12.25.2011
JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAP. 20 a 22)
CAPÍTULO 20
O professor Friedrich Berminghaus, do Colégio Real de Química e diretor do Departamento de Anatomia da Universidade de Munique, de quem Caronte fora discípulo na Alemanha, era grão-mestre enxadrista da Deutscher Schachbund, a Federação Alemã de Xadrez, e participara da ii Olimpíada do jogo, realizada em Haia, em 1928. Naquela ocasião, conhecera o vencedor daquele ano, o suíço Oskar Naegeli, e tornara-se amigo dele. Além da paixão pelo enxadrismo, outro interesse unia os dois homens. Oskar Naegeli era médico. Tendo se especializado em patologia na Universidade de Freiburg com o Prêmio Nobel de Fisiologia Robert Bárány, o professor doutor Naegeli dirigia o Departamento de Dermatologia Clínica da Universidade de Berna. Sua pesquisa atual referia-se à venereologia e à genética. Em 1927, o cientista quase concorrera ao Nobel, ao descobrir, numa família suíça, uma incomum alteração genética.
Oskar a descrevera como familiärer Chromatophoren-Naevus. Desde a descoberta, o fenômeno passara a ser conhecido como Naegeli Syndrom ou síndrome de Nagali, em sua homenagem. Trata-se de uma má-formação excepcional do feto. A probabilidade de um bebê nascer com essa deficiência é infinitesimal. A síndrome caracteriza-se pela fragilidade das unhas, dos cabelos e dos dentes, que correm o risco de cair espontaneamente, e por manchas marrons irregulares na pele. Porém, a distorção mais extravagante desse raríssimo defeito genético é que os portadores da síndrome de Nagali não têm, nem nunca terão, impressões digitais. Em 1929, durante a semana do Torneio Internacional de Xadrez em Munique, Berminghaus hospeda o amigo e colega Oskar Naegeli em sua magnífica mansão da Über der Klause, no bairro nobre da cidade.
Naegeli é recebido na porta por um moço magro, de poucos cabelos e sorriso de porcelana. Desperta sua atenção aquele rapaz tão jovem com dentaduras postiças guarnecendo-lhe as gengivas. Ao apertar a mão dele, nota-lhe a flacidez das unhas e a falta de aderência na ponta dos dedos. No entanto, nada diz, mas por pouco não consegue conter a excitação. A possibilidade de encontrar um paciente que sofria da síndrome recém-descoberta por ele era praticamente nula! Subindo as escadas, o adolescente acompanha Naegeli até o quarto de hóspedes, carregandolhe a mala.
— Herr Professor Berminghaus o aguarda na sala de jantar daqui a meia hora, Herr Doktor. Há um banheiro no final do corredor — informa o jovem, falando baixo, de forma quase servil, e, sem esperar resposta, escafede-se escada abaixo.
Durante o jantar, Naegeli nem responde quando seu anfitrião pergunta sobre o torneio do qual ambos participarão a partir do dia seguinte.
— Meu caro Friedrich, há coisa mais interessante na sua casa do que pode ocorrer no tabuleiro.
— A que você se refere?
— Ao jovem que me abriu a porta!
— Caronte? — pergunta o professor, rindo. — Reconheço que ele é meio exótico, mas interessante? Não, meu amigo, o rapaz não é interessante, é brasileiro.
— O que é mais intrigante ainda! Que faz um moço da selva, portador da minha síndrome, na sua casa?
— Ele não é da selva, é do Rio de Janeiro — retifica Berminghaus. — Depois, como é que você diagnosticou-lhe, tão rapidamente, uma doença tão rara? Você está me parecendo aqueles cientistas que enxergam suas descobertas em qualquer esquina. Você toca a campainha, e quem abre a porta? O próprio familiärer Chromatophoren-Naevus! — troça o professor, que, como cientista, conhece e admira as pesquisas do amigo. Naegeli bate os punhos na mesa, rubro de raiva.
— Sei muito bem da improbabilidade disso ter acontecido, mas às favas com as estatísticas! Não sou nenhum velho senil! Pelo menos me explique por que é que você tem um criado estrangeiro.
— Ele não é criado — responde o professor, começando a se irritar. — É um jovem aluno meu, no Colégio Real de Química. Deixo que ele ocupe um dos quartos perto do meu laboratório pessoal. Sua família é dona da maior empresa funerária do Brasil, e, quando o pai soube que eu estudei com Von Hofmann, quis que ele aprendesse comigo as técnicas modernas de embalsamamento e a utilização do formaldeído. — Um sorriso desanuvia o semblante de Berminghaus.
— Meu querido amigo, agora entendo a sua confusão! Você notou o desgaste da ponta dos dedos do rapaz, causado por queimaduras do formaldeído, e confundiu com ausência permanente de impressões digitais. Eu o preveni várias vezes pra que fosse cuidadoso, mas os jovens são impetuosos! — completa Friedrich, rindo. — Pode ficar tranquilo que elas crescem de novo!
O professor doutor Oskar Naegeli sabe que não baseou seu diagnóstico somente nos dedos do rapaz, porém não quer perder o amigo. Depois do jantar, sem ter noção de que Caronte, oculto no jardim de inverno, a tudo escutou, os dois enxadristas discutem, entre goles de Armagnac e baforadas de charuto, as últimas vitórias de Capablanca.
CAPÍTULO 21
No antigo matadouro da rua Elpídio Boamorte, no bairro Praça da Bandeira, seu abrigo favorito, Caronte limpa cuidadosamente a lâmina da adaga cigana, antes de recolhê-la ao estojo. Não pretende usá-la de novo. Depois de lavá-la e poli-la várias vezes numa repetição obsessiva, ele a guarda junto ao retrato entronizado de seu pai morto. Fotografara o cadáver sentado, de pernas cruzadas e olhos abertos. Era a memorabilia mais valiosa da sua pequena coleção.
Quanto às impressões digitais, Caronte nunca se preocupou em não deixá-las nos locais onde praticava seus crimes, simplesmente porque não as tem. Conhece muito bem a Naegeli Syndrom, a síndrome de Nagali. Desde que escutou a discussão entre seu professor e Oskar Naegeli, tratou de se informar sobre a raríssima deformidade ocorrida quando ele ainda estava na barriga da mãe:
“Claro! Isso foi alguma porcaria que a gorda grávida comeu, a puta gulosa!”. A aberração não o incomodava. Divertia-se sabendo que a polícia percorria cada centímetro em volta das vítimas procurando sinais que nunca encontraria. Antes de tomar conhecimento da enfermidade, Caronte atribuía o fenômeno ao fato de ter começado a lidar com formaldeído e derivados muito cedo. A fina espessura das unhas e dos cabelos o aborrecia muito mais. Desde rapazinho, acostumara-se ao uso das próteses dentárias totais, feitas sob medida em Zurique, com o tradicional rigor suíço. Gostava do alvor exorbitante do seu sorriso. O único distúrbio causado pela síndrome que Caronte execrava eram as manchas marrom-escuras disseminadas pelo corpo. As poucas que apareciam acima das camisas de gola alta, no pescoço e no rosto, semelhantes a largas sardas, ele ocultava com maquiagem. Já sentia repulsa pelas manchas quando era muito jovem.
Antes que Caronte voltasse da Alemanha, seu pai pediu-lhe que fosse ao Peru para estudar o embalsamamento das múmias incas. Uma descoberta fora feita na cidade sagrada de Machu Picchu. As múmias eram de mulheres jovens presumivelmente oferecidas em sacrifício. Nem todas eram virgens, só aquelas oferecidas às divindades mais importantes no panteão dos deuses incas. A viagem é exaustiva: primeiro, de navio até Lima; depois, de ônibus até Cuzco, e, finalmente, uma trilha de quarenta quilômetros para chegar à Cidade Perdida dos Incas, localizada no topo de uma montanha, a dois mil e quatrocentos metros de altitude. É uma jornada perigosa, sem falar nas cusparadas de lhama e em outros incômodos do percurso, porém Caronte nada pode negar ao pai. Em Machu Picchu, conhece o guru boliviano Ðÿþü Humiña — no dialeto quíchua pronuncia-se Bilu —, que vinha em peregrinação desde o lago Titicaca. O homem santo complementava sua renda traficando cocaína.
Ðÿþü Humiña inicia Caronte no uso de uma infusão mística feita à base do cacto Tocha Peruana. Esse cacto, semelhante a um enorme falo peludo, contém dez vezes mais mescalina do que o peiote. A beberagem, chamada pelos sacerdotes de yacapachi, era usada nas cerimônias religiosas dos antigos incas em homenagem ao deus Viracocha Pachacaiachi, o “Criador de todas as coisas”. O guru dublê de traficante boliviano conta a Caronte que, segundo os incas, foi às margens do Titicaca, o lago mais alto do mundo, que Viracocha terminou sua obra de criação depois do Uno Pachacuti, uma grande inundação que assolou o mundo. Viracocha desceu dos céus e, apiedando-se dos homens que erravam pela Terra sem destino, deu-lhes como soberanos os seus filhos, Manco Capac e sua irmã Mama. De toda essa magnífica e edificante narrativa, o que interessou mesmo a Caronte foi o chá.
Após ingerir uma cabaça do líquido, Caronte arrancou todas as suas roupas. Quando se olhou nu no espelho, sob o efeito alucinógeno da poção, enxergou as manchas do seu corpo distorcidas, se alastrando pela pele. Ðÿþü Humiña, também alterado pelo yacapachi, gritava na língua secreta dos antigos sacerdotes incas: “Pracnatan! Pracnatan!”, que significa “leopardo louco”. O guru, em transe, deu um uivo terrível e caiu fulminado, espumando pela boca.
Nunca mais Caronte conseguiu olhar suas manchas de outra forma. Um calafrio gela-lhe a espinha sempre que recorda o episódio. Satisfeito com sua última façanha, ainda vestindo a batina para prolongar o prazer da aventura, ele senta-se ao piano e começa a tocar uma transcrição da Nona de Beethoven. Pensa na próxima vítima. Talvez esteja na hora de apimentar seu cardápio. A cozinha portuguesa é rica em doces e salgados. Ele fecha os olhos e navega, alheio ao tempo, pela melodia. Assim que os abre, assusta-se ao ver a figura de um ancião de boca enrugada refletida no piano. Dá uma gargalhada grotesca. O velho retribui na mesma intensidade. A imagem que vê espelhada é a dele mesmo. Caronte esqueceu-se de colocar a dentadura. As duas próteses estão repousando num copo d’água sobre a pia, sorrindo para ele.
CAPÍTULO 22
Uma semana depois dos últimos assassinatos, no início do inverno suave do Rio de Janeiro, há uma sensação de desânimo no gabinete do delegado Mello Noronha. Por mais que examinem, à lupa, as várias fotos dos crimes e os documentos esparramados sobre a mesa de reuniões, nenhuma ideia nova lhes ocorre. Em vão, eles leem pela milésima vez as poucas informações dos arquivos e tornam a examinar os objetos recolhidos nos locais dos delitos, à procura de pistas. As pastas que continham relatórios de outras investigações e geralmente ficavam empilhadas no escritório do delegado, deram lugar ao Caso das Esganadas. As pesquisas realizadas pela equipe da Polícia Técnica nas residências das moças não revelaram nada de significativo.
Os quatro reexaminam a disparidade das vítimas. Tentam imaginar o que elas teriam em comum além da obesidade. Frequentariam o mesmo banho turco? Difícil vislumbrar uma freira e uma prostituta compartilhando o mesmo banho. Como faria o assassino para encontrá-las? Seria obra do acaso? Esteves deduz, erradamente, que o assassino deve perder um tempo enorme limpando qualquer traço de impressões. Diana conclui, de forma mais incorreta ainda, que o executor deve ter um cúmplice para ajudá-lo a eliminar os vestígios do massacre. Noronha, macambúzio, não sugere nada.
O surpreendente Calixto, que foi coroinha na infância, reza, em silêncio, num terço escondido no bolso do paletó. Está muito nervoso. Jamais pensou em se envolver na investigação de ocorrências tão pavorosas. Entrou para a polícia considerando uma carreira tranquila como guarda de trânsito, mas, devido ao seu excepcional porte físico, logo foi encaminhado para serviços mais temerários na Divisão de Homicídios. Ainda teve muita sorte ao ser escolhido por Noronha como assistente, escapou por pouco de ser requisitado para a Divisão da Polícia Especial. Não se via de quepe vermelho montado numa motocicleta, com a sirene ligada, como batedor, abrindo caminho para algum chapa-branca a cem quilômetros por hora.
O grupo permanece calado, pensativo, as fotografias espalhadas pelo tampo da mesa, formando um quebra-cabeça sangrento. Noronha quebra o mutismo:
— O pior é que não há nada que nos leve a investigar nenhum suspeito.
Todos são inocentes. Tobias Esteves volta à sua lógica no estilo de Ockham:
— Perdão, mas não se pode provar uma inocência, não há como fazê-lo porque a inocência é uma negativa, é a ausência de culpa. Neste caso, a presença do assassino só pode ser provada pela ausência de provas. Ele é tão inteligente que a prova de sua presença é a ausência.
— Faz sentido — concorda Calixto, que como Diana e Noronha não entendeu coisa alguma.
O detective português prossegue, evocativo:
— Isso faz-me lembrar do caso da “Viúva Negra de Setúbal”.
A frase desperta de imediato a atenção dos outros. Esteves não diz mais nada. Depois da pausa, Mello Noronha pergunta:
— Então?
— Então o quê?
— Não vai nos contar que caso foi esse da aranha negra?
— Ah, percebo! Querem que eu conte o caso? Mas não é aranha, é viúva.
— Sim, mas a viúva-negra é uma aranha.
— Não neste caso. Neste caso é um apodo.
O desinformado Calixto interfere:
— Gozado, eu pensei que a aranha fosse um inseto.
— Meu querido Calixto, antes de tudo a aranha não é um inseto, é um artrópode aracnídeo — corrige Tobias. — Mas apodo é o que vocês cá chamam de apelido. A Viúva Negra de Setúbal era Conchita Gutierrez, uma espanhola de rara beleza, que, como a aranha, matava seus machos. Depois de matar o primeiro marido em Badajoz, mudou-se para Setúbal, fugindo da polícia espanhola. Em Setúbal, casou-se mais sete vezes com homens riquíssimos, que morriam envenenados em circunstâncias misteriosas. Ninguém encontrava o veneno. O chefe de polícia mandou-me de Lisboa para investigar. Conchita acabava de casar-se pela oitava vez e sempre passava a lua de mel na ilha da Madeira. De lá, voltava viúva e mais rica. Dessa vez casara-se com o milionário Ernesto Balourinho, o rei da sardinha em lata. Segui o casal recém-casado até a ilha. No hotel onde se hospedava, chamavam-na à socapa de Conchita, La Concha Asesina — diz Tobias Esteves, rindo sozinho.
Percebendo que a diminuta plateia não entendia a graça, ele explica:
— Isso porque ela era espanhola, e, em espanhol, concha é a maneira vulgar de se referir à vagina. Concha Asesina. Entenderam?
— Ela assassinava os maridos com a concha? — pergunta Calixto,
subitamente interessado. Tobias esclarece:
— Não com a própria concha. Se assim o fizesse, a morte seria um delírio de gozos...
— Tudo isso deve ser muito engraçado em Portugal — corta Noronha, perdendo a paciência. — Mas como foi que você esclareceu o mistério?
— Digo-lhe já. Como bom português, sou amante do mar e conheço muito bem nossa fauna marinha. Lembrei-me que, na costa da ilha, vive a perigosa Hypselodoris tricolor, a lesma-do-mar. Seu veneno é fatal e quase impossível de detectar se for ingerida por inteiro.
Diana manifesta sua curiosidade científica:
— Como se acha essa lesma?
— É bastante comum na região da Madeira. Vive debaixo de pedras e sempre perto de esponjas.
— Será que dá pra concluir? — pergunta Noronha, impaciente.
— Pois bem, assim que o casal instalou-se, ela foi-se ao banho de mar e pediu que preparassem duas dúzias de ostras-portuguesas pra mesma noite, que era a de núpcias. Queria que as servissem no quarto. Ninguém estranhou, porque dizem que as ostras são afrodisíacas.
— Quer dizer que as ostras têm dois sexos? — pergunta o ignorante Calixto, confundindo afrodisíacas com hermafroditas.
Noronha e Diana nem se dão o trabalho de explicar. Querem saber o final da história. Diana pressiona Esteves:
— E daí, Tobias, o que foi que aconteceu?
— Disfarcei-me de camareiro e fui levar as ostras. Pus a bandeja na mesa da sala, mas, em vez de ir-me embora, escafedi-me para detrás das cortinas. Os dois se esfregavam trocando beijocas, e Conchita, já de calcinha e sutiã, sugeriu que o marido fosse pôr-se em pijamas. Assim que Balourinho entrou no quarto, Conchita, mais que depressa, puxou de sob a mesa uma cestinha com as lesmas-do- mar e as substituiu pelas ostras-portuguesas, colocando-as nas mesmas conchas. A aparência das duas é idêntica. Quando o marido voltou e estava quase a comer as lesmas, saltei de meu esconderijo e dei voz de prisão à assassina, salvando a vida do milionário. Tão agradecido ficou ele que, durante anos, todo Natal mandava-me uma lata de sardinhas.
Tobias reprime a emoção ao terminar de contar o caso.
— E o que é que esse caso tem a ver com o nosso? — indaga o delegado.
— Nada. Por isso mesmo fez-me lembrar.
Ninguém contesta a lógica tortuosa de Tobias.
— Então Conchita matava com a concha e com as conchas — arremata o filosófico Calixto.
— Ela foi condenada a quantos anos de prisão? — pergunta Noronha.
— Tinha dinheiro suficiente pra contratar os melhores advogados do país.
A defesa argumentou falta de sanidade mental e convocou os grandes psiquiatras de Portugal e de toda a Europa. Depois de examiná-la, eles atestaram que ela sofria de uma nevropatia psicopática mórbido-compulsiva que a levava a um comportamento sócio-homicida. Enfim, que tratava-se de uma deficiente. Acabou pegando apenas dez anos num manicômio particular, onde infernizava a vida dos enfermeiros.
— Acabou se dando bem — resume Diana.
— Nem tanto, menina Diana, nem tanto...
— Por quê?
— Poucos anos depois, o neurologista português Egas Moniz inventou a lobotomia, uma pequena intervenção cirúrgica no cérebro pra controlar o comportamento... indesejável de certos doentes.
Calixto, com pavor de doenças e de hospitais, diz que precisa ir ao banheiro e sai da sala. Tobias Esteves continua em tom professoral:
— Na verdade, é um procedimento bastante simples. O cirurgião espeta um picador de gelo com uma martelada no crânio do paciente, logo acima do canal lacrimal, cortando as ligações entre os lobos frontais e o tálamo. A operação deixa os mais incômodos doentes psiquiátricos num estado de placidez absoluta. Devido ao seu comportamento rebelde, Conchita foi escolhida como “voluntária” pra receber o novo tratamento. A intervenção, chamada de psicocirurgia, foi um tremendo sucesso. Conchita ficou calminha, sentadinha, a olhar p’as paredes...
— Nenhum efeito colateral? — ironiza Diana.
— Bem... ela baba um pouco.
De repente, escuta-se uma balbúrdia na antessala. A porta do gabinete gira nos gonzos com violência, e Calixto entra rolando no chão, agarrado a um homem de batina. Ele monta a cavalo sobre o intruso, tentando passar-lhe as algemas.
— Peguei o assassino, doutor Noronha! Já estava entrando quando eu pulei em cima dele! Ia matar o senhor de surpresa, usando o mesmo disfarce de padre! Tá preso, canalha, safado!
Tobias e Noronha arrancam Calixto de cima do eclesiástico. A situação cria um imenso mal-estar, porque não se trata do assassino, e sim de frei Mariano Campanela, arcebispo da Ordem Franciscana.
— Peço mil desculpas pelo excesso de zelo do meu subordinado, Eminência. Esqueci de avisar que o senhor viria hoje à tarde conversar sobre a liberação dos restos mortais dos dois religiosos.
— Não tem importância, meu filho — responde frei Mariano, levantando-se e recuperando-se do susto. — Bem-aventurados os pobres de espírito. São Francisco nos ensina a perdoar os arroubos dos seres contemplados com a parvoíce.
— Obrigado, padre — agradece Calixto, pensando tratar-se de um elogio.
Noronha tenta amenizar o vexame:
— Depois da perícia, os corpos foram finalmente liberados pelo IML. Sabemos que o assassinato do frei Crispiniano Boaventura foi obra do acaso. Infelizmente, ele estava na hora errada no lugar errado. Quanto à irmã Maria Auxiliadora, seu perfil é igual ao das outras vítimas. Se Vossa Eminência quiser, eu mesmo me encarrego de enviar os dois corpos pro local de vossa escolha.
— Agradeço a gentileza, delegado. Em geral, as cerimônias fúnebres franciscanas primam pela humildade, mas, devido à excepcionalidade do caso, a Cúria achou de sua obrigação providenciar para que as exéquias fossem realizadas pela mais celebrada empresa da cidade, a funerária Estige. — Não se preocupe, Eminência, vou tratar de tudo pessoalmente.
— Paz e bem a todos — abençoa o bispo, despedindo-se.
Antes que ele saia, o arrependido Calixto ajoelha-se e beija-lhe o anel, pedindo absolvição pelo ataque equivocado. O arcebispo retira-se, com Calixto ainda agarrado às suas pernas.
Leia Também:
AS ESGANADAS (CAP. 23 e 24)
Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 116-128. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.
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