12.03.2011
JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAPÍTULO 2)
CAPÍTULO 2
Rio de Janeiro, verão de 31. Tobias Esteves desembarca do celebrado navio inglês Alcantara, da Royal Mail Steam Packet Company. Veio na segunda classe do luxuoso transatlântico graças aos seus contatos com o despachante da Royal Mail em Lisboa. Sendo um dos mais importantes da chamada Rota de Ouro e Prata, com uma velocidade média de dezessete nós, o Alcantara liga a Europa à América do Sul em quinze dias, transportando mais de dois mil passageiros. Entre os da primeira classe encontram-se dois membros da realeza, o príncipe de Gales e o duque de Kent, que seguem para Montevidéu, onde acontece a Exposição do Império Britânico.
Inspector da polícia portuguesa durante oito anos, Tobias Esteves é afastado do cargo quando confessa sua participação no falso suicídio do mago inglês Aleister Crowley. Crowley, um farsante de reputação internacional, vem a Lisboa para conhecer o poeta Fernando Pessoa, com quem se corresponde sobre horóscopos. Pessoa, fascinado pelo oculto, se encanta com os textos do Mestre Therion, pseudônimo do pretenso feiticeiro.
Crowley passa por momentos difíceis. Expulso da França em 1929, procurado pela polícia em Londres, o aventureiro resolve desaparecer. Escolhe Pessoa como cúmplice para esse fantástico efeito de ilusionismo. O empulhador chega a Lisboa em setembro de 1930 e é recebido no porto pelo poeta. Aleister sai como uma figura fantasmagórica do nevoeiro que encobre o cais. Envolto numa longa capa negra, parece gigantesco diante da minguada estatura do poeta.
No Hotel de l’Europe, Crowley explica a Pessoa por que tem de forjar seu suicídio: vários governos da Europa querem eliminá-lo por considerarem suas práticas de taumaturgia extremamente poderosas. Outros querem assassiná-lo porque receiam que ele seja um espião trabalhando para os alemães como agente duplo. Precisa desaparecer sem deixar vestígios.
Apaixonado por mistérios, Pessoa entusiasma-se pela farsa rocambolesca e quer ajudar na trama, porém não sabe como levá-la a efeito. Lembra-se, então, de Tobias Esteves. A amizade de Fernando Pessoa por Tobias vem das tardes infindáveis gastas nos cafés do Rossio discutindo sobre nada ou coisa nenhuma. Há anos ele é fascinado pela inteligência linear do detective, que soluciona os casos mais intrincados usando a lógica dedutiva simples. Seu pensamento não deixa margem a divagações abstratas ou emocionais. Para ele, o “ser ou não ser” do Hamlet é coisa de maricas.
Tem uma tremenda intuição. Quando desconfia de um suspeito, cria um silogismo capcioso durante o interrogatório: “Ouve lá. Nenhum ser humano é inocente. Tu és um ser humano. Logo, não és inocente; portanto, és culpado”. A tática confunde o interpelado. Se tiver praticado o crime, geralmente confessa. Tamanho é o afeto do poeta, que ele homenageia a objetividade do policial no poema “Tabacaria”, do heterônimo Álvaro de Campos: “... Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica...”.
Pessoa marca um encontro, para as quatro horas da tarde do dia seguinte, com Crowley e Tobias, no café Martinho da Arcada, no Terreiro do Paço. O detective sabe, com certeza, como criar um falso suicídio. A pontualidade não é o melhor atributo do inspector de polícia Tobias Esteves.
Meia hora depois das quatro ele surge do outro lado da praça. Vem radiante no seu passo de marreco, balançando o corpanzil. Tobias é gordo. Hábil cozinheiro, sua afeição por doces e outros quitutes se manifesta na circunferência. Coleciona receitas de todas as regiões do país. Nunca deixa de criar ocasiões para oferecer a si mesmo lautas refeições. O feitio rechonchudo do detective de estatura média engana os criminosos que tentam fugir subestimando-lhe a agilidade e a forma física. Aos vinte e oito anos, Esteves é fruto típico da raça lusitana: pele morena, fartos cabelos negros encaracolados que penteia para a esquerda e cuja rebeldia ele amansa com uma camada de brilhantina. Cultiva vastos bigodes de pontas reviradas, tradição familiar, e procura vestir-se com discrição. A única concessão feita à vaidade é o uso de um alfinete de gravata de ouro em forma de ferradura herdado do pai. O “alfacinha”, como são chamados os nascidos em Lisboa, acena para Pessoa com seu guarda-chuva e se aproxima do café.
São agora três em volta da mesa no Martinho da Arcada. Fernando Pessoa convocou seu amigo, o jornalista Ferreira Gomes, para ajudar no enredo do sumiço fictício. Bebericam aguardente Águia Real, a preferida do poeta. Pessoa saúda o detective como de hábito:
— Ah! Finalmente chegaste, ó Esteves sem metafísica!
Ao que o policial retruca com outro verso do poeta:
— Como também disseste, “a metafísica é uma consequência de estar maldisposto”... mas vamos ao que interessa. Por que esta convocação extraordinária?
Pessoa apresenta o mago ao detective e explica o problema. De início, Esteves não quer participar da charada. Como policial, teme pela repercussão do caso. Depois de muito relutar, acaba sendo convencido pelo amigo e sugere a melhor opção para executar o projeto. Nas rochas perto de Cascais, onde o mar se choca com violência, existe um buraco em que as águas formam um redemoinho perigoso. Segundo os guias turísticos, “ali o oceano se precipita rugindo”. O lugar é conhecido como “Boca do Inferno”. Esteves propõe que o jornalista Ferreira Gomes entregue à polícia um bilhete suicida que teria sido achado no local. Crowley adora a ideia. Escreve o bilhete de próprio punho, como se tivesse se matado pelo amor da amante.
Certamente os conjuradores não podiam imaginar a repercussão do caso. A notícia espalhada por Ferreira Gomes sai nos jornais de Lisboa, Paris e Londres. As primeiras páginas dos diários estampam o episódio com o título em letras
garrafais:
O MISTÉRIO DA BOCA DO INFERNO
Para dar maior credibilidade ao “suicídio”, o inspector Tobias Esteves, amador praticante de mergulho livre, dotado de um fôlego espantoso, propõe-se a vasculhar a área submarina e acaba sendo encarregado das investigações. Ao ressurgir das águas qual rotundo Netuno, Esteves afirma que nada encontrou. Crowley desaparece furtivamente pela fronteira espanhola e vai para a Alemanha. Fernando Pessoa é interrogado pela polícia e conta a verdade: tudo não passou de um embuste sugerido por Aleister Crowley, que continua vivo e gozando de boa saúde. Ferreira Gomes admite sua participação na fraude.
Diante da dimensão alcançada pelo episódio, Esteves declara seu envolvimento na tramoia. “Foi só uma grande piada”, diz ele ao chefe de polícia. O chefe não acha a menor graça. Para desgosto do poeta, o inspector Tobias Esteves é licenciado sine die.
Tobias passa a ser objeto de chacota de toda Lisboa. Ao chegar em casa, encontra bilhetes suicidas enfiados por baixo da porta: “Não posso viver sem ti!”; “Ó Esteves, já que não tenho a tua boca escaldante, vou me atirar na Boca do Inferno!”. Quando passa pelas ruas da Baixa, é a mesma coisa. “Lá vai o xuí galhofeiro!”, gritam, usando a gíria portuguesa para policial, e se escondem atrás das esquinas.
Cansado de tanto deboche, Tobias despede-se dos amigos e resolve ir tentar a vida no Brasil. Tem um tio que é dono de uma confeitaria no Rio de Janeiro. Nicolau Tocha-Tarelho é irmão solteiro de sua mãe e não tem herdeiros. Por várias vezes convidou o sobrinho para associar-se a ele. Agora, com a indenização recebida pelo seu afastamento da polícia, Esteves aceita o convite.
Seis anos depois, na primavera de 37, quando Getúlio Vargas decreta o Estado Novo fechando o Congresso, Tocha-Tarelho morre de um enfarte fulminante, deixando o negócio para o sobrinho. O espírito empreendedor de Tobias Esteves havia transformado a pequena loja de Botafogo na rede Regalo Luso, com dez filiais espalhadas pelos bairros e por todo o país. Tobias é agora um homem rico, não mais “o português da padaria”. Além da panificação, o que faz a diferença são os doces e pratos portugueses que ele passa a distribuir para os restaurantes e confeitarias da cidade. Doces esses que fazem as delícias das gordas do Rio de Janeiro.
Fim de tarde. Uma chuva miúda cai sobre a cidade. O furgão funerário segue pela rua Elpídio Boamorte. Os poucos passantes que ocupam as calçadas estranham a alta velocidade do automóvel. Afinal, é de supor que o principal ocupante daquele veículo não tenha mais pressa de chegar a algum compromisso. Da janela do albergue São Genésio, na esquina da Francisco Bicalho, uma senhora faz o sinal da cruz ao ver o rabecão passar.
Ignorando a eventual indiscrição dos transeuntes, Caronte acelera em direção ao enorme depósito no final da rua. Trata-se de um antigo matadouro comprado depois da morte dos pais. Há um compartimento especial, construído por ele. Ali, Caronte criou seu necrotério particular, equipado com todos os instrumentos necessários. Nas prateleiras, garrafas contendo líquidos juntam-se a facas e bisturis de diversos tamanhos. A mesa de metal usada para autópsias ocupa o espaço antes utilizado para o abate e esquartejamento dos animais. O local conserva os ganchos e carretilhas onde estes eram pendurados. No chão, sulcos feitos no cimento permitiam que o sangue escoasse durante a retirada das vísceras. Uma cozinha guarnecida de utensílios modernos e um piano Pleyel de cauda inteira arrematam a visão surrealista do ambiente.
Caronte arrasta a gorda adormecida do carro até a mesa, deixando o rastro adocicado do seu vômito. O clorofórmio provocou-lhe a náusea, e ela lançou uma mescla de glacês e chocolates. Com o guincho usado para mover os caixões, Caronte iça o peso morto até a mesa. Amarra o corpo estático da vítima com as correias de couro ali fixadas. Agora, tudo está pronto para satisfazer sua fantasia. Antes, deve acordá-la. É necessário que a obesa presencie tudo. Tira da prateleira um frasco de amônia e, destampando o vidro, aproxima-o das narinas de Cordélia.
Cordélia volta a si escutando a música que sai de um gramofone. Ela abre os olhos e não acredita no que vê: na sua frente, três mulheres gordas pendem dos ganchos do antigo matadouro. Seus rostos descarnados ainda denotam sinais de uma remota formosura. Todas estão nuas. Pelo tom esbranquiçado, parecem estar mortas há dias. A pele flácida desprende-se-lhes da carne. O processo de putrefação apenas começou, mas dos corpos emana um cheiro insuportável. As gordas lembram as carcaças dos animais abatidos. Um papel amassado em forma de flor sai de suas bocas. O grito horripilante de Cordélia morre, sem eco, nas paredes frias do local. Ela tenta se desvencilhar das correias que a prendem, mas seu esforço é inútil.
Caronte aumenta ao máximo o som da vitrola. O tema d’As quatro estações acaricia seus ouvidos. Ele pega alguma coisa numa das prateleiras e se acerca, ocultando o objeto atrás de si. Inclina-se até o ouvido de Cordélia e diz numa voz gutural, quase sussurrada:
— Gosta de música? É “Outono”; faz parte d’As quatro estações, de Vivaldi. Minha preferida. Faltava o violoncelo para completar o quarteto — acrescenta, apontando os três cadáveres. — Eu queria ser músico. Mamãe não deixou.
Caronte mostra o que trazia escondido às suas costas: um enorme funil de bico longo. Com uma das mãos, ele aperta o nariz da presa, obrigando-a a abrir a boca para respirar. Com a outra, enfia-lhe, pela boca, o bico do funil. O terror toma conta de Cordélia. Seus olhos esbugalhados quase saltam das órbitas. Caronte puxa de sob a mesa um garrafão de cinco litros contendo um líquido escuro e viscoso. Ele levanta o garrafão e exibe seu conteúdo à gorda.
— Musse à Fatia. Conhece? Quando é feita com folhas de gelatina, endurece e pode ser fatiada. Era como mamãe fazia. Aliás, a receita é dela. Eu prefiro a versão cremosa. Tenho certeza de que a senhorita vai adorar... — afirma o funesto, e derrama lentamente o conteúdo no bocal do funil. Cordélia vai engolindo avidamente para não sufocar.
Enquanto a cena se passa, Caronte declama a receita da sua mãe como se fossem versos de Camões:
— Coloque o chocolate em banho-maria Juntamente com a manteiga a derreter
Adicione o leite quente à iguaria. E o açúcar não se esqueça de acrescer. Dos ovos separar a clara e a gema Batendo as claras postas em castela A gelatina não será problema Dissolvida e misturada na tigela... O bardo tenebroso segue a sua litania, recitando em êxtase os ingredientes. A gelatina endurece no estômago da gorda esganada.
Leia também:
AS ESGANADAS (CAPÍTULO 3)
Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 16-22. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.
No comments:
Post a Comment
Thanks for your comments...