12.26.2011
JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAP. 28 e 29)
CAPÍTULO 28
Uma atmosfera geral de desalento abate-se sobre os quatro amigos espalhados no gabinete do delegado Mello Noronha. Como era de esperar, nada de revelador surge no relatório no. 7 do Caso das Esganadas. Nenhum ponto em comum com as outras seis, a não ser, é claro, o fato de todas serem gordas. Somente as obesas despertam o interesse do psicopata. A segunda autópsia, efetuada pelo doutor Gregor Becker, das ss, médico pessoal de Goering, vindo às pressas no avião particular do Führer, apresentou a mesma conclusão a que chegara o intragável legista brasileiro Ignacio Varejão:
“Petéquias na conjuntiva indicam, mais uma vez, morte por asfixia. Acredita-se que resultem do aumento da pressão venosa na cabeça e do dano ao endotélio, resultante de hipóxia. Lesões em várias partes do corpo, produzidas na vítima agonizante, provavelmente numa tentativa de comprimir o corpo em algum recipiente. Manchas com aparência de líquido seminal espalham-se pela face externa da coxa direita. Como nos casos precedentes, há sinais do uso de anestésico na subjugação da vítima. Os globos oculares foram enucleados.”
— O mais irritante é a falta de impressões digitais em todos os lugares por onde ele passou — desabafa Mello Noronha.
Para o delegado, era uma ironia não poder se beneficiar de todos os novos recursos de identificação agora à disposição dos órgãos de segurança.
— Sei lá, doutor Mello, vai ver que o homem não tem impressão pra deixar — sugere o ingênuo Calixto.
— Impossível! — A réplica fulminante de Noronha vem acompanhada de uma verdadeira dissertação sobre datiloscopia, sua defesa de tese na Escola de Polícia.
— É a primeira coisa que se aprende. Desde que Alphonse Bertillon, em 1879, e Francis Galton, em 1892, pensaram num processo de identificação pelas marcas deixadas pelos dedos, alegando a impossibilidade de que duas pessoas, mesmo gêmeas, tivessem impressões iguais, vários criminosos foram condenados devido ao método. O primeiro caso ocorreu aqui ao lado, na Argentina, em 1892. O chefe de polícia de Buenos Aires, Juan Vucetich, associou as impressões digitais ao sistema de antropometria fotográfica criado por Bertillon e estabeleceu o primeiro arquivo organizado de identificação-padrão.
— Pois é verdade — contribui Esteves, que conhece bem o caso.
O assunto desperta o interesse jornalístico de Diana.
— Boa matéria pra minha revista.
— No mesmo ano — continua o delegado — Francisca Rojas, da cidade de Necochea, foi encontrada, com machucaduras no pescoço, numa casa com seus dois filhos menores degolados. Francisca acusou um vizinho, que, mesmo sob violento interrogatório, não confessou o massacre. O inspetor Alvarez, colega de Vucetich, encontrou, na cena do crime, a impressão de um polegar sangrento na porta da casa. A marca era idêntica à do polegar de Francisca. Quando interrogada novamente, a mulher confessou ter matado os filhos.
— Os próprios filhos? — pergunta o horrorizado Calixto, que traz, junto ao coração, a fotografia de sua mãe.
— Exatamente. Mas, como se deu na Argentina, o crime foi noticiado apenas nos jornais de Buenos Aires. O primeiro julgamento a pôr em evidência a importância dessa nova forma de identificação aconteceu no Caso Scheffer, em 1902, quando Alphonse Bertillon conseguiu a condenação do assassino pelas impressões colhidas meses antes, na ocasião em que Scheffer havia sido detido por uma pequena infração. O processo continua a ajudar a polícia. Isso porque, se há uma certeza na medicina forense, é a de que todo mundo tem impressões digitais e nenhuma é igual a outra — termina Noronha.
E berra, mais uma vez, para Calixto:
— É impossível alguém não ter as marcas nos dedos. Entendeu? Impossível!
Calixto cala-se, ensimesmado.
No gabinete, a depressão é densa como o fog londrino. O mutismo é quebrado pelo sotaque carregado de Tobias Esteves. O detective levanta-se, põe a mão no ombro de Calixto e cita Shakespeare:
— “Há mais mistérios entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a vossa vã filosofia.”
— Meu nome é Valdir, seu Esteves — lembra Calixto, achando que o português perdeu a razão.
— Sei-o bem, querido Calixto, sei-o bem. Estava a me referir ao verso de Shakespeare ao seu amigo Horácio quando Hamlet vê o fantasma do pai.
— Entendi — afirma Calixto, mentindo.
Noronha, que odeia esse tipo de divagação, fecha ainda mais a carranca.
— E o que é que o fantasma do pai do Hamlet tem a ver com esta história?
— Nada, senhor doutor delegado. É que, quando surge-me um problema tão inexplicável, vem-me logo à mente o que já disse-lhe antes: o Princípio da Parcimônia... a Navalha de Ockham.
— Sei, sei, o tal frade filósofo da Idade Média. Mas como é que isso pode nos ajudar? — pergunta Mello Noronha, mais impaciente ainda.
— Pode nos ajudar porque a chamada “navalha” corta fora qualquer informação que não seja estritamente necessária à explicação dos fatos. É simples. “Se em tudo o mais as várias explicações de um fenômeno forem idênticas, a mais simples é a melhor.”
— Desculpe, seu Esteves, mas, se envolve navalha, estou fora. Odeio arma branca — confessa Calixto, encolhendo-se na poltrona.
— Calma, é só um velho axioma muito usado por Sherlock Holmes nas suas aventuras: “Quando se elimina o impossível, o que resta, por mais improvável que pareça, tem de ser a verdade”.
— O que é que você está dizendo?
— Estou a dizer que o nosso Calixto tem razão. O assassino não deixa impressões porque não as tem. Resta saber como ou por quê. — Ele cumprimenta Valdir: — Parabéns, meu amigo.
Valdir Calixto sente-se a pessoa mais importante da sala e agradece, acanhado:
— Obrigado, seu Esteves. Puxa, eu sou filósofo e não sabia.
Sábado, 16 de julho. Há três dias, a chuva incessante forma pequenos córregos pelos corredores traçados entre os túmulos do cemitério São João Batista. Caronte observa da janela dos fundos da funerária. Depois, examina no espelho os fios remanescentes dos seus cabelos. “Poucos, muito poucos”, pensa. A maquiagem aplicada para cobrir as nódoas escuras que lhe maculam a pele quase não disfarça a deformidade. As cutículas sangram pelas unhas finas que se desfolham como papel. A angústia invade o assassino. Nem as cerimônias fúnebres, que tanto o excitavam, conseguem dissipar-lhe o spleen. Cada vez mais, deixa tudo nas mãos do seu diretor funerário, Aristarco Pedrosa, formado em tanatopraxia e fiel a Caronte como um cão de guarda. Empedernido, de aparência cadavérica, o eficaz administrador veste sempre uma sobrecasaca preta combinando com o cargo. A fisionomia soturna de Aristarco só se transforma à noite, nos fins de semana liberais da Lapa, onde ele é conhecido como Cu de Veludo.
Para evitar os olhares curiosos dos clientes, Caronte refugia-se nos recantos escuros do casarão. Sente falta da caça; a carnificina é a sua droga. Ele sabe que a abstinência intensifica a síndrome de Nagali. A ligação patológica entre o corpo e a mente já havia sido observada no século X, pelo cientista persa Ahmed ibn Sahl al-Balkhi. Ahmed fora o primeiro a associar a saúde física à mental. No caso de Caronte, a relação é evidente. Ele precisa de outras vítimas e sabe onde encontrá-las. A colheita viçosa está logo ali, pulsando ao alcance da mão. Basta escolhê-la, oculto nos vãos sombrios do Beco dos Barbeiros.
Por mais que adore Diana, Tobias Esteves não se acostuma à velocidade que ela imprime ao seu Lagonda Drophead. Tobias também preferiria que a moça baixasse a capota do conversível, mas não tem coragem de pedir. Vai segurando com uma das mãos o feltro Borsalino enfiado na cabeça e com a outra agarra-se ao banco. Às dez horas da manhã de segunda-feira, os dois dirigem-se ao instituto Oswaldo Cruz, em Manguinhos, onde estagia o italiano Luigi Peterzani, especialista em genética humana. Aos quarenta anos, Peterzani é também formado em psicopatologia, e Diana o conhecera quando o cientista viera ao Brasil, em janeiro, para uma série de palestras a convite da Universidade do Rio de Janeiro.
Mulherengo e vaidoso, o belo romano interessou-se por Diana e concedeulhe uma entrevista recheada de fotos, nas quais ele fazia questão de mostrar apenas o perfil direito. “É o meu lado bom. O esquerdo fa schifo...”, afirmou, com um sorriso perolado.
Diana felicita-se por ter mantido contato com o cientista. Galanteios à parte, Peterzani tinha reputação internacional, com doutoramento em genética, epidemiologia e saúde pública pela Universidade de Massachusetts, em Boston. Era um dos sérios candidatos ao Nobel, mas apaixonara-se pelo Rio no Carnaval e estendera sua visita. Não era raro vê-lo, durante as pesquisas sobre a vacina contra a peste bubônica, cantarolando, com sotaque romanaccio, a marchinha de sucesso do ano anterior: “Mamãe eu quero, mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar! Dá a chupeta! Dá a chupeta! Ai! Dá a chupeta pro bebê não chorar...”.
— Ma guarda che bella ragazza! — grita Luigi Peterzani, desgrudando o olho do microscópio e levantando-se para beijar Diana.
— Já sei! Nostalgia di me?
— Ele usa a palavra que mais se aproxima de “saudades”.
— Nunca, você é muito perigoso... mas eu preciso da sua ajuda.
— Eu sabia, fanciulla interesseira... quem é este senhor idoso em forma de barrica di vino, seu tio?
O olhar de Esteves atravessa o crânio do italiano.
— Se me permite, não sou idoso, nem tio, nem barrica. Sou o delegado auxiliar provisório Tobias Esteves, convocado para ajudar a Central de Polícia numa importante investigação criminal. Presumo que tenha ouvido falar no Caso das Esganadas.
— Não se aborreça, delegato, foi uma pequena crise de ciúmes. Como posso ajudá-los? — pergunta Peterzani, começando a falar sério. Esteves explica o motivo da visita:
— O que mais nos espanta em todos os crimes é a total falta de impressões digitais por onde o matador passou.
— Além das marcas deixadas pelas vítimas, a perícia só conseguiu recolher esses borrões — completa Diana, mostrando ampliações das fotos que fez.
Tobias continua:
— Em princípio, sabe-se que é impossível as pessoas não terem os desenhos nas pontas dos dedos; no entanto, o estudo da lógica e da filosofia ensinou-me que, como diz um velho ditado da minha terra: “Impossível é Deus mentir e rato fazer ninho em orelha de gato”.
O professor Luigi Peterzani impressiona-se com o fervor do português. Olha-o com renovado respeito, afasta-se da bancada e puxa da estante um pesado compêndio sobre dermatologia e genética. Corre o dedo pelo índice e abre o livro no capítulo indicado.
— Cara Diana, quero felicitar seu amigo pela persistência e pelo raciocínio perfeito. Ele tem razão, é claro.
Diana e Esteves entreolham-se, surpresos. Peterzani lê o artigo científico para os dois:
— Aqui está. Síndrome de Nagali. Também chamada de chromatophore nevus de Naegeli. Descoberta pelo dermatologista suíço Oskar Naegeli, em 1927. Forma rara de displasia ectodérmica caracterizada por uma pigmentação reticular da pele, disfunção das glândulas sudoríferas, fragilidade capilar, ausência de dentes, hiperceratose palmar e da planta dos pés. Assemelha-se à dermatopatia pigmentosa reticular.
— Não estou a entender patavina.
— Nem eu.
— O que tem a ver essa barafunda descrita no alfarrábio com o patife que pôs-se a matar gordas?
O cientista sorri, criando suspense, e explica:
— A característica mais espantosa causada pela síndrome é a ausência total de impressões digitais.
O ruído surdo feito pelo cientista ao fechar o livro tira Esteves e Diana do transe provocado pela notícia.
— Em todos os meus anos como policial da cidade de Lisboa, nunca ouvi disparate mais estapafúrdio — sentencia Tobias Esteves.
— Não é culpa sua — tranquiliza-o Peterzani. — Trata-se de um fenômeno raríssimo, atinge apenas uma em cada três milhões de pessoas.
— Uma em três milhões!? — admira-se Diana.
— Eh sì. Em todos os meus anos como médico e pesquisador, nunca encontrei um portador.
— E essa síndrome causa distúrbios neurológicos ou psicológicos? — pergunta Tobias Esteves.
— Claro que não, a doença nunca afetou o cérebro de ninguém! Dio mio, que ignoranza galopante! Pelo que eu li nos jornais, o assassino é um psicopata.
Mas isso não tem nada a ver com a síndrome.
À porta do instituto de Manguinhos, construído no estilo mourisco das Mil e uma noites, Diana despede-se do sedutor cientista italiano, sentindo-se como Sherazade fugindo do sultão.
— Valeu a pena a visita — ironiza Tobias Esteves, quando saem de Manguinhos. — Agora basta procurar por um gajo sem digitais, desdentado, manchado e sem alfarreca.
— Sem o quê?
— Sem cabeleira, enfim, com poucos cabelos. É uma expressão lá nossa — explica ele. — Aproveito pra pedir perdão à menina Diana pela minha resposta abrupta ao comentário jocoso do italiano — desculpa-se.
Diana engata a terceira marcha ao sair de uma curva.
— Não ligue pra ele, Tobias, o Luigi é um cientista genial, mas acha que tudo lhe é permitido. Foi expulso da Universidade de Roma, onde era catedrático, porque se recusou a fazer a saudação fascista numa visita de Mussolini.
— Começo a simpatizar com ele. Mussolini e Hitler são dois malucos que ainda vão causar muitos problemas. Não queria estar na Europa agora. — Pois é pra onde eu vou.
Esteves espanta-se com a revelação de Diana.
— A menina está a troçar comigo?
— Não, Tobias, é verdade. Costa Rego me convidou pra ser correspondente internacional do Correio, na França. Costa Rego, um dos jornalistas mais importantes do país, é redator-chefe do famoso Correio da Manhã. Diana o conhecia dos saraus de sua mãe, Dulce de Souza Talles, onde se reuniam artistas e intelectuais, encontros que rivalizavam com os salões de Laurinda Santos Lobo, em Santa Tereza. É num desses saraus que Diana solicita o posto ao jornalista.
Apesar das súplicas da mãe, que a quer perto de si, Costa Rego, um renovador na história da imprensa, encanta-se com a ousadia da moça e com a ideia de ter uma mulher no foco do conflito iminente. Diana estica a terceira do Lagonda e passa a quarta, com suavidade, aproveitando a reta. O feltro Borsalino escapa das mãos de Esteves.
Ele toma coragem e pergunta:
— Não há nada que possa fazê-la desistir de uma aventura tão perigosa?
— Não, Tobias, é tudo que eu quero. Estar no lugar certo, no momento certo.
Esteves despeja a sentença guardada desde que conheceu Diana:
— Então me forças a dizer sem mais delongas que estou inexoravelmente apaixonado por ti. Diana enfia o pé no freio e o carro vai ziguezagueando até parar junto à calçada. Ela vira-se, segura o rosto do inspector entre as mãos e beija-lhe a boca. Esteves retribui com o fervor há tanto tempo reprimido.
— O meu beijo tem dois motivos: primeiro, é prova de que também gosto de você. Segundo, é um beijo de despedida. No momento, não há, na minha vida, espaço pra esse grande amor. Toda a minha paixão está concentrada no meu ofício.
— Quem sabe, um dia? — diz, esperançoso, o português.
— Quem sabe.
Ela o beija novamente e dispara o Lagonda em direção ao trânsito da avenida. Satisfeito por ter ao menos declarado o seu amor e não ter sido rejeitado, Tobias lembra-se, sem motivo algum, de um provérbio da região do Zambujal que seu avô gostava de repetir: “Mais vale ser solteirona em Sintra do que apedrejada em Teerã”.
CAPÍTULO 29
Na manhã fria de inverno, como é de hábito, Calixto sai da Casa Cavé, onde seu amigo, o gerente Castelão, lhe serve todos os dias um lauto café da manhã, e segue, saciado, a pé, para o palácio Central da Polícia, na rua da Relação. Acha que a caminhada ajuda-o a manter a forma. É o primeiro a “começar o expediente”, como costuma dizer. Abre a antessala, inspeciona sua mesa e o gabinete do delegado Mello Noronha. Ao contrário de Noronha, Valdir Calixto é exageradamente organizado. Gosta das gavetas arrumadas, dos papéis em ordem sobre a mesa e dos fichários em ordem alfabética.
Como Noronha é exatamente o oposto, todos os dias Calixto é compulsado a recompor as pastas espalhadas durante a véspera. O que aborrece o inspetor é o fato de Noronha culpá-lo pelo sumiço de qualquer documento. Depois de encontrar o arquivo no lugar onde o delegado o enfiou, ainda tem de ouvir o eterno resmungo ranzinza: “Eu sabia. Foi você!”. Valdir Calixto nem se dá mais o trabalho de protestar.
Há outro motivo para ele chegar bem cedo nesse dia. Quer ler o jornal antes que Mello Noronha o destrua. É impossível lê-lo depois dele. Noronha arranca páginas, amassa as notícias, demole as manchetes. E o delegado não admite que alguém o folheie antes. Calixto desenvolveu uma técnica especial para redobrar as páginas sem deixar marcas, a não ser as da dobradura original. Se, acidentalmente, provoca algum vinco suplementar, ele passa o jornal a ferro.
Seu interesse especial na edição desta quarta-feira refere-se aos anúncios que oferecem quartos. Agora que Calixto completou vinte e oito anos, sua adorada mãe decidiu que é hora dele ir morar sozinho. É um passo difícil, porém a determinação materna é irredutível. Ele coloca o periódico em cima da larga mesa de reuniões e, com os olhos rasos d’água, começa a ler os reclames que cobrem a primeira página do Jornal do Brasil.
— O que é que você está fazendo com o MEU jornal?! — berra, da porta, Mello Noronha, com um senso de propriedade maior que o do conde Pereira Carneiro.
Com o susto, o aterrorizado Calixto quase arranca a página fora.
— Nada, doutor, eu nem abri. Eu só estava procurando...
— Não interessa! Ninguém lê antes de mim!
— Nem depois... — atreve-se a dizer o subalterno.
Tobias Esteves, que assiste da porta à cena, solta uma gargalhada.
— Tem piada... Está certo o Calixto, senhor doutor delegado. Do jeito que ficam os diários depois que os pega, se calhar não servem nem pra forrar galinheiros.
Percebendo que a folha está intacta, e meio acanhado pela presença de Tobias, Noronha se dá conta do exagero.
— Se você está buscando alguma coisa, basta pedir — ele concede, devolvendo o jornal com relutância.
— Estou procurando moradia. Minha mãe resolveu que é hora de eu sair de casa. — Ele aponta para uma das minúsculas ofertas: — Esta aqui parece ótima.
Esteves empresta seu sotaque à leitura das letras pequenas:
— “Aluga-se, a senhor distinto, quarto de frente, mobiliado, com pensão, em casa de família mineira. Todo o conforto, não falta água e tem telefone. Avenida Passos, 34.” — Tobias faz uma pausa dramática e carrega na inflexão, olhando para Noronha: — “Exigem-se referências”.
— Não tem problema, Valdir, pede pro Filinto Müller... — brinca o delegado, vingando-se de Calixto.
— Prefiro a sua recomendação, doutor — afirma o policial, entregando o jornal a Noronha.
O superior recusa, com um muxoxo de criança birrenta. — Agora, pode ler. Não quero mais, você estragou o meu prazer. Tobias Esteves disfarça o riso, ante o exagero de Noronha. Calixto aproveita-se da situação para folhear o diário com todo o cuidado. Sabe que o delegado não vai aguentar muito tempo sem procurar as notícias do dia.
No mesmo instante em que Mello Noronha tenta acender um dos temíveis charutos, sua bela Yolanda adentra o gabinete. Está deslumbrante, num tailleur azul-escuro estilo Chanel, boina da mesma cor, o pescoço enfeitado por um fino fio de pérolas. Ato contínuo, Noronha apaga o fósforo e guarda o Panatela. Esteves levanta-se para saudá-la:
— Imenso prazer em revê-la e, se o marido me permite o elogio, linda e elegante como sempre.
— Nem tanto. Preciso perder dois quilos.
Tobias Esteves pontifica sobre o assunto:
— Senhora dona Yolanda, se me permite, sua declaração tem uma característica universal. Toda mulher do mundo acha que precisa perder dois quilos. O que disse já foi repetido em todas as demais línguas faladas no dito mundo civilizado. Sabe como a mulher chega a esta conclusão? Observando-se nas fotos. No espelho, ninguém se vê como realmente é. Diante do espelho, acontece uma correção inconsciente do corpo, e ela apresenta o melhor ângulo de si mesma. Numa fotografia, as pessoas aparecem chapadas no papel. Ninguém faz de si uma imagem real. Nos achamos um pouco melhores do que somos. Por isso é tão comum ouvir-se a frase: “Estou horrorosa nesta foto!”. Geralmente, não é verdade. De modo que posso garantir à senhora, dona Yolanda, que a sua beleza é irreprochável.
— Muito obrigada, seu Tobias, mas a verdade é que eu preciso perder dois quilos.
Dizendo isso, Yolanda vira-se para o marido:
— Antenor, desculpe vir te incomodar no trabalho, amor, mas meu dinheiro acabou.
— Antenor? — pergunta Tobias, surpreso.
— É meu nome de batismo — explica, emburrado, o delegado, que odeia ser chamado assim. — Pra que é que você precisa de dinheiro agora?
— Eu tenho de comprar uma nova droga pra emagrecer que está fazendo o maior sucesso.
— Que remédio é esse? — indaga Noronha, levando a mão à carteira.
— São umas pílulas que só vendem numa farmácia de manipulação aqui no centro. Parece que o resultado é fantástico.
Calixto, que continuou lendo, entra na conversa.
— Puxa, dona Yolanda, olha só que coincidência. Acabei de ler um anúncio de remédio. Será o mesmo? — ele pergunta, mostrando o jornal.
— Caralluma fimbriata... Onde é que eu vi esse nome? Será um remédio que a minha mãe toma pros nervos?
Noronha arranca a página das mãos de Calixto:
— Não, meu amigo, eu também já vi esse nome e acho que sei onde foi.
Calixto, você é um gênio.
— Eu!?
— É. De hoje em diante, está autorizado a ler o jornal antes de mim.
— Obrigado, doutor — agradece Valdir Calixto, sem entender.
Noronha pega o telefone e liga para o laboratório da Polícia Técnica.
— Por favor, o professor Pelegrino. É o delegado Mello Noronha.
Aloísio Pelegrino atende:
— Fala, Noronha.
— É o seguinte, Aloísio: por acaso um dos componentes achados nas pílulas do quarto da alemã era uma tal de Caralluma fimbriata?
— Era.
— Pra que serve?
— No meu entender, pra nada. Está muito em moda, alguns charlatães a vendem como moderador de apetite.
— E adianta?
— Se adiantasse, a alemã seria magra.
— Tem efeitos colaterais?
— Às vezes provoca acidez no estômago, retenção de líquido e inchaço.
— Então, em vez de emagrecer, a gorda incha?
— Em alguns casos.
— Dá pra verificar se tinha o mesmo componente nos frascos encontrados nas casas das outras vítimas?
— Só um instante.
No espaço de tempo em que Aloísio Pelegrino se afasta do aparelho para verificar seus arquivos, Noronha conta a descoberta aos outros. O cientista volta ao telefone:
— Noronha, você está certo. Além da Caralluma, a mesma mixórdia consta nos rótulos dos frascos achados nos quartos de todas elas. São várias ervas inofensivas, como a cáscara-sagrada.
— Cáscara-sagrada? Serve pra quê?
— No máximo, pode causar cólicas e diarreia. Em vez de cáscara-sagrada, o nome melhor seria “cáscara-cagada”.
— Obrigado, Aloísio. Você foi de grande ajuda.
— Não, Noronha, eu cometi uma falha. Eu devia ter analisado essas porcarias assim que chegaram ao laboratório. Não dei importância, mas vou corrigir isso já. Se os meus amigos do FBI soubessem, nunca me perdoariam.
Noronha desliga o telefone e vira-se para Yolanda, Esteves e Calixto.
— Agora temos um denominador comum a todas as vítimas. — Ele mostra o anúncio. — As sete gordas eram clientes do famoso “Professor” Pedregal.
Yolanda conclui, um tanto decepcionada:
— Quer dizer que eu não vou poder tomar a tal pílula pra emagrecer?
Nesse momento, Diana abre a porta e emenda:
— Alguém falou em emagrecer? Preciso perder dois quilos.
A excitação da descoberta toma conta do grupo. Noronha mastiga a ponta do charuto apagado, Calixto dobra o jornal, Yolanda abana-se, Diana fuma e Esteves, como é de seu costume em situações de tensão, murmulha andando em círculos pela sala. Finalmente, ele sugere o óbvio:
— Primeiro temos que fazer uma visita a esse Professor Pedregal do Beco dos Fígaros.
— O senhor não quer dizer “Barbeiros”? — sugere o educado Calixto.
— É a mesma coisa — vocifera Noronha.
— Talvez seja melhor a gente chamar a Polícia Especial — propõe o cauteloso Calixto.
— Pra quê? Pra fazer papel de bobo?
— O homem pode ser perigoso, doutor Noronha.
— Duvido que ele seja o assassino, não ia sair matando a própria clientela. Nem que fosse português! — gafa Noronha.
Absorto em seu raciocínio, Esteves nem se dá conta do deslize do amigo:
— Parece-me que o mais lógico é que o psicopata esconda-se no beco a escolher as vítimas. De lá, ele as segue e as sequestra, metendo-lhes clorofórmio às narinas. Resta saber como as recolhe e pra onde as leva sem levantar suspeitas.
Antes de conceber um plano, faz-se necessária uma visita ao intrujão.
— A quem? — pergunta Calixto.
— Ora pois, ao farmacopola — explica Tobias Esteves, deixando Calixto na mesma.
— Um momento! — manifesta-se Diana. — Vocês não vão conseguir nada indo lá. Toda a propaganda do charlatão se dirige às mulheres. É muito melhor eu ir investigar e ver o que ele vende.
— E eu também vou — afirma Yolanda.
Indiferentes aos enérgicos protestos do delegado e de Tobias, as duas estão irredutíveis.
— Vocês ficam tomando um cafezinho no café Globo, aquele boteco da Primeiro de Março que é perto do Beco dos Barbeiros, enquanto a gente vai lá agora — decreta Yolanda.
— Em princípio, concordo com as meninas; com tanto entusiasmo, resistir quem há-de? Contudo, não se pode desprezar o perigo que as duas estão a correr.
— Não se preocupem — tranquiliza-os Diana. — Vocês se esqueceram daquela senhora que me protege?
— Que senhora? — perguntam, ao mesmo tempo, Noronha e Tobias Esteves.
— A Derringer — responde Diana, puxando da bolsa a pequena pistola de cano duplo. — É o meu anjo da guarda, mais guarda do que anjo
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AS ESGANADAS (CAP. 30 e 31)
Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 160-178. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.
Adorei o livro , As esganadas, superou minhas expectativas!! parabéns, leio muito , adoro os teus livros, continue escrevendo muito, quero desfrutar dessa leitura espetacular por muito tempo ainda. beijo da não "esganada", tua leitora avida.
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