12.25.2011

JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAP. 18 e 19)


CAPÍTULO 18

A capela do mosteiro Nossa Senhora dos Anjos da Porciúncula, erigida alguns anos antes pelas Irmãs Clarissas, é o principal amparo de seu capelão, frei Crispiniano Boaventura. O bondoso frade cumpre outras diligências religiosas; contudo, a capela, onde ele celebra missas e atende à confissão das freiras, é também o abrigo das orações de frei Crispiniano sempre que o indulgente monge é consumido por dúvidas quanto a sua vocação. O crepúsculo desta quinta-feira de Corpus Christi é um desses momentos. A capela está vazia. As poucas religiosas de mais idade que não embarcaram na piedosa excursão participaram, como todas as quintas-feiras e domingos, da Adoração ao Santíssimo Sacramento, das oito às dezoito horas, e já se recolheram às suas celas em profunda meditação, desprendidas do universo temporal que as cerca.
Frei Crispiniano é alto e magro, e, quando ele anda com suas passadas rápidas, os cabelos muito ruivos e desalinhados dão-lhe o aspecto de uma tocha bruxuleante. Agora, ajoelha-se diante do altar e pede ao arcanjo Miguel, seu protetor desde os tempos do seminário, quando era consumido pelas tentações da carne, um sinal que lhe assevere a fé. De olhos fechados e braços estendidos, ele reza com fervor, suplicando uma confirmação do seu chamamento:
“São Miguel Arcanjo, primeiro raio de Deus, gládio da proteção e mensageiro da vontade de Deus, defende-me das vacilações na minha crença, sê nosso guardião  contra as tentações e as ciladas do demônio. Tu, príncipe da milícia celeste, pela virtude divina, precipita ao inferno com tua espada todos os espíritos malignos que assolam minha alma com incertezas. Dá-me um indício de que minha devoção é aceita e será recompensada nos céus.” No auge do enlevo, num instante de plena adoração, frei Crispiniano Boaventura tem uma epifania e sabe que a dor fulgurante que lhe trespassa o coração como um raio é a espada de são Miguel Arcanjo abrindo-lhe as portas do paraíso.
Na verdade, a espada é apenas a adaga gitana de Caronte abrindo caminho para o confessionário. Assim que irmã Maria Auxiliadora entra às escondidas na capela, para a confissão diuturna, é atraída pelo som do órgão raramente tocado, a não ser por ocasião das missas solenes celebradas pelo arcebispo. Ela estranha a presença daquele frade capuchinho de magreza eremítica, cujas mãos longas e esquálidas extraem tão sublime som do órgão empoeirado. Sua palidez compete com a das imagens de santos que enfeitam a capela. Irmã Maria Auxiliadora reconhece o tema interpretado com tanta maestria. É a missa Se la face ay pale, de Guillaume Dufay. Irmã Maria Auxiliadora se pergunta a que deve essa bênção e indaga por frei Crispiniano, seu confessor habitual.
— Pax et lux, irmã Maria Auxiliadora. Sou o frei Annunciatto. Nosso amado irmão Crispiniano foi obrigado a atender uma convocação da Ordem — mente Caronte, que escondeu o corpo do pobre frade na sacristia. — Pediu-me que ouvisse a confissão da irmã Maria Auxiliadora, caso a irmã não veja nenhuma objeção, claro.
— Como recusar um confessor que interpreta Se la face ay pale de maneira tão angelical? A música é minha segunda paixão.
— Posso perguntar qual é a primeira?
— Pode, mas só durante a confissão — responde irmã Maria Auxiliadora, dirigindo-se, saltitante, ao confessionário.
Ele levanta-se e, com a maleta na mão, a acompanha até o cubículo colocado perto do púlpito. Ela observa a pequena mala enfeitada com um crucifixo. Caronte nota a curiosidade da freira e explica:
— Dentro dela trago objetos do ofício. Costumo chamá-la de meu estojo sacro de emergência, mas ainda é surpresa.
Irmã Maria Auxiliadora desculpa-se, embaraçada:
— Perdão, frei Annunciatto, não quero parecer abelhuda.
— De forma alguma, não deve haver segredos entre nós. Vamos — ele diz, apontando o confessionário.
Caronte ajuda a irmã Maria Auxiliadora a ajoelhar-se no seu lado da cabine,
instala-se no outro e segreda, um sorriso servil estampado no rosto:
— Fico feliz que a minha ousadia musical não tenha ofendido seus ouvidos. Guillaume Dufay é o meu compositor medieval favorito. A freira nem escuta as palavras de Caronte, pois já começou o  em latim:
— Ignosce mihi, Pater, quia peccavi!
E emenda numa ladainha veloz, repetida mecanicamente ao longo dos anos:
— Deus meus, ex toto corde paénitet me ómnium meórum peccatórum, eáque detéstor, qui peccándo, non solum...
É interrompida por Caronte:
— Minha filha, tenho certeza de que Deus conhece bem o ato de contrição. Quando foi sua última confissão?
— Ontem.
— E que sério pecado a irmã cometeu de ontem para hoje?
— O da gula.
— É um pecado capital, minha filha, mas pode ser mortal.
— Eu sei, eu sei! Mas, por mais que eu reze, não consigo me livrar dessa tentação! Basta ver um docinho que eu não resisto. Às vezes, as irmãs me oferecem uma nesguinha de um bolo de chocolate e, quando eu me dou conta, comi o bolo todo. Sabe como é que me chamam aqui no mosteiro?
— Não.
— A Noviça Roliça.
Caronte pigarreia para disfarçar o riso.
— A irmã conhece o real significado de pecado mortal?
— Claro que sim, frei. Quer dizer que, quando eu morrer, vou direto pro inferno.
— Acho que a palavra mortal pode expressar algo mais imediato.
— Como assim? — ela pergunta, ansiosa.
— Calma. Tudo a seu tempo. Primeiro, sou portador de boas-novas. Vim aqui hoje como capelão, para cumprir uma missão especial. Um emissário do Vaticano trouxe-me, em confidência, uma Litterae Apostolicae, uma bula papal, do nosso Santo Padre, a ser publicada ainda este mês, tratando desse problema que a aflige. O título da carta apostólica é: Gula. Indulgentia de obesitate. No texto, o Sumo Pontífice explica que a gula, ou gastrimargia, não deve mais ser considerada pecado.
Irmã Maria Auxiliadora mal consegue se conter de tanta alegria. Será essa nova “Bula da gula” o término do seu sofrimento, da sua culpa? Não mais comer às escondidas, temendo a zombaria das irmãs ou a severa recriminação do seu confessor?
Caronte susta-lhe o devaneio:
— No entanto, há uma penitência a cumprir.
— Uma penitência? Que penitência? — preocupa-se a freira.
— Nada de muito grave. Para redimir-se das transgressões cometidas anteriormente, a irmã deve ingerir a causa das suas faltas até não poder mais, como se devorasse o mal que lhe consome as entranhas.
Irmã Maria Auxiliadora não resiste a uma gargalhada:
— Mas essa penitência é melhor que o pecado!
Ela logo se arrepende do que disse. Parece-lhe falta de respeito com a Igreja.
— A palavra de Sua Santidade é infalível! — admoesta Caronte, erguendo a mão. — O que não te contei, e está escrito na carta apostólica, foi que o Santo Papa foi informado pelos escolásticos da Confraria dos Taumaturgos de que a Gula é um dos demônios do inferno; filha de Lilith com Pazuzu, irmã de Jezebeth e de Abigor, prima de Asmodeus e Astaroth! Segundo são Tomás de Aquino, ela é o íncubo da concupiscência e dos prazeres libidinosos transportados para o palato. Sob a forma de uma serpente astral, a Gula se instala, com a bocarra escancarada, no esôfago do pecador. Assim, quanto mais o pobre mártir come, em vez de saciar a fome, mais vontade tem ele de comer. São Tomás cita o filósofo grego Cícero, para alicerçar a teoria: “Ab igne ignem capere”. Ou seja, é como “apagar o fogo com fogo”. Tudo está revelado na parte oculta da Summa theologiae guardada a sete chaves no Vaticano e à qual só tem acesso o Conselho de Anciões da Confraria e o próprio papa!
Irmã Maria Auxiliadora se benze, aterrorizada. Caronte sai do confessionário, puxando a freira pelas mãos. Senta-se ao lado dela no primeiro banco da capela e declara:
— Por sorte, estou em condições de ajudar. — Ele puxa do bolso da batina uma carta escrita num pergaminho rebuscado. — Não é por acaso que estou aqui. Sou dos primeiros sacerdotes formados em Roma pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé na prática deste tipo especial de exorcismo. Caronte destrava a maleta.
— Tenho tudo que é necessário para remissão dos seus delitos. Trago-lhe absolvição e indulgência plenária. Aqui está seu castigo, Irmã Clarissa. Unindo o gesto à palavra, ele levanta o guardanapo de cambraia de linho branco com bordas rendadas que protege o conteúdo da valise. Junto à estola e à Bíblia, dispostos em várias camadas, em filas simétricas, surgem dezenas de Pastéis de Santa Clara.
Irmã Maria Auxiliadora não consegue desviar os olhos daquele tesouro. No desvario da sua glutonaria, a Noviça Roliça imagina que os pastéis olham de volta para ela.
— Repare na delicadeza diáfana da forma. Um sopro reverteria a massa fina em poeira de farinha — Caronte segreda em seu ouvido, açulando-lhe o desejo. Irmã Maria Auxiliadora estende as mãozinhas ávidas para a maleta, mas ele interrompe seu gesto, segurando-lhe os pulsos:
— Calma, irmã! Como eu disse, antes há de se fazer o ritual do exorcismo desse poderoso demônio! Segundo o meu bispo, é a primeira vez que este esconjuro é praticado no mundo. Os olhos de Roma estão sobre nós! — Ele pega a Bíblia e a estola, ordenando, imperioso: — Ajoelha-te! Irmã Maria Auxiliadora obedece, de mãos postas, porém sem desgrudar a vista dos folheados.
— Abre a boca e come o mais rápido que podes, enquanto eu leio o exorcismo!
Inicia-se, então, o grotesco exercício. A patética freira abocanha os pastéis, entupindo-se, e Caronte despeja uma algaravia em latim improvisado, começando pela receita do pastel:
— Pastillus Sancta Clara! Coque aqua calore saccharo altum usque punctum stamina. Lutea ovorum addere commoventes semper. Add amygdalas, aut nuces et citrinusve aquas. Excita cum coquina et bene ire cacabum relevet frigus!
O falso frade continua em falso latim:
— Exorcizo te, omnis spiritus immunde, in nomine Dei Patris omnipotentis, et in noimine Domini et Judicis nostri, et in virtute Spiritus et descedas ab hoc plasmate Dei unus, irmã Maria Auxiliadora, pecatoribus quod Dominus noster ad templum sanctumsuum vocare dignatus est, et fiat templum lux, exitus Gula Demonium! Exitus Gula Demonium! Exitus irmã Maria Auxiliadora! Dei vivi, et Spiritus Dominum nostrum, qui venturus est judicare vivos et mortuos, et saeculum per saeculum saeculorum!
Irmã Maria Auxiliadora segue num ritmo frenético. Alternando as mãos para imprimir maior velocidade ao movimento, ela embatuma-se quase sem mastigar, estimulada pela cantilena cada vez mais rápida de Caronte:
— Exitus Gula Demonium! Exitus Gula Demonium!
Sua voz leva a freira a um compasso mais veloz:
— Exitus Gula Demonium! Exitus Gula Demonium!
Ela entulha as bochechas, pastel sobre pastel, e ele acelera:
— Exitus Gula Demonium! Exitus Gula Demonium! Exitus Gula Demonium! Exitus Gula Demonium!
Irmã Maria Auxiliadora procura acompanhar-lhe a cadência, mas engasga nas folhas finas dos pastéis. Sofre um acesso de tosse. Tenta comer tossindo, o que
se revela impossível. Nem mesmo a devoção da freira vence a barreira da física. Nesse instante, Caronte pega um punhado dos poucos pastéis que sobraram
e soca-lhe goela abaixo. Num meneio, como um toureiro volteando a muleta, ele passa-lhe a estola tapando-lhe a boca e aperta o laço.
Antes de sufocar polvilhada de açúcar de confeiteiro, irmã Maria Auxiliadora observa, horrorizada, a frente da batina de Caronte erguida pelo seu membro intumescido.

CAPÍTULO 19

Onze e meia da noite de sexta-feira. Depois de uma longa viagem, os ônibus que levaram as Irmãs Clarissas em romaria a Aparecida chegam à rua do Jequitibá. As freiras, fatigadas, saltam dos veículos e cruzam os portões do mosteiro, ainda conversando sobre as maravilhas da segunda basílica erigida em homenagem à padroeira do Brasil. Trazem viva na memória a imagem da santa coberta pelo belíssimo manto azul. A madre superiora, abadessa Celestina de Aragão, pede a sua auxiliar, a mestra de noviças irmã Clemente, que vá com as religiosas até suas celas.
— Irmã, por favor, acompanhe as meninas. Estamos todas exaustas, mas, antes de me deitar, quero rezar por nós e agradecer por essa viagem tranquila, ocorrida sem incidentes — ela explica, indo para a capela.
As Clarissas estão para se recolher, quando são estacadas, a meio caminho dos quartos, pelo grito pungente da madre superiora. Tamanho é o pavor sugerido pelo berro interminável que os corpos das moças são atravessados por um arrepio como dominós em cascata. O urro é seguido pelo pranto alto e gemidos dilacerantes da pobre madre Celestina. Irmã Clemente, segunda em comando, próxima abadessa na linha de sucessão, com a autoridade que lhe foi conferida ordena que as freirinhas sigam para as celas e, reunindo a coragem que lhe resta, dirige-se para a capela.
O quadro com que ela se defronta é comparável às mais horríveis visões do inferno. Assemelha-se a um cenário de grand-guignol. Irmã Clemente apoia-se, trêmula, no encosto do último banco, para permanecer de pé. Ajoelhada junto à pia batismal, a madre superiora soluça incontrolavelmente, agarrando-se ao rosário de cento e sessenta e cinco toscas contas de madeira que sempre traz preso à cintura. O rosário, vindo de Assis, fora presente do pai quando ela recebera os votos.
À frente da abadessa Celestina de Aragão, estendida ao longo da nave da capela, de braços abertos em cruz, encontra-se irmã Maria Auxiliadora completamente nua. O hábito, arrancado com violência e empapado numa mistura de sangue e sêmen, jaz nos degraus do altar. O ventre da infausta jovem, cujo único pecado na vida fora o incontrolável fato de ser gorda, está rasgado de cima a baixo, expondo uma enorme quantidade de Pastéis de Santa Clara. Mais pastéis também cercam o corpo de Maria Auxiliadora. No lugar dos globos oculares extraídos com precisão, foram enfiados dois apetitosos Olhos de Sogra. Ao lado da maleta abandonada por Caronte, um bilhete em latim, escrito à mão com o próprio sangue da infeliz: Ego te absolvo a peccatis tuis... Ha! Ha! Ha! (Risus Sardonius)
Avisada da ocorrência, a delegacia do bairro localizou de imediato o delegado Mello Noronha na Central e passou-lhe a informação. Na madrugada de sábado, Noronha, Esteves, Diana e o sonolento Calixto encontram-se na capela transformada em cena do crime. O delegado quis impedir a jornalista de comparecer, imaginando a situação que os aguardava. Nada a dissuadiu.
— Já basta o que eu sofro com o DPDC — ela argumentou, referindo-se ao Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, que controlava a Censura. — Sou bastante grandinha pra enfrentar qualquer calamidade. Não será pior do que os horrores que vi na Guerra Civil Espanhola.
A capela foi invadida por vários funcionários do Departamento Nacional de Segurança Pública. Como a sustentação do Estado Novo depende de uma polícia forte e bem equipada, houve um esforço no sentido de modernizar a corporação. E pelo menos nos aspectos técnicos e científicos a medicina legal beneficiou-se com isso. A Polícia Técnica conta, agora, com os melhores sistemas de investigação científica.
Técnicos especialistas em datiloscopia cobrem o confessionário, o altar e os bancos da frente com carbonato de chumbo, o pó branco utilizado para revelar impressões digitais. É como se uma fina camada de talco revestisse parte da capela. O objetivo de revelar uma impressão latente é visualizar o desenho das cristas papilares, que são as linhas do desenho das impressões digitais. Os detalhes dos desenhos dessas linhas é que vão permitir a classificação da impressão e o confronto da impressão latente com as digitais do suspeito. Sabe-se que nem mesmo gêmeos univitelinos possuem impressões digitais iguais.
Outro grupo recorta a frente do hábito manchado da freira assassinada, para tentar identificar os fluidos fisiológicos no laboratório do IML. Uma cuidadosa busca na cela de irmã Maria Auxiliadora nada informou aos investigadores; apenas confirmou a expressão “pobreza franciscana”. Como objetos pessoais, fotografias de família, uma escova de dentes e uma barra de sabão de coco. No criado-mudo, uma moringa, um copo e um frasco de vitaminas naturais. Foi impossível interrogar a abadessa Celestina de Aragão, ainda em estado de choque, mas a mestra de noviças, irmã Clemente, também bastante alterada, conseguiu explicar que o mosteiro estava praticamente vazio, devido à peregrinação das freiras e noviças a Aparecida.
— Não entendemos por que Maria Auxiliadora alegou estar doente pra não viajar conosco. É um mistério que acabou em tragédia — desabafa irmã Clemente, sem conter as lágrimas.
— A que horas a senhora acha que a irmã Maria Auxiliadora veio à capela? — pergunta Esteves, estendendo-lhe um lenço.
— Não sei dizer. Normalmente, às quintas-feiras, ela procurava seu confessor frei Crispiniano, logo depois da Adoração ao Santíssimo Sacramento, mas ontem ninguém a viu. As poucas irmãs que ficaram aqui pensaram que ela estava repousando em sua cela. Se eu soubesse que ela... — despeja a freira, consumida por uma culpa que não tem.
— A que horas termina a Adoração ao Santíssimo Sacramento?
— Às dezoito horas.
— Pelo estado do corpo, presumo que a vítima tenha sido atacada entre as dezoito e as dezenove horas — arrisca Esteves. — Sem pôr em dúvida a castidade da falecida, a mestra acha possível que ela tenha sido seduzida por algum aldrabão? Percebe? Uma vez, em Évora, uma freirinha...
Tobias Esteves é interrompido pelo pranto convulsivo da mestra de noviças.
— Temos certeza de que não é o caso — intervém Diana, com um olhar de reprovação para Tobias. — Irmã Maria Auxiliadora não é a primeira vítima desse monstro.
Depois da inspeção da cela e da entrevista com a mestra de noviças, Noronha, Esteves e Diana sentam-se no chão da capela formando um semicírculo em volta da maleta abandonada por Caronte. Calixto, protegendo seu ilibado terno de linho 120, evita o convite, alegando que prefere se familiarizar com o local do crime.
A maleta foi examinada, virada e revirada pelos técnicos, à procura de impressões ou de qualquer indício. Encontraram apenas farelos, as digitais da freira e alguns borrões numa Bíblia encadernada em couro, desgastado por anos de uso.
— É claro que ele deixou a maleta como uma provocação — declara, irritado, Noronha.
— E obviamente estava disfarçado de padre, ou melhor, de frade franciscano — completa Esteves.
— Por que “obviamente”? — Diana pergunta.
— Pela estola usada pra sufocar a pobrezinha, pela cruz na maleta e pela Bíblia dentro dela. Quanto ao facto de estar disfarçado de frade franciscano, não há melhor maneira pra se ganhar a confiança de uma Clarissa. O nosso próximo passo será encontrar o verdadeiro confessor da freira.
— Ai, meu Deus do céu! Valei-me, minha santa Bárbara, que sois mais forte que a violência dos furacões!
O grito agudo e lancinante vem da sacristia. Calixto surge, lívido de pavor, apoiando-se no umbral da porta.
— Tem mais um defunto morto aqui!
A redundância do inspetor anuncia o corpo ensanguentado de frei Crispiniano Boaventura. A descoberta do frade na sacristia leva a equipe de técnicos a uma nova busca por provas da presença do assassino. Diana, aproveitando-se da distração momentânea motivada pelo achado, pega sua Leica 250 e tira várias fotografias da capela e das vítimas. Pretende escrever outro artigo sobre o psicopata. Não publicará as fotos, são horríveis demais, porém vai arquivá-las como registro da bestialidade dos crimes.
Tobias Esteves quer examinar a marca deixada no cadáver pelo punhal. Noronha concorda.
— Tem que ser logo, antes que o chato do Varejão chegue — diz o delegado, referindo-se ao legista Ignacio Varejão. — Ele se acha dono de todos os defuntos.
— É preciso sacar a sotaina ao clérigo. Calixto, uma ajudazinha, se me faz favor.
— Eu!?
— Não me digas que tens medo dos mortos — debocha o português.
— De jeito nenhum, doutor Tobias, é que eu sou religioso demais pra tirar batina de padre.
Sob o comando de Noronha, os técnicos do iml despem o frade e guardam a batina para levá-la ao laboratório. É óbvio aos detetives que esse homicídio foge ao modus operandi do assassino. O frei teve a infelicidade de estar na hora errada no lugar errado. Esteves vira o corpo de lado e percebe que a faca trespassou o coração.
— Morreu na hora — comenta Noronha.
— É possível.
— Claro que sim! Furou o coração! — replica Noronha.
— Nem sempre a morte é imediata, a não ser que o golpe tenha seccionado alguma artéria principal. O que provoca a parada cardíaca é o vazamento de sangue do pericárdio, que reveste o coração. Mas o senhor doutor delegado sabe muito bem disso.
— Evidente — resmunga Mello Noronha, sem ter ideia do que Esteves está falando.— O mais interessante é o formato da lesão feita pela entrada do punhal — observa ele, examinando a fenda dilacerada. — Veja, senhor doutor delegado, ambas as bordas da ferida nas costas, por onde a faca entrou, estão rasgadas, mas, na saída, ela deixou apenas duas marcas pequeninas, como se a arma tivesse duas lâminas com os fios trabalhados. Além disso, senhor doutor delegado, ladeando a entrada há duas lacerações causadas pela guarda do cabo.
— Então não é uma faca qualquer?
— Bem, nós costumamos generalizar, chamando de faca os instrumentos de corte; na verdade, existem vários tipos do que nós chamamos de armas brancas: as cortantes, as perfurantes, as perfurocortantes, as corto-contundentes; há os punhais de dois gumes, os facões, a faca Bowie, a gaúcha, as Tantôs japonesas, a lendária Kukri, do Nepal, a Djambia, do Iêmen, ligeiramente curva, as adagas árabes, as navalhas espanholas, as facas serrilhadas; enfim, a quantidade é infindável. Mas o utensílio que vitimou o frei é de uma raridade extraordinária. Só existe uma arma branca no mundo inteiro capaz de infligir esse ferimento. — Tobias faz uma pausa para realçar a importância da revelação. — Trata-se de uma adaga cigana.
— ?
— A adaga é entregue ao cigano numa cerimônia ritualística quando ele passa da adolescência à vida adulta. É associada à vida e à morte. Muito difícil de encontrar. Um colega meu foi assassinado com uma igual — conta Esteves, melancólico, lembrando-se do amigo morto.
— Quer dizer que foi o matador das gordas que matou o seu amigo? — pergunta o obnubilado Calixto.
O raciocínio obtuso do inspetor fica sem resposta devido à chegada intempestiva do legista Ignacio Varejão. O médico entra aos berros na sacristia:
— Quem mandou tirar a roupa do padre? Vocês estão contaminando a cena do crime!
— A única pessoa contaminadora aqui é você — responde, calmamente, Noronha, saindo da sacristia. A busca se revelou tão infrutífera quanto a que fizeram na capela. As únicas impressões diferentes pertencem ao frade assassinado.
— Pura perda de tempo. O canalha usou luvas — conclui Noronha.
— Pode ser... — retruca Esteves, pensativo.
— Como, pode ser? Qual é a dúvida agora?! — responde Noronha, impaciente.
— Nada, nada, delegado. É provável, ele não poderia mesmo limpar tudo que pegou ou onde esbarrou. Só que...
— Só que o quê?!
— Custa-me imaginar um frade de luvas.

Tupi, G3 do Rio, a pr- que estão ouvindo”, enuncia o ubíquo Rodolpho d’Alencastro, invertendo a ordem do prefixo. “Alastra-se a tragédia no Caso das Esganadas. Unindo o terror ao sacro, o monstro assassino vitimou uma freira indefesa no mosteiro das Clarissas. Desta vez, todavia, o pérfido homicida não perde por esperar. O chefe de polícia, capitão Filinto Müller, colocou à disposição dos investigadores a mais moderna parafernália científica, capaz de detectar a mais ínfima impressão digital.
“Esta notícia de última hora chega aos vossos lares numa cortesia da Ankilostomina Fontoura. Sente-se cansado? O corpo não quer trabalho? Seu rosto magro e amarelo denuncia um estado doentio. Esse braseiro na boca do estômago, essa preguiça sem fim e a palidez da pele são sintomas de opilação. Não se alarme: a moléstia é terrível, mas curável prontamente com a Ankilostomina Fontoura. Ankilostomina Fontoura é recomendada por todos os médicos. “E atenção, muita atenção! Nossa fonte ligada ao palácio Central da Polícia acaba de nos informar que também há um experiente detetive lusitano colaborando nas pesquisas.”


Leia Também:


AS ESGANADAS (CAP.20 a 22)

Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 100-115. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.

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