12.27.2011

JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAP. 32 e 33)


CAPÍTULO 32

Desmentindo os serviços de meteorologia, que previram nebulosidade e baixa temperatura, o céu azul sem nuvens clareia a tarde de domingo. Na ilha de Paquetá, as crianças passeiam de bicicleta sob a vigilância atenta dos pais, e no Distrito Federal as famílias lotam os parques, com suas cestas de piquenique sobre toalhas quadriculadas, transformando o Rio de Janeiro num imenso banquete campal.
Caronte também tem fome. Seu apetite é diferente, jamais satisfeito por meros sanduíches. Cada vez mais, necessita trinchar, destrinchar e destripar sua mãe reencarnada nas gordas. Reduz-se o espaço de saciedade entre os espólios. A premência faz com que ele seja menos cuidadoso. Caronte precisa apascentar seu desejo. “Hoje, o populacho foi à praia aproveitar o sol. O centro está vazio, o comércio, fechado, a não ser aquele que me interessa. O gringo trapaceiro é tão ganancioso que abre até aos domingos e feriados. São os dias mais movimentados da loja, porque, durante a semana, as gordas têm vergonha de serem vistas indo comprar remédio pra emagrecer. Nem sei por que tomo tanto cuidado. 
A polícia é idiota demais pra desconfiar de mim”, tranquiliza-se, abrindo a porta lateral do furgão branco estacionado na esquina da rua Primeiro de Março com o Beco dos Barbeiros. Caronte gira, para fora do carro, a prancha repleta de doces. A isca está armada. Paciente, como bom caçador de grandes presas, ele aguarda encoberto pelas sombras do beco.

A gorda chega toda pimpona, bamboleando seu corpanzil. Vindo da rua do Carmo, ela encaminha-se, quase saltitante, para o número 13 do Beco dos Barbeiros. Veste uma saia vermelha plissada que lhe acentua o volume da barriga e realça a alvura das pernas roliças. Uma extravagante blusa azul de bolas amarelas e sapatos brancos de salto alto completam o figurino. Ao contrário das magras, que sempre se acham gordas, as gordas vestem-se como se fossem magras. Os cabelos negros e longos e as faces rosadas dão-lhe uma aparência jovial.
Alheia à armadilha preparada, seus olhinhos cintilam ao ver a prateleira repleta de petiscos na esquina oposta. Passa direto pela arapuca inócua do paraguaio para cair numa cilada mortal. Está quase chegando ao tabuleiro tentador, quando um vulto sai das sombras e cobre-lhe o nariz com o lenço embebido em clorofórmio. A gorda desaba tão rapidamente que Caronte quase não consegue segurá-la. Com medo de ser avistado, arrasta-a sem demora para o furgão e a deita na prancha móvel, estendendo uma mortalha sobre ela. Fecha a porta lateral e recolhe a carga. Assegurando-se de que ninguém acompanhou a operação pelas janelas da vizinhança, ele sai, em alta velocidade, pela Primeiro de Março.
Esquecendo-se da prudência, Caronte entra rangendo pneus na rua Buenos Ayres. Ele segue atravessando a cidade quase deserta, sem dar atenção aos cruzamentos. Vez por outra, lança, pelo espelho retrovisor, um olhar displicente para a gorda imóvel estirada na parte de trás do veículo. A antevisão do que pretende fazer deixa-o excitado. Ele pensa que o plat du jour do seu cardápio de horrores requer uma imaginação de Júlio Verne. “Ou dos Irmãos Grimm”, diz, e solta uma gargalhada insana.
Caronte alcança a praça da República e contorna à esquerda. A ausência de trânsito permite que ele acelere ainda mais. Vira à direita na continuação da Visconde do Rio Branco, refazendo, como um autômato, o caminho percorrido centenas de vezes. Finalmente, na altura da Mariz e Barros, ele entra na rua Elpídio Boamorte. Como de hábito, quando chega ao antigo matadouro, Caronte ri, refletindo na inadequação do nome daquela rua para as vítimas. As mortes que ali ocorrem nada têm de boas.
Depois de entrar com o carro no depósito e descer a pesada porta, Caronte corre, ansioso, para o fundo do armazém. Lá, lembrando os contos de fadas, vê-se um imenso caldeirão de ferro.
O recipiente, feito de encomenda numa forja de Madureira, repousa sobre uma serpentina a gás das mesmas proporções. O duto metálico retorcido em várias espirais também foi desenhado por Caronte. Ele vai direto ao aparelho e acende a serpentina para esquentar o líquido contido naquela absurda bacia. Depois dessa manobra, dirige-se ao carro funerário e escancara a porta lateral. De um só golpe, arranca a mortalha que cobre o corpo inerte.
Qual não é sua surpresa quando a gorda empurra-o com os pés, ágil e desperta. Por um instante, sua confiança é abalada pelo susto. Refeito, ele volta ao ataque, mas a gorda já pulou fora do carro e salta-lhe em cima. Os dois rolam no frio piso de cimento. Num gesto simultâneo, agarram-se pelos cabelos. Para espanto de ambos, eles seguram nas mãos duas perucas, a da suposta vítima deixando ver a brilhante cabeleira do inspector Tobias Esteves, e a de Caronte pondo-lhe à mostra a calva. A síndrome de Nagali levou-lhe os ralos fios que restavam e devastou sua pele com manchas indisfarçáveis pela maquiagem. Impossível dizer quem se assusta mais, Caronte ao ver a transformação da gorda, ou o detective ao perceber que o dono da funerária, careca, de olhos esbugalhados, envelheceu vinte anos.
Tobias não perde tempo:
— Com a autoridade que me foi concedida pelo delegado Antenor Mello Noronha, dou-lhe ordem de prisão!
Em vez de atender ao comando, Caronte, possuído pela fúria da loucura, pendura-se num dos ganchos que pendem do teto do matadouro e, impulsionando a carretilha nos trilhos, lança-se sobre Esteves. Este se desvia e puxa o assassino desvairado para o chão. Para não cair, Caronte firma-se na saia plissada de Esteves. Sua surpresa é ainda maior quando a saia se desprende entre suas mãos, revelando a generosa genitália do português. Esteves não usa nem nunca usou cuecas. Prefere seus órgãos genitais balouçando em liberdade.
Tobias livra-se da blusa e dos sapatos de salto alto e aproveita o impacto causado em Caronte pela visão da sua anatomia avantajada para rasgar uma larga faixa da mortalha deixada no carro e passá-la entre as pernas. Amarra as duas pontas da tira dilacerada no abdômen. A cachopa portuguesa transforma-se em lutador de sumô. Agora está pronto para a luta, jamais combateria com as partes pudendas desguarnecidas.
Recuperado do abalo, Caronte atira longe a saia e ataca, empunhando um dos ganchos que serviam para deslocar carcaças no antigo matadouro. Esteves ouve um ruído de água borbulhando e desvia a vista para o caldeirão. Um forte odor de tempero toma conta do armazém. Tobias reconhece-o imediatamente. Caronte segue o olhar do inimigo e percebe, sorrindo com seus dentes falsos, que ele identificou o cheiro provindo da tina.
— Gosta da receita? Era da minha mãe. Seria de gorda pra gorda, mas vou ter que me contentar com você — diz ele, lançando-se, enlouquecido, sobre Tobias.
Com agilidade insuspeita para um homem de seu porte, Esteves desvia-se, deixando Caronte chocar-se com o carro. O gancho crava-se no para-brisa do veículo, estilhaçando o vidro e desequilibrando o atacante.
— É a minha vez. Deixe-me apresentá-lo à arte marcial lusitana: a galhofa — anuncia Tobias, puxando o inimigo pelos bolsos da calça.
Ele toma impulso, rodopiando tal qual um pião, e joga Caronte longe, como a um boneco desarticulado. Aturdido, o assassino esparrama-se no solo maciço.
Esteves avizinha-se, perorando sobre a história do combate luso:
— A galhofa é uma luta corpo a corpo de origem céltica, mas praticada principalmente em Bragança, onde fui campeão regional. Salazar proibiu as competições, pois a luta é muito perigosa, mas, mesmo assim, continuamos a praticá-la. É tão violenta que as mulheres não podem assistir.
— Violenta por quê? — pergunta o abestalhado assassino, sem conseguir levantar-se.
— Porque, toda vez que atiramos o oponente ao solo, partimos pequenos ossos dele.
Ele demora a se dar conta disso e, quando percebe, não pode mais se mover. Esteves agarra-o novamente, desta vez pelo cinto, e, num movimento giratório do corpo, joga-o mais longe ainda. Urrando de dor, Caronte arrasta-se com dificuldade em direção à tina quase incandescente. Pelo barulho, nota-se que o líquido lá dentro está fervendo, e começa a transbordar com um cheiro forte de alho e cebola.
— A palavra galhofa, em língua lusitânica, significa “alegria marcial”, e tu nem podes imaginar a alegria que estás a me dar neste momento. Tobias Esteves avança sobre Caronte, implacável como um samurai de Trás-os-Montes.
— Antes mesmo de Salazar, em tempos não muito recuados, devido à repressão cultural, sociopolítica e, principalmente, à Inquisição da Igreja Romana, a galhofa quase desapareceu.
Os olhos vidrados de Caronte denotam seu total desinteresse pelo assunto. Ele começa a sentir dores por todo o corpo malhado. Procura se afastar o mais que pode daquele oponente, que mostra a tenacidade de uma lagosta. Tobias Esteves segue investindo e dissertando, saudoso:
— Fazem-me falta os encontros secretos, à meia-noite, nos currais, sobre a palha fresca, quando esborrachava lutadores descalços, com camisas e calças velhas...
Esteves tenta segurar Caronte, literalmente, pelos colarinhos. Pretende aplicar-lhe o “torniquete galego”, o qual imobiliza o adversário sem matá-lo. Reunindo o que lhe sobra de energia, Caronte ergue-se com um esgar de sofrimento e, para surpresa de Tobias, consegue cobrir a pequena distância que o separa da tina efervescente e atira-se no fluido escaldante do caldeirão. Jamais o pegarão vivo.
Quando o assassino de gordas está prestes a submergir no líquido denso, Esteves ainda o escuta gritar:
— você venceu, mamãããããeee! morro no teu caldeirão, bruxa filha da puta!
Essas foram as últimas palavras de Caronte Barroso, infeliz proprietário da funerária Estige, antes de morrer afogado no prato favorito de sua mãe, Odília Barroso. O Caldo Verde.

CAPÍTULO 33

Começa a anoitecer e os homens da Polícia Técnica, sob o comando do professor Aloísio Pelegrino, ainda vasculham o antigo matadouro convertido em museu de horrores. Marcas antigas de sangue coagulado, correntes e ganchos pendurados contrastam com o belo piano Pleyel de cauda inteira disposto no centro do galpão. Em outro espaço, onde antes eram recolhidas as entranhas dos animais, há uma moderna mesa de autópsias. O corpo de Caronte continua boiando na quantidade surrealista de Caldo Verde. O tamanho da tina é proporcional à insanidade do psicopata.
O legista Ignacio Varejão, aborrecido por ter sido convocado no domingo, recusa-se a examinar o cadáver no local.
— Sou médico, não sou cozinheiro — sentencia ele, girando nos calcanhares. — Aguardo o corpo no IML.
Dois de seus auxiliares retiram o morto do caldeirão utilizando o mesmo guindaste de que ele se servia para levantar suas vítimas. De fato, não é uma tarefa agradável. Pedaços de legumes e de toucinho picado prendem-se nas suas roupas, transformando Caronte num defunto temperado.
O delegado Mello Noronha e toda a sua equipe chegaram vinte minutos depois do telefonema de Tobias Esteves, que usou o aparelho instalado na parede. Apesar de estranhar o pedido de Tobias, Noronha passou em sua casa e trouxe-lhe uma muda de roupa. Ao ver o português em cueiros, ele entende por quê. Diana não perde a ocasião de fotografar Esteves naqueles trajes. Calixto procura não olhar para o português transmutado em gigantesco bebê. Sobretudo porque Esteves raspou os pelos das pernas e dos braços. Impaciente, Mello Noronha quer saber todos os detalhes.
— Elementary, my dear Noronha — começa Tobias Esteves, parodiando Sherlock num inglês impecável.
— Não foi à toa que Fernando Pessoa pôs-me a alcunha de “Esteves sem metafísica”. Para mim, a investigação policial baseia-se no raciocínio mais simples, sem divagações. O que eu sabia por suposto era que o anômalo não conseguiria ficar muito tempo sem dar vazão a sua necessidade quase fisiológica. Pareceu-me lógico que o melhor posto de observação pra escolher as suas vítimas seria nas imediações do ilusório Herbanário Pedregal, uma vez que todas as pobres gordas eram freguesas do “Professor”. Quanto ao assassino, comecei a suspeitar dele quando soubemos pelo seu diretor funerário que ele lá não ia nem a casa. Se bem se lembra, senhor doutor delegado, disse-lhe na hora um fragmento óbvio da Navalha de Ockham: se lá não vai, nem a casa, tem que estar em outro lugar.
— E eu lhe disse que era óbvio! — recorda Noronha.
— Nem tanto assim, delegado. Uma pessoa que não está fugindo não se esconde sem motivo, a não ser que sua aparência seja tão repulsiva que ela não queira ser vista. Foi quando lembrei-me do que disse o italiano abusado sobre a síndrome de Nagali. Precisava obrigar o senhor Caronte a mostrar-se. Se eu estivesse certo ao unir a rotina das gordas à necessidade cada vez mais premente do assassino, imaginei que a melhor maneira seria pôr-me de isca no Beco dos Barbeiros.
— E o disfarce? Onde arranjou o disfarce? — indaga Diana, examinando as roupas, os sapatos e a peruca, sem conseguir apagar da memória a imagem dele de tanga.
— Isso foi fácil. Fui procurar meu amigo Vasco Santana, que está em temporada no teatro Recreio com uma revista portuguesa de muito sucesso.
— Eu assisti. Olaré quem brinca! — diz Calixto.
— Como? Quando? A que horas? Com quem? — Noronha pergunta, desconfiado.
Há semanas quer ir ver o espetáculo, mas Yolanda se recusa a acompanhá-lo. Acha que toda revista é chula.
— O senhor me desculpe, doutor, mas a minha vida particular não é da conta de ninguém — retruca Calixto, fingindo-se ferido em seus brios.
Na verdade, o policial escapou de um plantão e conseguiu os ingressos com a bilheteira do teatro. Diana volta ao assunto que interessa:
— Estou vendo uma marca profunda na sua testa. Não dói?
— Doer, dói, mas valeu a pena. Foi devido ao elástico muito apertado da peruca emprestada pela Mirita Casimiro, uma atriz da companhia com quem tive um namorico em Lisboa. Factos de um passado distante. Ela agora anda de amores com o Vasco, coisa séria. — Ele massageia o vergão, que incomoda bastante. — Isso passa. Como diz um provérbio do Alentejo: “Quanto maior a dor, maior o alívio”.
Os ouvintes fazem uma pausa procurando entender a sabedoria do adágio.
Tobias Esteves segue explicando:
— Uma outra atriz, gordota, emprestou-me a saia, a blusa e os sapatos. As duas puseram-se a rir enquanto raspavam-me os pelos do corpo e o bigode. O maquiador completou o rebuço. Noronha, de mau humor porque Calixto assistiu à revista e ele não, continua quase em clima de interrogatório:
— O que eu quero saber é como foi que você não desmaiou com o clorofórmio.
— Essa foi a parte mais simples do plano. Fui campeão português de mergulho livre em águas profundas. Por isso, na farsa preparada pra dar a impressão de que Aleister Crowley havia se suicidado na Boca do Inferno, fui chamado a mergulhar naquele sítio perigosíssimo. Consigo prender o fôlego por três minutos e sete segundos, tempo que bastou pra burlar o maníaco. Antes que ele me aplicasse o lenço às ventas, contive a respiração até que o veículo partisse em disparada. O resto é o resto — resume Tobias Esteves, lançando outro de seus axiomas.
Noronha, Calixto e Diana olham-no com admiração. Finalmente, é Diana quem fala:
— Qual foi o pior momento de todo esse episódio? O mais traumático?
— Foi quando raspei o bigode. — Ele passa a mão acima do lábio superior.
— O bigode é como um símbolo da família Esteves.
— O seu pai também tem bigode? — pergunta Calixto.
— Não. Minha mãe tinha.
Ninguém descobre se Tobias diz a verdade ou se o detective se diverte às custas deles, porque, neste momento, a equipe liderada pelo professor Aloísio Pelegrino, tendo recolhido seus equipamentos, parte para o laboratório da Criminal. Pelegrino carrega uma redoma de vidro cheia de um líquido viscoso onde boiam os globos oculares das vítimas. Colada na garrafa, uma etiqueta onde se lê, numa escrita elegante:
MAL É TER OS OLHOS MAIORES QUE A BARRIGA” PROVÉRBIO PORTUGUÊS


Veja também:
AS ESGANADAS - (EPÍLOGO)


Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 194-203. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.

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