12.26.2011

JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAP. 23 e 24)


CAPÍTULO 23

Depois da trágica explosão do dirigível Hindenburg, em Nova Jersey, o transatlântico Cap Arcona, da Hamburg Süd, passou a ser o orgulho da marinha alemã e da propaganda nazista. Incomparável em luxo e rapidez, o Cap Arcona é o mais famoso de todos os navios a singrar o Atlântico na chamada Rota de Ouro e Prata. Seus imensos tanques de óleo combustível permitem ao verdadeiro gigante dos mares uma autonomia de cruzeiro equivalente a uma viagem de ida e volta com escalas entre Hamburgo e Buenos Aires. A poucas milhas do Rio de Janeiro, onde devem desembarcar cerca de trezentos passageiros, um incidente ocorrido a bordo preocupa o capitão de longo curso Hans von Schilemberg, comandante do vapor. Como é de praxe, o oficial comunica o episódio à Abwehr, o serviço de espionagem alemão, usando o novo código Enigma da marinha alemã: Cauteloso por natureza, também registra o motivo de sua apreensão no diário de bordo.
Diário de Bordo do Cap Arcona Quinta-feira, 30 de junho de 1938 — 10h25 UTC.

Ao cruzarmos a ilha de Fernando de Noronha, perto da costa brasileira, a quatro dias de viagem do porto do Rio de Janeiro, pedi ao doutor Hermann Werdergard, médico de bordo, que examinasse o passageiro Ernst Waber, cantor, baixo-barítono, membro da Companhia de Ópera de Mönchengladbach. O cantor apresentava, desde as primeiras horas da manhã, sinais de uma violenta intoxicação, com vômitos e diarreia contínuos. Como nenhum outro passageiro ou membro da tripulação manifestasse os mesmos sintomas, foi afastada a possibilidade de um envenenamento alimentar causado pela despensa de bordo. O doutor Werdergard diagnosticou o caso como botulismo. Indagado pelo facultativo, Waber declarou que tinha na sua bagagem algumas latas de patê de fígado em conserva, e que, na véspera, ingerira, sozinho, parte de uma delas. Sem mais delongas, o médico ordenou ao camareiro-chefe que recolhesse os comestíveis no camarote do cantor, inclusive as latas fechadas, e incinerasse todo o material nas fornalhas do navio. Ernst Waber foi imediatamente recolhido à enfermaria e posto em quarentena.

Para Franz Lopenheim, diretor da Mönchengladbach Festspielhaus, o acontecimento é uma tragédia de dimensões incalculáveis. Para ele, a notícia tem um efeito pior do que se tivessem torpedeado o Cap Arcona. Mönchengladbach é a terra natal do ministro de Propaganda do Terceiro Reich, Joseph Goebbels, e a Companhia de Ópera, a menina dos seus olhos. Franz Lopenheim foi colocado na direção da companhia por ser afilhado do Reichspropagandaminister, e não por ter alguma competência especial. Na verdade, nada entende de música. Não o confessaria nem aos torturadores da Gestapo, mas odeia ópera. Mais do que a ópera, odeia seu padrinho e o nazismo.
A viagem da companhia ao Brasil faz parte da campanha de divulgação da cultura germânica na América do Sul, projeto pelo qual o ministro nutre grande simpatia. Ao mesmo tempo, atende ao pedido do seu colega brasileiro, Lourival Fontes, diretor do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural. Fascista convicto e admirador de Goebbels, Lourival é a prova viva de que o carisma independe da beleza; o que tem de feio, tem de inteligente. Estrábico, seus inimigos caçoam dele, dizendo que um dos seus olhos é brigado com o outro. Lourival não cuida da aparência; roupa amarfanhada, manchada pelas cinzas do cigarro sempre preso na ponta da piteira. Os mais íntimos dizem que suas cuecas são borradas, porque ele se limpa sem esmero ao usar as latrinas. Higiene à parte, Lourival Fontes é um dos homens mais poderosos do governo. Dedica a Getúlio a mesma idolatria que Goebbels devota ao líder da Alemanha nazista.
A ópera selecionada para abrir a temporada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro é Das Rheingold, O ouro do Reno, primeira do ciclo de quatro óperas épicas que formam O anel do nibelungo, de Richard Wagner, compositor favorito do Führer Adolf Hitler. A escolha de Der Ring des Nibelungen se encaixa como uma luva com as intenções de Goebbels e Lourival: estreitar as relações entre os dois países promovendo a cultura alemã. O tema das óperas trata de deuses e heróis mitológicos teutônicos, valquírias, guerreiros e dos nibelungos, gnomos que habitam o interior da Terra.
No primeiro quadro d’O ouro do Reno, as três ninfas irmãs, Woglinde, Wellgunde e Flosshilde, guardiãs do ouro, brincam no fundo do rio com o ardiloso anão Alberich, um gnomo nibelungo, que tenta cativá-las. Durante o jogo de sedução, as ninfas revelam um segredo: quem se apoderar do ouro do rio Reno e com ele forjar um anel, dominará o mundo. Portanto, a primeira cena do espetáculo cabe às ninfas e a Alberich, interpretado por Ernst Waber, que não é anão mas é baixo. Baixo-barítono, não baixo em altura. O fato dos cantores nunca serem anões é uma convenção teatral aceita por todos. Na ópera, o que vale é a voz e não a estatura.
Ernst Waber continua entre a vida e a morte, isolado na enfermaria do Cap Arcona, com o zeloso médico aplicando-lhe uma série de enemas para purgar seus intestinos do resto de veneno. Seu desembarque no Rio pronto para atuar é improvável; por que não dizer?, impossível. Caso sobreviva, deverá permanecer em isolamento até seu retorno à amada Vaterland.
Diante da hecatombe, o primeiro pensamento de Franz Lopenheim é o suicídio. O navio passa por uma região infestada de tubarões. Desiste logo da ideia e faz o que todo membro do partido faria. Por meio de um telegrama, transfere o problema para seu superior, um funcionário do ministério em Berlim. Este, mais experiente, envia um telegrama ao Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, no Rio, transferindo para eles o problema. Devem encontrar um cantor de ópera baixo-barítono para completar o elenco alemão interpretando o papel do anão Alberich. Tanto o funcionário como Franz dormem tranquilos sonhando com o Valhalla, a morada dos deuses.

No Rio de Janeiro, instala-se o pânico no Departamento de Propaganda e Difusão Cultural. Seus servidores estão mais acostumados a perseguir a cultura do que a difundi-la. A única vez que algum deles ouviu falar em ópera foi assistindo ao filme Uma noite na Ópera, dos irmãos Marx. Sabem que o tal projeto alemão é importante para o chefe. Não querem aborrecê-lo. Resolvem procurar alguém que entenda do assunto. Um deles, o Nogueirinha, funcionário público nomeado por pistolão depois de uma fracassada tentativa como goleiro reserva do Canto do Rio, e malogrado professor de violão em Cordovil, conhecia o compositor e violonista Bororó das madrugadas de samba. Bororó era assíduo frequentador da boemia carioca. Moreno e atarracado, ganhara o apelido ainda na infância, quando um professor do colégio Santo Inácio, onde fazia o primário, descobriu que um grupo de índios bororós tinha visitado seu pai. Bororó relacionava-se com todo mundo da classe artística e era bem informado sobre qualquer gênero musical. A pedido dos colegas, Nogueirinha marca um encontro com Bororó sextafeira à noite, no café Nice, na avenida Rio Branco. Lá se reúnem boêmios, cantores, compositores e intelectuais.
— Nogueirinha, há quanto tempo! — saúda o compositor, estranhando o cenho franzido do servidor. — Como vai essa bizarria?
— Calado, Bororó. Pra manter o emprego no DPDC, o melhor é ficar de boca fechada. Como dizem por lá, Deus nos deu dois ouvidos, dois olhos e uma boca só. Uma boca com dentes pra morder a língua.
Bororó sabe que Nogueirinha não trabalha no DPDC por convicção, mas para sobreviver. Um dirigente de certo prestígio político do Canto do Rio Football Club se apiedara do desditoso ex-goleiro e conseguira-lhe um “cabide” na famigerada repartição. Tão infortunado era Nogueirinha que quebrara dois dedos ao defender uma bola nos treinos, o que prejudicara sua promissora carreira de professor de violão. O barnabé, como são chamados os funcionários públicos de baixa posição, é magro, de olhos tristes, veste calças de fundilhos lustrosos e paletó de cotovelos gastos. Uma gravata salpicada de manchas de gordura enfeita-lhe o colarinho puído da camisa.
— O que posso fazer pelo amigo?
Nogueirinha mal consegue explicar o desastre:
— Parece que uma companhia alemã vai estrear no Municipal e o anão ficou doente.
— O anão ficou doente? É peça infantil?
— Que nada, é ópera. Se cancelarem, o chefe vai ficar puto da vida. O Filinto confirmou presença na estreia e o Gegê só não vai porque não é teatro de revista — informa Nogueirinha, referindo-se ao presidente.
Depois de muitas doses de cachaça e garrafas de cerveja, Bororó desvenda o mistério:
— Pelo que eu entendi, o baixo-barítono que faz o anão Alberich, n’O Anel do Nibelungo, está internado no navio com botulismo e vocês têm que encontrar um substituto à altura. Sem trocadilho, claro.
— É mais ou menos isso — concorda Nogueirinha, enrolando a língua.
— Pois há males que vêm para o bem, acho até que o seu chefe vai ficar agradecido pelo acidente, meu ignaro amigo.
— Como assim?
— Temos, aqui no Rio, o cantor ideal. Conhece as óperas de cor e, além de baixo, é anão.
— Ou estou muito bêbado ou não estou entendendo mais nada — retruca Nogueirinha, confuso.
— Obscuro e iletrado companheiro, pela primeira vez na história, Alberich,
o gnomo nibelungo, vai ser vivido por um verdadeiro anão. Acho que Wagner ficaria encantado. O papel do duende deformado é sempre cantado por um baixo-barítono, mas nunca por um anão de verdade. Acontece que nós temos esse anão e ele é baixo. Já o ouvi cantar numa serenata. É um dos maiores baixos do mundo!
— afirma Bororó, também meio bêbado.
Passa das quatro quando os dois amigos se despedem cambaleando em direções opostas. Bororó vai em busca do bife do Lamas, e Nogueirinha, para o aconchego da sua cama, antevendo a acolhida triunfal que terá na manhã seguinte, ao revelar ao chefe o endereço de Otelo Cerejeira, mais conhecido como o palhaço Rodapé ou, o que de fato interessa ao Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, il cantante Battiscopa.

CAPÍTULO 24

Mesmo que tivesse dois metros de altura, Battiscopa, o baixo anão, não caberia em si de felicidade. Pela primeira vez, ensaiava num palco de verdade, com uma companhia alemã e no Theatro Municipal. O maestro Wolfgang von Hasslocher, monstro sagrado da Oper Mönchengladbach, encantara-se com o porte e com a voz privilegiada do pequenino cantor. Sonhava em levá-lo para a Alemanha. Que comoção ter um gnomo verdadeiro cantando o papel de Alberich.
Que jogo de cena! Que voz! Esse anão é o grave mais profundo que já ouvi! É um mistério, um som tão poderoso sair de uma caixa tão pequena!” Wolfgang vislumbra o sucesso que faria apresentando o fenômeno no Festival de Bayreuth. Desde a sua inauguração, em 1876, por coincidência com a performance de Das Rheingold, jamais se vira algo igual. Presente, naquele dia, além do Kaiser Wilhelm e outros membros da nobreza europeia, por mais uma coincidência: o imperador do Brasil dom Pedro ii. Certamente, a elite nazista, aferrada a horóscopos e alegorias místicas, veria o duende como um bom presságio. Para o maestro, o surgimento improvável e inesperado do anão era um verdadeiro deus ex machina.
Franz Lopenheim, o diretor da companhia, começa a achar que o envenenamento por botulismo de Ernst Waber foi obra dos deuses nórdicos. Basta observar o assombro do elenco alemão e a inveja do coro brasileiro. Lopenheim traz no bolso uma proposta milionária irrecusável para Otelo Cerejeira, agora, oficialmente, Othelo Battiscopa. Lopenheim quer oferecer o anão de presente a Hitler, em setembro, na convenção do partido em Nuremberg.

O Cap Arcona aporta às seis da manhã de segunda-feira 4 de julho, um dia antes do que previra o comandante. O estado de saúde de Ernst Waber piorara e ele não pudera avistar a baía de Guanabara pela escotilha da enfermaria. Ninguém do elenco se importou muito, primeiro porque desconfiavam que Ernst era um espião da Gestapo e seu envenenamento não fora acidental, depois porque souberam pelo rádio de bordo que já havia sido encontrado um esplêndido substituto. Com uma semana de ensaio, conseguiriam estrear no dia marcado.
Os alemães são recebidos no cais com todas as pompas, com direito a suásticas e hinos ufanistas. O embaixador da Alemanha, Karl Ritter, Lourival Fontes e Filinto Müller esperam que a vinda dos artistas alemães amaine os conflitos diplomáticos surgidos entre os dois países depois que Vargas, no Estado Novo, proibiu o funcionamento dos partidos políticos, inclusive o Nazista. A companhia se hospeda na magnífica sede da embaixada, na rua Paissandu, 93, no Flamengo. Durante toda a temporada, os visitantes têm como cicerone a conselheira cultural da embaixada, Greta Süßeschlitz, uma bela ariana de tranças louras e bochechas rosadas.
Greta Süßeschlitz é afilhada do almirante Wilhelm Canaris, chefe da Abwehr. Sua posição de conselheira serve de fachada para sua verdadeira função. Greta é chefe da rede de espiões que a Abwehr pretende montar no Brasil. Mesmo pelos padrões de estética das cervejarias da Baviera, a avantajada germânica é considerada gorda. Seu físico vasto, estampado na primeira página dos jornais cariocas por ocasião da entrevista coletiva com a trupe da Ópera de Mönchengladbach, chama a atenção de Caronte. “Ah, a minha presa internacional! Acho que o momento é apropriado...”, ele pensa, recortando as fotos da gorda cuja cinta é incapaz de reprimir-lhe as banhas. “Em homenagem ao país onde tanto aprendi, terra da charcutaria, vou mudar de doce pra salgado. A marafona tinha receitas portuguesas bem adequadas”, lembra-se, referindo-se à própria mãe. “Curioso, comecei pelas sobremesas e agora passo aos pratos principais. A rameira odiaria essa inversão...” No seu refúgio na rua Elpídio Boamorte, Caronte imagina um acepipe especial enquanto executa ao piano a Sonata em si bemol de Richard Wagner, compositor que aprendera a amar nos tempos de Munique.

Além das complicações musicais de algumas óperas wagnerianas, como a necessidade de um Heldentenor — literalmente, “tenor heroico” —, em Siegfried e n’O crepúsculo dos deuses, capaz de grande potência vocal, com resistência física para cantar por mais de duas horas ininterruptas e competência para a interpretação dramática dos papéis, há as complexidades cênicas das montagens. O ouro do Reno, por exemplo, é um desafio para os cantores, para a orquestra e para os maquinistas. Com duas horas e quarenta minutos de duração sem intervalo, a ópera começa com as ninfas nadando nas profundezas do rio, onde a primeira ação é ambientada. Lá, elas se encontram com Alberich, o anão nibelungo. Depois, sem cortes na música e em cena aberta, as águas se transformam em nuvens, e a seguir numa névoa espessa. Para criar a impressão de que as ninfas estão realmente nadando, foram concebidas máquinas especiais. Tamanha é a importância dessas máquinas que, em 1876, Wagner supervisionou sua construção.
A Companhia de Mönchengladbach trouxe toda a aparelhagem especial do seu acervo. Na segunda-feira à noite, sob o comando do diretor de cena Fritz Steiner, a equipe de maquinistas brasileiros monta sem dificuldade os sofisticados aparelhos. Ao raiar do dia, Fritz e os maquinistas saem para comemorar o sucesso num botequim da Cinelândia. Numa conversa animada digna da torre de Babel, os brasileiros apresentam a nossa cachaça ao alemão. Tudo está pronto para a temporada.

Assim que Othelo Battiscopa, ex-Rodapé, deita os olhos em Greta Süßeschlitz, ambos são dominados por uma paixão fulminante. No intervalo do primeiro ensaio, a vigorosa valquíria enlaça o anão nos braços roliços e arrasta-o, semissufocado entre os seios abundantes, para uma das coxias do Municipal. Escondidos por uma tapadeira, sem se preocupar com a possibilidade de serem vistos pelo elenco ou pelos técnicos, Greta engolfa Othelo sob a saia e, ao simples contato do gnomo com suas coxas, estremece de prazer. Sente-se como Wellgunde, a mais bela das ninfas do Reno. Battiscopa, por sua vez, já se imagina agarrado àquelas tranças louras cavalgando a valquíria.

— Eu vou e você também vai! — afirma um enfurecido Mello Noronha ao resignado Valdir Calixto, na tarde de sexta-feira. Estavam todos no gabinete do delegado quando Yolanda telefonou avisando ao marido que ele teria de acompanhá-la à estreia d’O ouro do Reno. O pior era que, durante a temporada, a companhia pretendia apresentar O Anel do Nibelungo inteiro!
— O bilheteiro do Municipal me disse que são quatro óperas totalizando quinze horas de música e cena interligadas na mesma narrativa! Claro que a Yolanda vai querer assistir às quatro! — desespera-se Mello Noronha. — Ora, senhor doutor, não se desalente! Vamos todos juntos, pode ser divertido — sugere Tobias Esteves.
— Wagner, divertido? Duvido muito. A música é tão alta que nem dá pra dormir.
— É a rigor. O senhor vai ter que pagar o aluguel do meu smoking — lembra, rindo, Valdir Calixto.
O olhar do delegado congela o riso do subalterno.
— Ópera, ou a gente ama ou odeia. Não tem meio-termo. Eu adoro — declara Diana.
— Também eu — concorda Tobias Esteves, que odeia ópera mas adora Diana. — Pelo menos refrescamos as ideias sobre os assassinatos.
— Quanto a mim, vou passar o fim de semana relaxando. Não quero ver gorda na minha frente. Nem viva nem morta — desabafa o delegado. — Domingo, vou às Laranjeiras ver meu Fluminense jogar. Amanhã, vou ao Jockey Club, porque um bookmaker que me deve alguns favores me deu uma barbada imperdível no terceiro páreo: Patuska. Diz ele que é pule de cinquenta.
Diana e Esteves perguntam-se que favores seriam esses.
— Eu estou de plantão na delegacia, doutor. A não ser que o senhor precise de mim — informa Calixto, numa súplica.
— Preciso.
Todos se despedem, deixando Mello Noronha a imaginar como a vida seria doce se a sua bela Yolanda fosse surda.

No sábado, o detective Tobias Esteves leva Diana para conhecer a primeira loja criada pelo seu tio. A pequena casa, onde a fortuna de Esteves começou antes dele expandir os negócios, é um primor de arquitetura art nouveau. Não está mais aberta ao público, Esteves a preserva como a uma relíquia e usa apenas a parte dos fundos como seu escritório particular. Localizada em frente ao Mercado das Flores, na rua General Polidoro, em Botafogo, a casa ostenta uma decoração que segue o estilo da fachada, com azulejos vindos de Portugal e vitrais de flores coloridas. Sobre o balcão de mármore rajado, Esteves conservou as vitrines arredondadas de cristal.
Um espelho bisotado cobre toda a extensão da parede dos fundos. Um lustre de bronze e pâte de verre rosa pende do teto, bem no centro da loja. Duas mesinhas de ferro forjado, com tampo de mármore branco e cadeiras Thonet, ocupam as laterais da sala. Eram usadas por alguns fregueses antigos do tio, que vinham, no final do dia, tomar um cálice de vinho do Porto. O chão quadriculado em branco e coral lembra um imenso tabuleiro de xadrez. Um ar saudosista surge no olhar de Tobias quando ele se recorda da família:
— A paixão pela culinária começou com minha bisavó, Luizinha Esteves, do Algarve. Era mestra em doces e salgados. Mesmo com as receitas mais misteriosas, bastava que provasse um bocadito de doce ou de salgado, que, pelo gosto, ela decifrava-lhe os segredos. Acho que herdei dela a minha vocação de detective. — Esteves faz uma pausa relembrando a história que ouviu do pai, quando criança. — Sabes, ela processou o governo britânico, pois alegava que era dela a fórmula do Bolo Inglês.
— E o resultado?
— Perdeu.
— Quanto ela queria?
— Nada. Só queria que trocassem o nome de Bolo Inglês pra Bolo Português.
Diana disfarça, mudando de assunto:
— Como se chamam os doces e os salgados portugueses mais famosos?
— A quantidade é imensa. Receio que a menina já foi apresentada a alguns deles em circunstâncias pouco favoráveis... — diz Esteves, recordando o triste destino das gordas.
— Foi mal — concorda Diana, consciente da gafe cometida. — E os pratos mais gostosos? A cozinha portuguesa não é só feita de bacalhau.
— Claro que não, temos o Borrego à Camponesa, Orelhas de Porco, Perna de Carneiro com Poejo, Leitão à Bairrada... A nossa salsicharia é quase tão grande quanto a alemã, tem Chouriço de Carne, Chouriço de Sangue, Farinheira Branca, Alheira de Mirandela; nas canjas quentes, o saboroso Caldo de Beldroegas, a Sopa de Grelos...
— Esse prato é melhor você não mencionar. Grelo aqui não são brotos, é outra coisa — explica Diana, segurando o riso.
— Sei muito bem o que quer dizer, estava só a caçoar — responde Tobias Esteves, também rindo.
— Falando sério, qual é o seu prato português favorito?
— É um prato que, quando como, quase ponho-me a chorar. Lembra-me de uma poesia do meu querido amigo, e grande poeta, Fernando Pessoa. Estava ao pé dele, junto com Almada-Negreiros, quando o leu pela primeira vez, no café A Brazileira, no Chiado. Chama-se “Dobrada à moda do Porto”.
Com os olhos marejados, Tobias Esteves segura as mãos de Diana, sem se dar conta, e começa a dizer os versos do poema:
— Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo...
O tempo e o espaço mudaram. Agora, na Elpídio Boamorte, embaixo da linha do trem, é Caronte quem continua a dizer a poesia de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Pessoa:
— ... Serviram-me o amor como dobrada fria...
O corpo nu de Greta Süßeschlitz alastra-se na mesa de metal do assassino. Presa às correias de couro, a alemã mal consegue mexer a cabeça. Estacionado na rua Paissandu, do lado oposto ao da embaixada, Caronte a havia atraído para o furgão funerário transformado, agora com prateleiras recheadas de amostras de salsichas. Conhecia bem a “freguesa”, das suas caçadas pelo centro da cidade. Era noite e Greta saíra satisfeita do Municipal antes do final dos ensaios, que seguiriam madrugada adentro.
Ele prossegue, ao cozinhar as tripas num imenso caldeirão:
— Disse delicadamente ao missionário da cozinha Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria. Impacientaram-se comigo!...
No fim do verso, Caronte esmurra violentamente a mesa.
— Por quê?! Por que a vaca sempre se impacientava comigo?! — Numa alucinação raivosa, ele confunde a alemã com a mãe. — Warumw, Mutti?! Warum, Mutti liebchen?!
Caronte declama cada vez mais alto. Receita e poesia terminam ao mesmo tempo:
— Nunca se pode comer frio, mas veio frio.
Está pronta a última ceia de Greta Süßeschlitz.

Leia também:
AS ESGANADAS (CAP. 25 a 27)

Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 129-142. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.

No comments:

Post a Comment

Thanks for your comments...