, esmurrando a mesa, no final do jogo.
Esteves quer saber como é possível responsabilizar Filinto pela derrota.
— Trama fascista! — explica o delegado, sem explicar nada.
— É isso mesmo, doutor. Drama fascista! — arremeda Calixto, bajulando Noronha.
Depois de sofrer o segundo gol, o Brasil reage, mas só consegue marcar poucos minutos antes do término da partida. Por todo o Brasil, o resultado equivale a uma hecatombe. Um fanático por estatísticas calculou que Gagliano Neto pronunciou pelo menos quinze mil palavras durante o jogo, o que equivale a uma velocidade de doze mil palavras por hora.
— Mesmo assim, ainda tem o jogo contra a Suécia, contando com
Leônidas. Nós podemos subir ao pódio no terceiro lugar — lembra Diana, tentando consolar o grupo.
— É verdade, doutor Noronha — anima-se Calixto. — Terceiro lugar, numa Copa do Mundo, lá na Europa. Não é nada, não é nada...
— Não é nada — arremata Tobias Esteves, com sua lógica arrasadora.
Jardim Botânico. O no 10 chega à praça Santos Dumont. Irmã Maria Auxiliadora e Caronte saltam do carro simultaneamente. Ao observador imaginoso, o sincronismo da cena lembraria uma marcação teatral. O bonde segue sua rota.
“Só falta completar a pé a distância que vai nos levar ao destino final. No caso da freira, literalmente...”, pensa Caronte. A cidade está silenciosa como nas Quartas-Feiras de Cinzas, depois do Carnaval. Na praça Santos Dumont, o caçador separa-se da caça. É uma separação temporária. Irmã Maria Auxiliadora atravessa a estreita rua das Magnólias para a Doze de Maio e sobe resfolegando, à direita, a rua do Jequitibá até o mosteiro das Clarissas Pobres. Caronte segue-a de longe, porém continua em frente, para o largo Allyrio de Mattos, no fim da mesma rua. Foi lá que ele guardou seu carro de manhã cedo. Nem se preocupou em escondê-lo. Sabe, pela experiência adquirida em anos como papa-defuntos, que as pessoas evitam se aproximar dos furgões funerários, por uma associação inconsciente com a sua própria morte.
As ruas do bairro permanecem desertas. Caronte entra pela porta lateral do veículo destinada aos ataúdes e abre a tampa do caixão que trouxera. Dentro dele, dispostas com esmero, há uma batina de frade bem dobrada, a corda que cinge a cintura, sandálias franciscanas, uma Bíblia antiga, bastante desgastada pelo uso em vários velórios, uma maleta abaulada de couro, como aquelas que os médicos utilizam para transportar seus instrumentos, e uma adaga gitana. A adaga era das usadas nos rituais ciganos de passagem da adolescência para a idade adulta. Caronte se encantara com o desenho gótico do punhal e o comprara, por meia-pataca, de uma velha romena bêbada, numa feira de bugigangas em Augsburg. A faca, de longa lâmina dupla e cabo esculpido, valia decerto muito mais do que ele pagara.
Caronte fecha-se no estreito compartimento do furgão, tira a roupa, meias e sapatos. Em seguida, ele veste a batina e sai do carro para amarrar a corda rústica em volta da cintura. Calça as sandálias e as acha bastante confortáveis. “Pena que não combinem com os ternos que uso para trabalhar”, pensa, num devaneio. Escamoteia o mórbido punhal dentro das largas mangas do hábito, prendendo-o na bainha atada ao braço. O rosto pálido e a magreza quixotesca dão-lhe a aparência de um frade recém-saído do claustro. Ele senta-se no banco da frente, com a maleta ao lado, e finge ler a Bíblia.
Percebe-se que há pouco movimento atrás dos muros do convento. Lá ficaram apenas algumas freiras idosas e irmãs leigas para ajudar nos trabalhos, sendo que a quase totalidade das freiras e noviças participam da peregrinação a Aparecida. Pacientemente, Caronte acaricia a maleta onde leva seus próprios petrechos litúrgicos, e aguarda o anoitecer, logo depois das Vésperas, quando irmã Maria Auxiliadora se dirige, como é de seu costume, à capela do mosteiro e se confessa, procurando absolvição para seu único pecado.
Leia também:
AS ESGANADAS (CAP. 18 e 19)
Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 85-99. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.
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