12.26.2011
JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAP. 25 a 27)
CAPÍTULO 25
O Theatro Municipal, na Cinelândia, foi inaugurado em 1909 pelo prefeito Pereira Passos. O teatro fica próximo à Biblioteca Nacional e ao Museu Nacional de Belas Artes. Construído com materiais nobres, como mármore de Carrara, bronzes, ônix e espelhos importados, decorado com esculturas e pinturas de artistas plásticos consagrados, é, sem dúvida, um dos mais suntuosos do mundo. Seus arquitetos inspiraram-se, obviamente, na belíssima Ópera de Paris. No início, o Municipal era apenas um lindo teatro que recebia companhias estrangeiras, a maioria vinda da Itália e da França, porém, a partir de 1930, passou a ter seus próprios corpos artísticos: cantores, orquestra, coro e balé. Em seu palco, equipado com o que havia de mais moderno, exibiram-se estrelas internacionais como Isadora Duncan, Anna Pavlova, Nijinsky e Richard Strauss.
No entanto, nada foi cercado de maior divulgação do que a vinda da Companhia de Ópera de Mönchengladbach. O Departamento de Propaganda e Difusão Cultural obrigou, anonimamente, a diretoria do Municipal a cancelar um concerto do pianista polonês Stanislaw Niedzielski marcado para o mesmo dia. Um dos diretores do teatro argumentou que o cancelamento poderia criar um incidente diplomático com a Polônia. “Entre a Polônia e a Alemanha, fico com a Alemanha”, contra-argumentou o pragmático Lourival Fontes. Conhecia bem o desprezo do Führer pelos poloneses. A diretoria do teatro teve de fazer milagres a fim de reorganizar a programação, já que tinha anunciado para a temporada, entre outras óperas, Les contes d’Hoffmann, de Offenbach, Pelléas et Mélisande, de Debussy, e a inédita, no Rio, La Monacella della Fontana, de Giuseppe Mulè.
Sem falar na ciumeira criada pelo baixo Albino Marone, internacionalmente famoso pelo seu Mefistofele, de Arrigo Boito, que não via com bons olhos o anão usurpador de um papel que seria seu.
Desde a temperatura amena e o céu estrelado da segunda-feira à noite, tudo indica que a estreia fará um sucesso estrondoso. O luxuoso salão Assyrio, no andar inferior do teatro, está lotado pelo grand monde do Rio de Janeiro. Políticos, militares, artistas e intelectuais confraternizam emborcando o champanhe francês Dom Pérignon, 1921, oferecido pelo embaixador alemão Karl Ritter. É a primeira safra do vinho, que só foi posto à venda quinze anos depois. Seu buquê especial mescla sândalo, praliné e baunilha. Ritter trouxe da sua adega particular as caixas para o coquetel.
Ao lado de Noronha, a bela Yolanda atrai os olhares dos homens do salão. Está magnífica, num vestido de cetim de seda, ombro único, verde-turmalina, da mesma cor dos seus olhos, contrastando com seus cabelos negros. O longo parece ser original da haute couture francesa; na verdade, é cópia de um Robert Piguet, célebre costureiro francês, tirada da revista A Cigarra, pela sua talentosa costureira Ritinha do Grajaú. As lindas costas desnudadas pelo modelo não preocupam Mello Noronha, no seu smoking amarrotado, com cheiro de naftalina. Seguro de si, há muito tempo deixou de ter ciúmes da mulher.
Todos se perguntam quem é aquele homem amarfanhado de braço com aquela mulher fascinante. “Deve ser um milionário excêntrico”, conclui um general invejoso, a farda de gala coberta de medalhas sem guerras. Diana, como sempre, traja um sóbrio Chanel, e Tobias Esteves aperta-se num dinner jacket. Há quinze quilos que não o veste. O mais elegante dos três homens é Valdir Calixto, envergando uma impecável casaca inglesa alugada às custas da delegacia.
Nos bastidores do palco, Othelo Battiscopa, tenso, rói as unhas até o sabugo. A ansiedade nada tem a ver com a apresentação. Ele passou e repassou as árias com firmeza absoluta. O motivo da aflição nada tem a ver com o bel canto; faltam apenas cinco minutos para a cortina subir, e sua amada Greta não aparece.
Escuta-se o primeiro sinal chamando o público para a sala de espetáculos. O luxo do salão rivaliza com o foyer do teatro, em estilo Luís xvi. As quatrocentas poltronas da plateia, estofadas em veludo vinho, as vinte frisas, os balcões, as galerias e os camarotes totalizam mais de dois mil lugares, nesta noite todos eles tomados. Não há como ignorar o imenso lustre em bronze dourado com mangas e pingentes de cristal. Na sua condição de delegado especial adjunto ao palácio Central da Polícia, Mello Noronha teve direito a uma frisa localizada próxima ao palco. Nem o fato de estar ao lado de duas lindas mulheres desfaz-lhe a carranca. Tobias Esteves também parece apreensivo, seu instinto de policial sente algo de estranho no ar. O único totalmente à vontade é o garboso Calixto, um cravo branco na lapela, de pé atrás dos quatro para não amassar a casaca.
A convite de Getúlio, ausente ao evento, o embaixador Karl Ritter senta-se no camarote do presidente da República. Ele é ladeado pelo temido chefe de polícia do Distrito Federal, capitão Filinto Müller, e por Lourival Fontes, diretor do Departamento Nacional de Propaganda e Difusão Cultural. Segundo sinal. Silêncio de expectativa. Para Noronha, a campainha é o arauto de duas horas e quarenta minutos de tortura.
O zarolho Lourival Fontes não tira um dos seus olhos da deslumbrante mulher que ocupa o camarote à sua esquerda. Está acompanhada do grande Portinari e do ministro da Educação, Gustavo Capanema. Trata-se da poetisa Adalgisa Nery, viúva do pintor Ismael Nery. Além da beleza, Adalgisa sobressai pela personalidade vivaz. De repente, ri alto de alguma coisa que o ministro lhe diz. Lourival pede emprestado o pequeno binóculo do embaixador e, colando o olho torto numa das lentes, lança a vista cobiçosa sobre a poetisa.
Na coxia, paramentado de gnomo nibelungo, o coraçãozinho esmagado dentro do peito de pombo, Battiscopa sabe que não podem mais esperar por Greta Süßeschlitz. Soa o terceiro sinal. Othelo Battiscopa esconde-se atrás de uma das rochas do fundo do rio, colocada no proscênio, junto à ribalta. É de lá que o baixo entoará os primeiros versos para a consagração universal:
Oh, ninfas!
Como me parecem lindas!
Desejáveis criaturas!
Venho
Da terra dos nibelungos!
Das profundezas sem fim!
Posso ir até vocês,
Se vierem até mim!...
As três ninfas irmãs tomam posição na parte superior do espaço cênico e começam a ondear os braços, como se nadassem nas águas do Reno. O maestro Wolfgang von Hasslocher ataca as primeiras notas da ópera. Sobre a cortina fechada, focos de luz em movimento simulam a correnteza do rio. A obra inicia com um prelúdio de cento e trinta e seis compassos representando o fluxo eterno do rio. Dura cerca de quatro minutos. Em sua autobiografia, Wagner menciona que a ideia surgiu quando estava sonolento num quarto de hotel, na Itália. Não esclarece se o prelúdio despertou-o ou fê-lo dormir de vez. Após os quatro minutos, a cortina sobe com vagar, e as ninfas Woglinde, Wellgunde e Flosshilde cantam alegremente.
Súbito, as irmãs ficam mudas em cena. Battiscopa não entende por que as três ninfas pararam de cantar. Ao mesmo tempo, o maestro interrompe a música. Em uníssono, vem da sala um pavoroso grito de terror. Devido à sua pequenez, Othelo é o último a ver o motivo do berro incontrolável da plateia. Ele segue o olhar horrorizado dos músicos, maestro, maquinistas, contrarregras, cantores e plateia em direção ao urdimento. Servindo de contrapeso para alçar o pano de boca, desce o corpo nu, enrolado em linguiças, de Greta Süßeschlitz.
O cadáver sem olhos balança na extremidade da corda, como um pêndulo grotesco de um relógio invisível. Enfiado na cabeça, vê-se um capacete com chifres igual ao elmo das valquírias, toque de humor macabro do assassino. As tranças louras se entrelaçam com salsichas vienenses. Da sua boca escancarada escorrem restos de tripas, ou, como prefere o poeta, dobradas à moda do Porto. Não resistindo à perda do segundo grande amor de sua vida nas mãos do mesmo maníaco homicida, o homúnculo, cego de dor, atira-se de cabeça no fosso da orquestra e morre entalado na campânula da tuba.
CAPÍTULO 26
Instala-se o pânico no Municipal. Largando estolas, binóculos e programas, o público voa pelos dois lances da famosa escadaria, correndo em atropelo para os portões de saída. Duas senhoras de idade estatelam-se no chão, quase esmagadas pelo estouro da cavalgada humana que foge para a Cinelândia. O tropel transforma O ouro do Reno de tragédia épica em tragédia hípica. Embora tenham escapado ilesas da avalanche, as idosas, que eram assíduas frequentadoras das temporadas líricas, fazem ali mesmo o pacto de nunca mais sair de casa. Ópera, só na vitrola.
Prático, Mello Noronha salta da frisa para a plateia seguido do atlético Calixto e corre para o palco. Grita ao cortineiro que desça o pano de boca para poderem retirar do urdimento a vítima atada às cordas do contrapeso. O homem obedece, pálido, saindo da letargia em que se encontrava. Em vinte anos de teatro, jamais assistiu a semelhante grand-guignol. Assim que as mãos trêmulas do cortineiro começam a baixar a cortina, Noronha ordena a Calixto que suba ao urdimento para resgatar o corpo.
— Desculpe, doutor Noronha, mas isso eu não faço nem pela minha mãe. O senhor sobe lá e pega a moça, que eu fico tomando conta aqui embaixo. Mello Noronha hesita, calculando a altura do palco e o peso da alemã.
— Sozinho, eu não consigo. Faz o seguinte, vai buscar dois dos guarda costas da Polícia Especial que fazem a segurança do Filinto. Manda um motorista da Central levar dona Yolanda e dona Diana pra casa — ele ordena, apontando para as duas, que acabam de entrar na plateia acompanhadas por Esteves.
— Sou jornalista e não vou pra casa tão cedo — declara Diana, olhando a carcaça pendente.
— Eu sou português e também fico — afirma Tobias Esteves.
— E eu vou vomitar — anuncia a bela Yolanda, do fundo da sala, hipnotizada pelo quadro dantesco armado no palco do Theatro Municipal.
— Tranca-se a porta depois da casa arrombada — comenta Noronha, ao ser informado de que Filinto deu ordens para que um batalhão da Polícia Especial fechasse todas as saídas e examinasse os documentos da pequena parcela do público que não havia conseguido escapulir. Os “quepes vermelhos” executaram a rotina inútil.
Sentados no banco traseiro da limusine Mercedes-Benz da embaixada, Lourival Fontes e Filinto Müller desculpam-se junto ao embaixador alemão pelo “pequeno desconforto causado na estreia”, no dizer de Lourival. Karl Ritter está enlouquecido de raiva. A morte da alemã nada faz para melhorar as relações delicadas entre os dois países, tensas desde que o Partido Nazista foi proibido no Brasil. Além de furioso, Ritter teme uma violenta represália pessoal:
— Quando o meu Führer souber do assassinato humilhante da minha funcionária, afilhada do almirante Canaris, e, o que é pior, quando ele souber que o crime aconteceu durante a apresentação da sua ópera preferida, vai me mandar ser embaixador no campo!
Lourival procura consolá-lo:
— Não se amofine, Excelência, eu também prefiro a cidade, mas a vida no campo é mais saudável.
— Lourival, o embaixador está se referindo aos campos de concentração...
— Explica, embaraçado, Filinto Müller, que conhece bem o assunto.
— Talvez haja uma declaração de guerra!
— Calma, pra tudo tem saída — afirma Lourival, homem das maquinações criativas. — O meu departamento pode divulgar pela imprensa que se trata de um complô comunista.
— Ninguém vai engolir essa história — dispara, ríspido, Filinto, tentando a tarefa impossível de encarar ao mesmo tempo os dois olhos de Lourival. — Todos que estavam no teatro ouviram falar do Caso das Esganadas. A vítima é um exemplo claro. O senhor pode garantir ao ministro Ribbentrop que não foi um atentado ao Reich. O nosso melhor delegado, com o auxílio de um famoso detetive português, está no encalço desse assassino louco. A prisão do mentecapto é iminente — bazofia o chefe de polícia.
O rabecão do Instituto Médico-Legal já levou os corpos de Greta Süßeschlitz e de Othelo Battiscopa, este ainda encravado na tuba. Foi em vão o esforço dos atendentes do iml para desentalar o anão do instrumento. Músicos, técnicos e elenco saíram apressadamente do teatro. Traumatizados, os cantores nem retiraram a pesada maquiagem que usavam na ópera.
Noronha e Esteves dão uma busca na cena do crime. Têm uma vaga esperança de encontrar o assassino escondido no urdimento, nos camarins ou no alçapão do palco. A procura é inútil. Interrogam o vigia da noite, o porteiro e a equipe encarregada de cuidar dos bastidores: maquinistas, carpinteiros, contrarregras e o diretor de palco. Nenhum resultado. Diana fotografa todos os detalhes com a Leica 250, que traz na bolsa. Não fazem a menor ideia de como o insano homicida conseguiu ter acesso aos bastidores do teatro, carregando os despojos monumentais da pobre rapariga. O enigma parece insolúvel até mesmo para o detective Tobias Esteves, exímio decifrador de charadas inextricáveis.
Em sua residência, uma mansão na rua Real Grandeza, anexa à funerária, o solitário Caronte pensa no desespero da polícia procurando descobrir como ele transportou a gorda para o Municipal sem que ninguém percebesse. “Nem Houdini! Nem Houdini!”, vangloria-se o matador.
Desta vez, ele não se aplica a solução costumeira de alucinógenos. Para celebrar a carnagem, fuma um cigarro de cocaína. Inalada, a droga produz efeito igual ao causado pela aplicação endovenosa, sem o inconveniente da agulha e da seringa. A reação provocada pela cocaína é intensa. Rindo, Caronte acende o segundo cigarro. Sua gargalhada néscia de drogado ressoa pelo casarão vazio. A bem da verdade, ninguém poderia imaginar o óbvio. Dois anos antes, Caronte realizara o sonho secreto de fazer parte da orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Vencera com brilho o concurso para preencher a vaga aberta na seção de contrabaixos.
Na véspera do espetáculo, foi fácil passar despercebido pela portaria dos fundos arrastando, sobre rodas, a gorda espremida no estojo do instrumento. Depois, usou as roldanas do palco para içar o corpo até o urdimento. No dia seguinte, voltou para a estreia de gala, integrando a Sinfônica. Quando a cortina subiu e a gorda desceu, Caronte teve orgasmos múltiplos ao ver sua obra exibida diante do público, em pleno palco do Theatro Municipal.
Ele gosta do contrabaixo. Ensaia à noite, na Elpídio Boamorte, nas sombras do antigo matadouro. Sempre que o coloca entre as pernas esquálidas, lembra-se da mãe e golpeia com vigor as cordas com o arco, como se a chibateasse. Ser um dos contrabaixistas da Sinfônica era o seu segredo mais bem guardado. Jamais os colegas da orquestra acreditariam que aqueles dedos ágeis e delicados no pizzicato pertenciam às mãos que esganavam as gordas.
O efeito euforizante da droga se esgota, e o riso alucinado transforma-se em apatia. Ele enxerga apalermado sua magra silhueta refletida no contrabaixo. Num surto paranoico, vê-se distorcido na madeira envernizada. É a imagem de um Caronte gordo, enorme, vasto, colossal, desmensurável. Ele despenca em prantos no chão, agarrado ao instrumento como se estivesse abraçando a própria mãe.
CAPÍTULO 27
“O céu plúmbeo de inverno que cobre a Guanabara, presságio do temporal que se aproxima, acoberta outra borrasca, esta sem bonança”, profetiza, solene, Rodolpho d’Alencastro, o oráculo das ondas médias. “Devastado pelo pesar, o locutor que vos fala através da prg-3, Tupi do Rio, transmite, diretamente do cemitério São João Batista, o derradeiro cortejo que transportará ao mausoléu os despojos mortais de Greta Süßeschlitz e Othelo Battiscopa, mais conhecido nos meios circenses como o palhaço Rodapé. O ananicado artista deu fim à própria vida ao ver a Greta tanto amada sucumbir nas mãos do pérfido psicopata que ronda nossas ruas.
“Nestes momentos horripilantes de tensão, ao presumir que o assassino pode atacar outra jovem obesa em qualquer ponto da cidade, nada melhor para acalmar os nervos do que fumar um bom cigarro enrolado em seda Zig-Zag. Zig-Zag é o melhor papel francês para cigarros. Fumadores!, exijam em todas as lojas de tabaco o Zig-Zag, a primeira marca do mundo.”
Para gáudio de Caronte, as exéquias ficam a cargo da sua empresa. O fato não o surpreende, já que sua funerária é a melhor da América do Sul. Houve até um argentino que pediu, em testamento, para ser enterrado no Rio, devido à fama internacional dos serviços da Estige.
Além de fazer uso do bálsamo aromático composto de plantas, resinas e óleos, receita secreta inventada por seu pai para o trato dos defuntos, Caronte é criativo nos ritos fúnebres. Transforma simples funerais em espetáculos de luxo e originalidade. No caso específico, concebeu um caixão para que Othelo Battiscopa permanecesse dentro da tuba. Apesar das dimensões do instrumento, o esquife do anão “entubado” era bem menor do que a arca pagã da mitologia nórdica, encomenda da embaixada alemã.
Os amantes são inumados ao mesmo tempo. É inevitável a comparação entre os dois caixões. Presentes à cerimônia, cantores e artistas de circo de um lado, oficiais e autoridades alemãs do outro. A monumental germânica é levada à sua última morada com honras de Estado. O embaixador Ritter lê uma mensagem do Führer concedendo a Greta Süßeschlitz a Grosskreuz des Deutschen Adlerordens, “Grã-Cruz da Águia Alemã”, a título póstumo. A medalha é a maior honraria concedida a membros de corpos diplomáticos. Entre os poucos alemães merecedores da distinção, está o próprio ministro das Relações Exteriores, Joachim von Ribbentrop. Dos brasileiros que compareceram à solenidade, o único que leva a sério a homenagem é Lourival Fontes, a quem chamam, em surdina, pelo apelido de Um Olho no Padre.
Assistindo ao enterro duplo de Greta Süßeschlitz e Othelo Battiscopa na esperança de surpreender o assassino, o delegado Mello Noronha revela não compreender como um homem tão pequenino podia ser dotado de uma voz tão especial. Esteves relata, devaneando:
— No final da Idade Média, o papa Benedito XI quis empregar o extraordinário pintor Giotto di Bondone. Mandou um emissário a Florença pra verificar como eram suas obras e se Giotto era tão genial quanto diziam. O mensageiro pediu ao pintor um trabalho pra mostrar ao papa, como prova da sua genialidade. Giotto pegou um papel, um carvão e, num movimento rápido à mão livre, traçou um círculo perfeito. Diante da perplexidade do emissário, Giotto tranquilizou-o: “Leve o desenho ao papa que ele vai entender”.
— O que é que essa história tem a ver com Battiscopa? — pergunta Noronha, curioso.
— Giotto também era anão. Talento não escolhe tamanho — declara Tobias Esteves.
Os quatro fazem uma pausa reflexiva. Calixto rompe o silêncio, repetindo o que todos já sabem:
— Parece que, quando os dois se encontraram logo no primeiro ensaio, foi amor à primeira vista.
— É verdade — concorda Tobias Esteves. — Um verdadeiro coup de foudre.
Calixto olha acanhado para Diana e diz em tom de reprimenda: — Bom, seu Tobias, esse detalhe sobre sexo anal eu desconhecia.
A firme insistência do delegado Mello Noronha com Filinto Müller faz com que o embaixador Karl Ritter, depois de muito negar, permita que a Polícia Técnica, sob a chefia do cientista forense Aloísio Pelegrino, único do departamento com curso de especialização no Laboratório Científico de Detecção de Crimes do fbi, nos Estados Unidos, examine o quarto da alemã.
Mesmo assim, a busca acontece sob o olhar vigilante de um funcionário mal-encarado, Hans Sauckel, sem dúvida da Gestapo. Em todas as delegações alemãs do mundo havia desses sicários ligados ao setor “cultural” das embaixadas. Pelo menos era o que constava nos seus passaportes. A ironia maior é que o marechal Hermann Goering proclamara numa convenção do partido: “Toda vez que escuto falar em cultura, pego a minha Luger”.
O quarto de Greta Süßeschlitz era um verdadeiro sacrário nazista. Na parede, fotografias do documentário O triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl, sobre o congresso do partido em 34. Diana registra tudo com a sua câmera. Acima da cama, um imenso retrato a óleo do Führer Adolf Hitler, mãos na cintura, enfeita o dossel como o anjo da morte. Os olhos azuis do facínora não suavizam a dureza do rosto. A colcha, presente do “tio Rudolf ”, como Greta chamava carinhosamente Rudolf Hess, secretário de Hitler, tem a cor e o emblema da bandeira. Até a estamparia do enorme pijama tipo “coelhinho” dobrado sobre um dos travesseiros é feita com centenas de pequeninas suásticas.
O alemão, suando em bicas no seu pesado casaco de couro talhado para o frio prussiano, apressa os peritos da Polícia Técnica.
— Schnell! Macht Schnell! Rasch! Husch! — grita Hans Sauckel.
O berro de Hans leva o velho técnico Mangabeira, baiano de Juazeiro há anos na Forense, a ralentar ainda mais a peritagem:
— Na minha terra a gente tem um adágio: “O apressado come cru”, seu Ramos.
— Non é Ramos! É Hans! Hans! — vocifera, apoplético, o alemão.
— Cuidado, seu Ramos, assim o senhor vai ter uma congestão raivosa que pode lhe dar uma trombose da boca torta...
Alheio ao debate entre o fanatismo huno e a sabedoria nordestina, Tobias Esteves senta-se no confortável leito em forma de nave viking. Ao ajeitar os travesseiros, descobre um caderno com uma refinada capa de couro entalhado. Destaca-se a famigerada suástica e o título em letras douradas: MEIN TAGEBUCH
— Doutor Noronha, acho que isso pode interessar-lhe — diz Esteves, folheando o livro negro.
Noronha senta-se ao seu lado.
— Do que se trata?
— É o diário da menina Greta.
— Você fala alemão?
— Como qualquer filósofo que se preze formado em Coimbra. Grego clássico, só leio.
O português não cessa de assombrar Noronha.
— O que tem anotado aí que possa nos ajudar? — pergunta o delegado, querendo arrancar o diário das mãos de Tobias.
— Várias informações sobre uma rede de espionagem a ser formada no Brasil, a começar pelo sul do país. Pontos de desembarque clandestinos para submarinos no litoral brasileiro, em Santa Catarina. Nomes de simpatizantes em Blumenau que poderiam formar a base da “quinta-coluna”. Em alguns dias ela anota que sente-se seguida por um vulto e desconsidera os episódios. Imagina que seu seguidor pertença ao serviço de contra-espionagem brasileiro.
— Serviço de contraespionagem? Eu pensei que o governo fosse a favor...
Tobias, isso é matéria que interessa ao serviço secreto do Ministério da Guerra. Vou mandar o Calixto sair com esse calhamaço escondido nas calças. O que eu quero saber são detalhes íntimos da gorda que possam nos ajudar.
Tobias Esteves procura anotações corriqueiras sobre o cotidiano da gorda:
— Nada de especial. Senão vejamos: “Quinta-feira, 24 de março. Fui ao centro comprar mais pílulas. Voltei e ordenei à cozinheira que preparasse um prato de Kartoffelklösse para o jantar”.
— O quê?!
— São bolos de batata. Uma delícia.
— Vá em frente.
— “Sexta-feira, 25 de março. Hoje, vou comer uma Pfefferpotthast no almoço e, no jantar, uma coisa mais leve: Schweineschnitzel com Bananastrudel de sobremesa. Sábado, 26 de março. Acordei um pouco nauseada. Acho que foi uma fatia de maçã assada que comi antes de dormir.”
Noronha arranca, irritado, o caderno das mãos de Tobias.
— Isso não é diário, é um livro de receitas!
— E as tais pílulas? — pergunta Esteves.
— Sei lá, devem ser cápsulas de cianureto. Coisa de espião — responde, ansioso, Mello Noronha, indo para as últimas página do diário.
A partir do encontro com Othelo Battiscopa, as folhas são preenchidas com vários desenhos de corações entrelaçados com suásticas cor-de-rosa. A única entrada legível data de terça-feira, 5 de julho:
— “Enfim encontrei o grande amor da minha vida! Othelo Battiscopa! Mein Schatzi! Z Liebst!... Schatz! Liebst du mich? Eu te amo! Você me ama?”
Essa patética declaração de amor era repetida, sem alterações, por diversas páginas. Obnubilada pela paixão, Greta Süßeschlitz, formada em literatura alemã na Universidade de Heidelberg, perdera a capacidade de se expressar com clareza. O resto da busca efetuada pela equipe da Polícia Científica nada encontrou de significativo. No armário do banheiro, vários frascos vazios e um pela metade, com rótulos que indicavam tratar-se de uma mescla de ervas da Amazônia com outras de florestas menos notáveis. Enfim, a miscelânea que se acha habitualmente na farmacopeia. Por via das dúvidas, Aloísio Pelegrino leva os frascos e as cápsulas para o laboratório, a fim de certificar-se de que o conteúdo corresponde às etiquetas.
Noronha chama o rígido Calixto, que a tudo observa da soleira da porta.
Entrega-lhe o diário enrolado.
— Calixto, temos que levar esse documento daqui sem que os alemães percebam. Diz respeito à segurança nacional. Enfia ele no bolso da calça assim como está.
O relutante Calixto recolhe a maçaroca.
— É melhor o senhor ir na frente, e o seu Esteves logo atrás de mim. O alemão parrudo pode pensar que o volume do bolso é outra coisa. Desde que eu cheguei que ele me olha sorrindo. Não sei não, doutor Noronha, mas eu acho que o gringo é fanchão — declara Calixto, usando um vocábulo pouco vernacular.
Leia também:
AS ESGANADAS (CAP. 28 e 29)
Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 143-159. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.
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