12.27.2011

JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAP. 30 e 31)


CAPÍTULO 30

Homero Aguilera Pedregal viera de Encarnación, no Paraguai, para o Brasil na virada do século. Atravessara a fronteira, ilegalmente, ainda no colo de sua mãe, a cigana Jimena Espinoza. Jimena tocava harpa no trio paraguaio Los Peruanos. O nome do trio permanece um mistério. Sabe-se que Jimena amancebou-se com o flautista Raúl Oviedo, líder do conjunto, após ter sido espancada durante anos, com regularidade, pelo marido.
O trio obtivera relativo sucesso apresentando-se nos garimpos de Baliza, em Goiás. Durante o dia, Jimena lia a buena-dicha nas mãos calejadas dos garimpeiros. Essa atividade, mais lucrativa do que sua participação como harpista no trio, criara certa desarmonia no grupo. O violeiro Chucho Oviedo, comunista foragido que se destacava na execução das polcas paraguaias pelos sons emitidos num rápido tremular da língua contra o céu da boca, socialista convicto, argumentava, não sem certa lógica, que a quiromancia praticada por Jimena só era possível graças à presença dos três. Jimena contra-argumentava lançando-lhe pragas em dialeto romani.
A infância do pequeno Homero fora atribulada. Ele não tinha vocação para a música; aliás, odiava particularmente os guinchos produzidos pela junção da harpa com a flauta, a viola e a língua paraguaia. Aos quinze anos, Homero encontrara o índio Kuiussi-erê, banido de sua tribo por falsa pajelança, e com ele estudara a utilização de várias ervas para a cura de diversas doenças. Todas se revelaram ineficazes. Mesmo assim, Homero intuíra que o aprendizado adquirido com Kuiussi-erê poderia ser de grande valia no futuro.
Depois de esgotar a paciência dos garimpos, o trio chegou ao Rio de Janeiro, onde se desfez. Desfez-se também o concubinato entre Jimena e Raúl. O flautista e o violeiro conseguiram ingressar na orquestra latina de Xavier Cugat, que, na época, se apresentava em temporada no Cassino da Urca, e seguiram com a banda para Hollywood. Chucho não tocava mais viola. Com sua língua habilidosa, especializara-se no famoso “Huu!” dos mambos cubanos. Raúl trocara a flauta pelas maracas e, com a experiência obtida cuidando de Pedregal ainda infante, prontificara-se a zelar pelos dois cachorrinhos chihuahua do maestro. Quanto a Jimena, mantém-se, e ao filho, fantasiada de zíngara lendo a sorte num baralho de tarô nos mafuás da periferia. Nas mesmas feiras onde a mãe atua, Homero Pedregal inicia a prática ilícita de misturar ervas que mal conhece e vendê-las, em cápsulas de gelatina, a incautos consumidores. A ignorância, flagelo da humanidade, é sua maior aliada.
Ao atingir a maioridade, Pedregal possui capital suficiente para arrendar o piso superior de um sobrado no Beco dos Barbeiros. Seu inegável talento mercantilista e a insipiência dos consumidores à procura de drogas milagrosas unem-se para proporcionar ao “Professor” Homero Pedregal uma prosperidade jamais imaginada.
Pedregal usa um jaleco branco imaculado e deixou crescer um cavanhaque de pelos lisos. A tez amorenada e os olhos oblíquos dão-lhe o aspecto pouco confiante de mágico chinês. Hábil comerciante, o falso boticário percebe a importância da propaganda. É mister divulgar suas fórmulas milagrosas, razão dos reclames publicados semanalmente nos jornais. “Es un dinero bien gasto, llevando en cuenta la relación custo-benefício”, pensa ele, ao assinar os cheques. Vários frascos com substâncias coloridas e vasos de plantas exóticas ocupam as prateleiras do notório Herbanário Pedregal. Completando o toque enigmático do ambiente, há, na extremidade do balcão, um vidro de bocal largo onde se vê uma serpente morta enroscada, boiando no álcool.
É a esse sobrado do Beco dos Barbeiros, semelhante a um cenário de bairro chinês em filme americano, que chegam Diana e Yolanda. Diana mostra o jornal.
— Por favor, o Professor Pedregal?
— Homero Pedregal, a sus ordenes, inclusive domingos e feriados, porque moro aqui mismo. Que desejam las lindas senhoritas? — oferece Pedregal, num perfeito portunhol.
— O senhor é espanhol? — pergunta Yolanda.
— Indiano — mente o boticário —, pero descendente de espanholes. Mi família fugiu de Madri durante a Inquisição. Fueran perseguidos como brujos porque já detenían los segredos orientales de la cura por las hierbas sagradas.
Diana vai direto ao assunto, mentindo:
— Nós estamos aqui porque uma amiga nossa perdeu dez quilos numa semana e garante que foi por causa dessas pílulas.
— Sí, sí, es uma fórmula indiana muy antiga, milenar!
— Só o senhor é quem vende?
— Claro! Para preservar o segredo! Es um preparado quase milagroso!
Yolanda intervém, pondo a teste a credibilidade do indo-paraguaio:
— O caso é que nós não queremos emagrecer, queremos engordar.
— No hay problema! Mis cápsulas también engordam.
— As mesmas?! — pergunta Diana, incrédula.
— Sí — afirma Pedregal.
— Como é possível? — pressiona Yolanda.
— Es la maravilha de la ambivalência científica! Primeiro es preciso ter fé. Lo que muda o efeito es orientar la força del pensamento positivo todas las manhanas repetindo três vezes:
Evoé! Deusas Gordas Sagradas!
Façam-me tão gorda
Como las vacas cevadas.
Depois de pronunciar o encantamento, Homero pega na prateleira sob o balcão uma caixa com um pó amarelo e completa a receita:
— Entonces, junto com las cápsulas, quatro copos de leite y o café da manhã, tomar, diluídas em suco de maracujá, duas colheres de sopa deste farelo sagrado hecho de Sacoglottis, Uncaria tomentosa, pé-de-perdiz, papirácea de brosimo, guadicha de quitoco, extrato de mama-cadela y fubá.
As duas amigas mal acreditam no que acabaram de ouvir. O poder de convencimento do paraguaio quase que comprova a validade daquela panaceia universal para todos os males.
— E quanto custa esse preparado? — indaga Yolanda, ligeiramente enojada.
— Muy barato. El farelo es grátis. Las cápsulas, dez mil-réis.
Yolanda resolve regatear:
— Não dá pra fazer por menos?
— Não. Mas posso aumentar o farelo.
— Desculpe a curiosidade — pergunta Diana —, a cobra serve pra quê?
— Pra nada — responde Homero Aguilera Pedregal. — É só decorativa.
Diana pega na bolsa recortes de jornal sobre os assassinatos.
— Uma amiga jornalista soube que todas essas moças tomavam seus comprimidos.
— Sí. Muy triste. Eram freguesas regulares. Coisa rara, infelizmente — ele esfrega os olhos, puxando uma lágrima. — Uma baixa terrible no faturamento.
Depois de mais algumas perguntas sobre os hábitos da clientela, Yolanda e Diana saem carregando pílulas e farelos. Encontram-se com Esteves, Noronha e Calixto, que, ansiosos, já as aguardavam na esquina.
— Então? — perguntam em uníssono o delegado e o português.
— Valeu a visita. Fizemos uma descoberta da maior importância — revela Diana, entregando o embrulho a Mello Noronha.
— O quê?
— Farelo engorda.

Assim que se afastam do Beco dos Barbeiros, Tobias Esteves convida o grupo para um almoço de pescados no famoso restaurante Albamar, na praça Marechal Âncora. O Albamar foi construído na antiga torre do Mercado Municipal, perto da estação das barcas da Cantareira, e, além da ótima cozinha, oferece aos frequentadores a vista magnífica da baía de Guanabara. Calixto, primeiro a consultar avidamente a lista de iguarias do cardápio, abre os pedidos:
— De entrada, eu gostaria de um coquetel de camarão, anéis de lula à milanesa e uma dúzia de ostras-portuguesas, como homenagem ao seu Esteves, que está pagando. Como prato principal, o lombo de bacalhau com batata, cebola e arroz. Capricha na posta. De sobremesa, essa torta de chocolate com sorvete de creme.
— Só isso? Você anda inapetente? — ironiza Mello Noronha.
— Não, senhor, é que eu comi uns pastéis no botequim.
— Quando? Eu não vi você pedir pastel nenhum.
— Quando eu fui ao banheiro lavar as mãos. A cozinha é nos fundos, e o cozinheiro é meu amigo de infância, lá do Estácio, o Manduca. Ele é filho da dona Alzena, que era vizinha de minha mãe. Fazia muito tempo que a gente não se encontrava. Enquanto botava o papo em dia, ele me deu um prato de pastéis de palmito. O senhor sabe, palmito, eu não resisto.
— Você é do Estácio? — interessa-se Diana, amante de samba.
— Nascido e criado. Vivia na casa do sargento Chystalino, fundador da Deixa Falar. — Ele refere-se à escola de samba. — Eu tenho samba no pé, dona Diana. Aliás, foi o sargento que me convenceu a entrar pra polícia.
— Você queria ser o quê?
— Costureiro.
— Calixto, você não cessa de me surpreender — afirma Yolanda, ligada nas revistas de moda.
O garçom serve a mesa. Noronha e Esteves, mais comedidos, dividem um prato de frutos do mar. Yolanda e Diana satisfazem-se com o Linguado à Belle Meunière.
A conversa de Calixto com o cozinheiro do boteco desperta os neurônios do português:
— Por acaso, este seu amigo nunca percebeu algo de estranho na rua Primeiro de Março?
— Nunca.
— Hum. Nada?
— Nada.
— Hum.
— A não ser a caminhonete da Doces Finos, que, de vez em quando, para na esquina oferecendo doces — conta Valdir Calixto, rindo e terminando de comer o bacalhau. — O Manduca disse que é tão grande que parece um rabecão branco.
Tobias Esteves tenta lembrar-se de alguma viatura semelhante no ramo das confeitarias, porém não consegue identificar nada parecido entre os veículos dos seus concorrentes. Desconhece a marca Doces Finos. A figura de um imenso carro branco continua a perturbar-lhe o pensamento. Contudo, há uma incongruência na imagem que se forma: Tobias não consegue associá-la a nada açucarado. Súbito, pipoca em sua mente, sobressaindo dentre a frota de furgões, o imenso carro branco da funerária Estige, como um lírio de brancura virginal em meio ao luto de orquídeas negras.
— Qual doçaria qual nada! Parece-me o porta-defuntos branco que
estranhei quando fomos ao primeiro enterro. Depois não tornei a vê-lo nos outros
funerais.
— Tobias, eu acho que as esganadas estão mexendo com a sua cabeça.
Como é que um rabecão de funerária pode virar balcão de doces? — indaga, incrédulo, o delegado, terminando de comer os frutos do mar.
— Sabe-se lá — responde Esteves, enigmático, citando outra vez o bardo.
— “Há algo de podre no reino da Dinamarca.”
— Também notei, mas juro que não fui eu — afirma Calixto. — Deve ser do bacalhau. Na tarde da mesma quarta-feira, depois de deixar Yolanda em casa e despachar seu motorista com o pacote de inutilidades do pseudo-herbolário para o laboratório da Polícia Técnica, Noronha parte para a funerária Estige, na rua Real Grandeza, espremido no carro de Diana com Esteves e Calixto. Uma discreta inspeção da garagem não revela a presença da insólita limusine branca. A visita foi sugerida por Tobias Esteves, e Mello Noronha, de má vontade, mesmo sem acreditar que aquilo fosse uma pista, concordou, devido à insistência de Diana, sempre à procura de ângulos para sua Leica.
Escuta-se, ao longe, vinda do prédio, uma gravação da Messa di requiem, de Verdi. Depois de tocar a campainha insistentemente, eles são atendidos pelo sisudo Aristarco Pedrosa, o qual indaga em tom grave e austero:
— Que desejam? Por favor, falem baixo. Está havendo um velório de gala no salão principal.
Calixto benze-se, em silêncio, e Noronha vai logo ao assunto, mostrando sua carteira de delegado:
— Quero falar com o seu patrão.
— O doutor Caronte não se encontra — declara o diretor funerário.
— Doutor? Doutor em quê?
— Em tanatopraxia e necromaquiagem pela Universidade de Munique — inventa o pálido assistente. E dispensa os visitantes: — Com licença, nós estamos no meio da cerimônia. Não se pode faltar ao respeito com os entes queridos que não estão mais entre nós.
Mello Noronha, com o pé, impede que o homem feche a porta.
— Um momento. Eu também falo pelos mortos. Trata-se da investigação sobre o assassinato de sete moças. A imprensa batizou os crimes de Caso das Esganadas. Esta agência cuidou de todos os enterros. É só uma rotina, mas eu tenho que interrogar o seu patrão.
— Já lhe disse que ele não está! — repete Aristarco, elevando a voz. Tobias Esteves resolve interferir:
— Ouve lá. Como é que o senhor entra em contacto com ele em caso de urgência?
Aristarco responde, um sorriso maldoso nos lábios:
— No nosso negócio não há casos de urgência.
Diana percebe que o fiel funcionário não romperá, sem trocadilho, seu silêncio tumular. Sugere que voltem outro dia. Porém, antes que o discreto Aristarco Pedrosa feche a porta, Calixto, intrigado, agarra a maçaneta. — Espera aí. Eu conheço você. Sou o Vavá Boas Maneiras, lembra? — diz Valdir Calixto, usando o apelido pelo qual é chamado na malandragem.
— Nunca o vi mais gordo — afirma Aristarco, tentando trancar a porta.
Calixto insiste, mais seguro de si:
— Conheço, sim, só que por outro nome.
— Impossível.
— E de outro bairro.
Os circunstantes observam que uma fina camada de suor poreja do rosto de Aristarco.
— Posso lhe falar em particular? — pede ele, quase implorando.
Calixto leva-o pelo braço para o jardim lateral.
— Conheço você das madrugadas da Lapa, nos fins de semana.
— Sou eu mesmo — confessa o assistente.
— Custei a reconhecer. Aqui, seu jeito fica muito diferente. Lá na Lapa, é outra coisa. Eu lembro que no mesmo concurso de fantasias do Carnaval deste ano, que o Madame Satã ganhou, você desfilou de...
— Maçã do Paraíso — completa Aristarco, baixando a vista, num misto de pudor e vaidade.
— Isso! Todo enrolado numa cobra!
— Jiboia...
— Estou quase me lembrando do seu apelido. Como é mesmo?
— Por favor, seu Vavá, o apelido não.
— Cu de Veludo!
— Se o senhor espalhar isso, destrói a minha reputação.
— Pode ficar tranquilo, que a sua vida secreta não sai daqui — afirma Calixto, passando o dedo sobre os lábios cerrados. — Você tem muito talento. Ainda me lembro de você desfilando na passarela e cantando a marchinha do Ary Barroso: Eu dei... O que foi que você deu, meu bem? Eu dei... Guarde um pouco para mim também. Não sei...
— Tá bom, seu Vavá, chega. Muito obrigado por guardar o meu segredo. Sou seu eterno devedor!
— Mas, em contrapartida, você tem de me dizer onde é que está o seu patrão — cobra Valdir Calixto.
— E eu sei lá da vida desse homem? — esganiça Aristarco, desmunhecando  de vez.
— Ele está cada vez mais esquisito, me deixa cuidando de tudo e desaparece durante dias! Daqui e da casa dele, aqui ao lado. Quando vem, fica se escondendo nas sombras, parece o Bela Lugosi — ele explode, referindo-se ao Drácula do cinema.
— Está me deixando doida!
— Você não faz a menor ideia de onde ele pode estar?
— Nem morta. Uma amiga minha, a Ivone, travesti cabeleireira da rua Sotero dos Reis, jura que, volta e meia, ele passa por lá de noite, guiando a mil aquele furgão branco que ele adora. Eu acho um horror. Onde é que já se viu defunto entrar de lado?
— Você jura que é só o que você sabe?
— Por são Aristarco, meu santo onomástico. Agora, se me dá licença, tenho que ir dar sequência ao velório. Está na hora dos canapés.
— Canapés?
— Claro, amor, com Dry Martini, tudo muito chique. O enterro aqui é à la carte.
Cu de Veludo afasta-se e, a cada passo que dá, vai se metamorfoseando outra vez no circuncisfláutico diretor funerário Aristarco Pedrosa.
Calixto aproxima-se do grupo.
— Então? — pressiona Noronha, ansioso.
— Vocês são amigos? — pergunta Diana, louca para fotografar Aristarco ao lado de Calixto.
— Ele disse algo que preste? — quer saber Tobias Esteves.
— Nada. Só que a viatura branca pode ter sido avistada pelos lados da Praça da Bandeira. Mesmo assim, não é certo. O... diretor me disse que o homem tem ficado muito tempo sem aparecer por aqui e na casa dele — informa o discreto Calixto, apontando a mansão colada à funerária.
— Isso e nada é a mesma coisa — irrita-se o delegado.
Tobias Esteves aplica novamente a lógica de Ockham:
— Ele cá não vem. A casa, também não vai. Logo, só pode estar em outro sítio.
Noronha perde a paciência:
— É óbvio!
— Meu caro senhor doutor delegado, nunca subestime o poder do óbvio — responde Tobias, afastando-se meditabundo.
Diana pergunta a Calixto, curiosa:
— Como é que nasceu essa amizade entre você e esse Aristarco?
— A gente frequenta a mesma igreja — mente Calixto.
— Vem cá, qual é o mistério terrível que você conhece dele? Como é que você sabe que ele não escondeu nada?
— Por causa do apelido.
— Qual é o apelido?
— É um segredo que jurei levar pro túmulo — declara, solene, Valdir Calixto, porém não consegue deixar de repetir mentalmente: “Cu de Veludo! Cu de Veludo! Cu de Veludo!...”.

CAPÍTULO 31

O espaço dedicado ao Caso das Esganadas na imprensa é cada vez menor. Há mais de quinze dias que o assassino não exerce sua tarefa hedionda. A notícia sensacionalista que ocupa a primeira página dos jornais nesta sexta-feira é a morte de Lampião e Maria Bonita com mais dez cangaceiros na fazenda Angicos, em Sergipe. A realidade dos cangaceiros não cativa o delegado Mello Noronha, animal tipicamente urbano. Republicano convicto, pouco se lhe dá que Lampião seja o rei do cangaço ou o príncipe da caatinga.
Descobrir o monstro responsável pela chacina das gordas transformou-se em obsessão. Noronha não consegue pensar em outra coisa. Passa em revista os últimos acontecimentos. É clara a ligação existente entre as cápsulas “milagrosas” do Professor Pedregal e as vítimas. Ele não manda prender o charlatão imediatamente, na esperança de que o lugar sirva de isca para o assassino. Na verdade, as investigações do Caso das Esganadas mostraram que as gordas foram abduzidas em locais diferentes, porém o instinto lhe diz que não deve negligenciar essa possibilidade. Estranha o desaparecimento do papa-defuntos, mas não considera, como suspeito de crimes tão horripilantes, o dono da maior funerária do país. “Quiçá da América do Sul!”, ele berra para a sala vazia.
Nove dias após a visita ao paraguaio, no final da tarde prematura de inverno Noronha observa da janela o pôr do sol que colore a cidade em tons de rosa. Como ele esperava, o resultado das análises das últimas amostras recolhidas na botica do farsante Pedregal não revelaram nada de novo. “A não ser o farelo”, conta Aloísio Pelegrino por telefone. “É fubá de ótima qualidade, vou levar pras minhas galinhas”, brinca o professor, desligando.
Desde a ida à funerária, Noronha não se encontra com Tobias Esteves. O português desculpou-se, alegando reuniões marcadas com os gerentes da empresa, que reclamam sua presença. Prometeu voltar a vê-lo o mais breve possível. Faz falta ao delegado a companhia do amigo recente. Mello Noronha acende um Panatela e afunda na sua poltrona.

Diana de Souza Talles aproveitou os dias sem novidades na investigação para atualizar seu passaporte. Renova o visto francês e está pronta para ocupar o posto de correspondente internacional do Correio da Manhã, em Paris. Costa Rego entregou-lhe a credencial de repórter e fotógrafa; ela pode partir a qualquer momento. Diana gostaria de embarcar só depois que fosse desvendado o misterioso Caso das Esganadas. Pensa em Tobias Esteves, não sabe por onde ele anda. Acha pura invenção a história das reuniões com gerentes. Imagina, não sabe bem por qual razão, que Tobias esteja preparando algum plano arriscado. Teme por ele. É certo que sentirá saudades daquela turma, principalmente do gorducho detective.
Quando a Alemanha anexou a Áustria, em março, mesmo os analistas políticos mais otimistas viram a Anschluss apenas como um ensaio das pretensões invasoras de Hitler. A apreensão aumenta nos países europeus devido às reivindicações dos sudetos alemães na Tchecoslováquia. Na Espanha, apoiados pelos “voluntários” alemães da Legião Condor, os fascistas continuam ganhando terreno. A ameaça de uma guerra na Europa torna-se evidente.

Calixto é o mais preocupado dos três. Todavia, o motivo da sua inquietação está bem longe do cenário internacional. O que aflige o dedicado policial diz respeito à Portela, escola de samba do seu coração. A escola amainara a tristeza provocada pela extinção da Deixa Falar, no Estácio. Mostrando grande habilidade como passista, Calixto será promovido a mestre-sala da Portela no próximo Carnaval.
Em fevereiro, Valdir Calixto desfilou pela primeira vez, mas não houve premiação para nenhuma das vinte e seis agremiações que se apresentaram debaixo de uma tempestade. O temporal impediu que a Comissão Julgadora, nomeada pela prefeitura e pela União das Escolas de Samba, chegasse ao local. Calixto estava tão interessado na situação europeia quanto Noronha na morte de Lampião. O que o atormentava era a possibilidade de outra borrasca atrapalhar o desfile no ano seguinte.
Sábado à noite, Tobias Esteves vai ao teatro Recreio assistir à revista portuguesa Olaré quem brinca!, estrelada por Vasco Santana, conhecido de Esteves há muitos anos. No elenco, a fantástica Mirita Casimiro divide as atenções com Vasco. Grande sucesso de bilheteria, a peça atingiu a marca de cinquenta mil espectadores. Terminado o espetáculo, Tobias dirige-se aos bastidores para cumprimentar o amigo. O camarim está cheio de gente importante da colônia portuguesa, inclusive o embaixador Martinho Nobre de Melo, a quem Esteves é apresentado como importante empresário da indústria alimentícia, proprietário da rede Regalo Luso.
— Sabe-me muito bem o seu Toucinho do Céu — elogia o embaixador.
Vasco omite a prévia atividade de Esteves como policial em Lisboa, demitido após o escândalo do falso suicídio de Aleister Crowley na Boca do Inferno. Afinal, o embaixador é representante do governo salazarista que o afastou do cargo.
Tobias congratula Vasco Santana e a atriz Mirita Casimiro pelo esplêndido desempenho.
— Fartei-me de rir — garante ele.
O embaixador despede-se de todos, e pouco a pouco os visitantes esvaziam o recinto. Para surpresa do ator, assim que os dois ficam a sós, Tobias Esteves tranca a porta do camarim. Aproxima-se do amigo e segreda-lhe quase ao pé do ouvido:
— Tudo que for dito aqui há de ficar entre nós.
Duas horas da madrugada. A fachada está às escuras quando Tobias Esteves deixa o teatro Recreio.

Veja também:

AS ESGANADAS (CAP. 32 e 33)


Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 179-194. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.

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