12.03.2011

JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAPÍTULO 3)


CAPÍTULO 3

O cabo da Polícia Militar Francisco Ferreira, lotado na delegacia de São Cristóvão, aproveita o sol para fumar seu cigarro de palha antes de ir para o serviço. Francisco veio de Tebas, no interior de Minas, e cumpre esse ritual diário passeando pelos jardins da Quinta da Boa Vista. Esta manhã, no entanto, uma imagem extravagante chama sua atenção. A poucos metros de onde se encontra, entre as árvores, ele avista quatro mulheres imóveis sentadas na relva. Elas formam um quadrado em torno de uma toalha quadriculada em cujo centro está pousada uma cesta de piquenique. Caso Francisco tivesse uma formação clássica, uma visão distorcida do quadro 'Le déjeuner sur l’herbe', de Manet, lhe viria à mente. O que torna a cena mais insólita é o fato das quatro serem muito gordas. Gordas e nuas.
Completando a paisagem exótica, cada uma tem um instrumento musical diante de si. O pai de Francisco era regente da pequena banda da cidade. O cabo não demora a reconhecer os dois violinos, a viola e o violoncelo. Seu primeiro impulso é sair correndo dali — logo se lembra das histórias de fantasma que o avô contava —, porém o treino do policial fala mais alto. Ele se aproxima e observa que as cavidades oculares das mulheres estão vazias. Uma folha de papel amassada, formando um buquê, sai da boca de cada uma delas. Só então o cabo Francisco Ferreira cambaleia até o canteiro mais próximo e vomita em golfadas violentas.

Os vários jornais espalhados sobre a mesa do delegado Mello Noronha, na Central, trazem nas manchetes a lúgubre descoberta. A rádio Tupi toca o prefixo anunciando a edição extraordinária do seu jornal. Ouve-se a voz inconfundível do famoso locutor Rodolpho d’Alencastro: “Está no ar o repórter Eucalol! prg-3, Tupi do Rio! E atenção, muita atenção! Ainda não há pistas sobre o assassino das quatro senhoritas da nossa sociedade que estavam desaparecidas e que foram finalmente encontradas na Quinta da Boa Vista em...”.
Noronha desliga o rádio, cortando a notícia no meio. Não necessita ser lembrado da absurda ocorrência. Bastam os insistentes telefonemas do chefe de polícia, Filinto Müller, cobrando resultados. Ele odeia Filinto Müller, odeia Getúlio Vargas, odeia a ditadura e, principalmente, odeia sua mulher, a bela Yolanda, quando ela o arrasta para ver todas as óperas no Theatro Municipal.
Como delegado, Noronha tem direito a dois ingressos para os espetáculos da cidade. Ele prefere as revistas do teatro Recreio, às quais Yolanda se recusa a assistir. O entusiasmo da esposa só arrefeceu numa matinê no teatro Fênix, durante a apresentação de um decadente balé de “vanguarda” vindo de Paris.
Burlando a vigilância da terrível censura do Estado Novo, o bailarino cubano José Martinez, num desvario criativo, arrancou a mínima tanga que lhe cobria o corpo, expondo ao público as nádegas murchas. Diante do choque mudo da plateia, Noronha perguntou à mulher: “Satisfeita, Yolanda?”. Passaram-se meses antes que ela sugerisse outro espetáculo.
Mello Noronha coça a cabeça desarrumando os parcos fios de cabelo que ele penteia cuidadosamente de manhã cedo, dispondo-os em círculo com a precisão de quem planeja um jardim japonês. Neurastênico, ele relê, pela milésima vez, as minguadas informações conseguidas até o momento: as três primeiras moças desapareceram em datas diferentes, em lugares diferentes, num espaço de poucos dias. As famílias, preocupadas, comunicaram à polícia a ausência das quatro. Como os pais pertenciam à classe alta, ligada de alguma forma ao Estado Novo de Vargas, Filinto Müller ordena que o delegado Noronha se dedique exclusivamente ao caso. Concede-lhe poderes especiais, o que é comum em regimes de exceção.
As investigações preliminares sobre o sumiço revelaram que a primeira foi vista, pela última vez, com uma amiga, na rua Sete de Setembro. A segunda separou-se da mãe na Ramalho Ortigão, dizendo que precisava passar na livraria Quaresma antes de ir para casa; e a terceira tentou entrar num táxi na rua da Carioca, mas o motorista recusou-se a abrir-lhe a porta, alegando que a velha suspensão do Ford não suportaria o seu peso. A cena é confirmada por comerciantes do local. O desaparecimento mais recente só fora notificado dois dias antes da descoberta das quatro a compor o tableau vivant morto, formando o paradoxo na Quinta da Boa Vista.
Mello Noronha afasta, irritado, a pasta com os escassos dados colhidos sobre as assassinadas. Dá uma baforada no seu indefectível charuto Panatela. As buscas nas residências também não resultaram em nada. Os jornais já batizaram os crimes de “Caso das Esganadas”. Ele arremessa os jornais no lixo. “Algum filho da puta daqui de dentro contou pros jornalistas que as gordas morreram entupidas”, pensa, no auge da ranzinzice. Nada tinha sido divulgado oficialmente à imprensa sobre as mortas, mesmo assim a informação vazara. Os pasquins anunciam na primeira página que as quatro têm, engastado na boca, um papel dobrado formando uma flor. Abrindo-se as folhas, via-se que haviam sido arrancadas de um caderno antigo e que cada uma delas continha uma frase escrita à mão, numa caligrafia primorosa:
Brisas de Figueira
Caprichos de Setúbal
Fofos de Creme
Musse à Fatia
É óbvio, são nomes de receitas; até Mello Noronha, que odeia gastronomia em geral e doces em particular, desconfia disso, porém desconfiar não esclarece o mistério. Claro que elas são gordas, mas isso não constitui motivo. “Que receitas são essas, que ninguém conhece?”, o delegado se pergunta, esmurrando a mesa. Para acalmar-se, puxa um pequeno espelho de bolso com o escudo do Fluminense e, usando um pente, dedica-se à complicada manobra de cobrir o topo da careca com os longos fios de um dos lados da cabeça. Sua esposa, Yolanda, que, apesar de amá-lo, tem um senso de humor aguçado, apelidou esse ritual capilar de “mecha emprestada”. Batem à porta, e Mello esconde no bolso o espelho e o pente.
— Quem é?
— Sou eu, doutor Noronha — responde, abrindo a porta, o inspetor
Valdir Calixto, um mulato alto e musculoso, seu assistente pessoal.
— Entra. Alguma novidade sobre as gordas?
— Não, doutor. É que está aqui na minha sala um português que insiste em falar com o senhor. Ele garante que pode ajudar a resolver o caso — diz, baixinho, Calixto, fechando a porta.
— Por que é que você está falando baixo?
— Sei lá se o homem é doido, doutor — explica Valdir Calixto, que apesar de armado e policial é um medroso patológico.
— Quem está ficando doido com essa história sou eu. Ainda mais com o Filinto me azucrinando a paciência!
— desabafa Mello Noronha, chamando-o pelo primeiro nome para demonstrar que não respeita nem teme o famigerado chefe de polícia.
— Provavelmente é perda de tempo, mas manda o portuga entrar. Uma cabeça redonda surge pela porta entreaberta. Tobias Esteves se anuncia numa voz límpida de tenor, carregada de sotaque lusitano, apesar dos anos vividos no Brasil:
— Com a vossa licencinha? Tobias Esteves a seu dispor.
O português avança acompanhado de Calixto. O contraste entre os três não poderia ser maior. Esteves, de estatura média, gordo, cabelos gomalinados, bigodes, enverga um terno preto de elegância discreta. Noronha, baixinho, resvala um metro e sessenta nos seus saltos carrapetas, mangas arregaçadas, gravata solta no colarinho aberto, a calva disfarçada pelo intrincado penteado; o paletó marrom, de tropical, bastante amassado, pende das costas da cadeira. Calixto, elegante, alto, um metro e noventa descalço, todo de branco, a não ser pelo contraste da gravata vermelha. Noronha sempre se pergunta como o assistente consegue manter imaculável aquele terno de linho 120. Ao contrário do delegado, nem no mais escaldante verão Calixto sua. Faceiro, ele continua imóvel, ao lado da porta. Mello Noronha aponta a poltrona em frente a sua mesa e diz ao recém-chegado:
— Por favor, sente-se. Como posso ajudá-lo?
— Mil perdões, senhor doutor delegado. Quem pode ajudá-lo é este vosso criado. Se me permite, deixe-me apresentar-me. Chamo-me Tobias Esteves, sou o proprietário da rede Regalo Luso, Doces e Salgados — ele se identifica, entregando um cartão ao policial.
Mello Noronha não deixa Esteves prosseguir. Levanta-se, despedindo-se:
— Meu amigo, se está aqui pra me dizer que as frases publicadas são nomes de receitas, não perca seu tempo nem o meu. Tenho mais o que fazer — ele encerra e, com a ajuda do inexsudável Calixto, empurra o visitante em direção à porta.
— Sim, senhor doutor, aprecio vossa extraordinária dedução — ironiza Esteves. — Mas receitas de quê? Receitas donde? Como são feitas? Por que fazêlas? Quem as fez? Quem as serviu? Noronha estaca nos saltos:
— O senhor sabe quem foi?!
— Não, mas consigo saber.
— Como assim?
— Por uma feliz coincidência, antes de vir pro Brasil e tornar-se empresário de sucesso no ramo da alimentação, este vosso criado era inspector de polícia em Lisboa. Se a modéstia não impedisse-me de dizê-lo, acrescentaria que meu talento dedutivo ajudou a elucidar uma série de crimes em Portugal. Levado a uma aposentadoria... prematura, vim pro Rio e tornei-me sócio do meu tio, já falecido, numa pequena loja especializada em petiscos portugueses. Depois que morreu-me o tio, expandi os negócios. Hoje, sou dono da rede e conheço tudo da nossa cozinha. Tudo, tudo. Receitas, origens, tudo. Quando li o facto nos diários, ocorreu-me imediatamente: “Ó pá, são coisas lá da terra! Por que tu não ofereces ajuda? Sentes falta dos mistérios e conheces esses doces”. Foi por isso que cá vim. — Mas como é que eu vou saber se o senhor foi mesmo detetive? — pergunta Noronha, mastigando a ponta do charuto.
— Porque, como bom detective, detecto e, quando detecto, deduzo.
— Não estou entendendo — irrita-se o delegado, sempre ranzinza.
— Se o senhor doutor não se amofina, demonstro rápido — começa a explicar o português, indo de um lado ao outro da sala. — O senhor é casado há muitos anos e não tem filhos; vossa esposa é bonita e jovem, não gosta de ficar em casa e pinta-se muito. Como marido, faz-lhe todas as vontades. Além disso, ouso afirmar que o senhor usa cuecas tamanho 36.
O espanto de Noronha só é superado pela estupefação de Calixto. Muitas vezes, por falta de tempo, é ele quem compra as camisas e cuecas do seu superior n’O Camizeiro, na rua da Assembleia. Mello Noronha recupera-se do susto.
— Me explique como é que o senhor sabe disso. Por acaso, tenho ficha na Secreta? — indaga, referindo-se à temida polícia criada por Vargas.
— Nada disso, senhor doutor delegado. É a chamada dedução simples. Vejo que é casado há bastante tempo, porque vossa aliança já perdeu o brilho e afunda-se levemente no dedo, sinal de que engordou um bocadinho desde o casamento. Vossa esposa abusa da maquilagem, a julgar pelas leves manchas de ruge na lapela do seu paletó. Suponho que ela não para em casa, pelo estado enxovalhado do vosso traje. Calixto ri à socapa, tapando a boca, ante o olhar irado de Noronha. Esteves prossegue:
— Não tem filhos; se os tivesse, haveria por aqui, emoldurada, a clássica fotografia de família. O motivo de não ter à vista o retrato da esposa é para não expô-la no ambiente perigoso de uma delegacia de polícia, porque ela é jovem e bonita. Pelo desgaste das bordas da última gaveta da escrivaninha, presumo que a abre e fecha raivosamente com frequência, o que me leva a deduzir que guarda lá uma foto da esposa, pois receia que ela o visite de surpresa e não encontre o porta retratos sobre a secretária. Aliás, porta-retratos que ela lhe deu de presente, já que o delegado não me parece dado a esses mimos. Quanto ao tamanho das cuecas, não é difícil de perceber. Conheço bastante anatomia pra notar que o vosso manequim é 38. Só uma cueca apertada explica o vosso constante mau humor. Disfarçando a surpresa, Noronha pigarreia, coça a barba por fazer e anuncia:
— Seu Tobias, não sei se devo aceitar a sua ajuda. Aqui, o senhor é só um civil que vende comida. Talvez eu consiga usá-lo como consultor ou auxiliar. Fico com o seu cartão e amanhã entro em contato. Calixto, acompanhe o senhor Esteves até a porta — diz ele, encerrando o assunto com um aperto de mão.
— Fico-lhe muito grato, senhor doutor delegado. Agradeço vossa imensa e infindável gentileza — despede-se Tobias Esteves, com uma ligeira reverência. Mello Noronha volta a sentar-se, sob o olhar de Getúlio Vargas no quadro oficial onipresente nas repartições públicas do país. Calixto retorna, rapidamente, ao gabinete, ansioso por conhecer a opinião do chefe. Antes que ele abra a boca, Noronha comanda:
— Calixto, preciso falar com o chefe de polícia de Lisboa. Quero conhecer a história desse português. Diga à telefonista que marque uma ligação internacional para amanhã, cedo. Hoje em dia, dá pra marcar com um dia só de antecedência. Não é incrível? Sabe-se lá onde é que isso vai parar.
— É verdade, mas, como diz minha mãe, depois que inventaram a máquina de costura, tudo é possível — filosofa o subalterno. — O que é que o senhor achou do homem, doutor?
— Por enquanto, só acho mesmo que ele coloca muito bem os pronomes
— responde Mello Noronha, não querendo reconhecer, perante o assistente, que ficou impressionado.

Leia também:

AS ESGANADAS (CAP. 4 e 5)

Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 23-30. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.

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