12.03.2011

JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAPITULO 1)



CAPÍTULO 1

A gorda é a última freguesa a deixar o tradicional chá da tarde na confeitaria Colombo. Segue pela Gonçalves Dias em direção à rua do Ouvidor. Sua bata branca é amarelada pela infinita quantidade de molhos e caldos nela derramada. Farelos antiquíssimos apegam-se como náufragos desesperados aos babados da blusa. A gorda é bela. Bela e voraz. À porta da confeitaria, ainda segura meia fatia de torta de morango na mão esquerda, enquanto a direita envolve um enorme éclair de chocolate. A gorda gruda-se àquelas guloseimas como se delas dependesse sua vida. Ela é gorda, bela, voraz e gulosa.
Um dilema a aflige à medida que avança pela calçada estreita demais para ela: deveria terminar primeiro a torta ou, antes, abocanhar o éclair? Seus pequeninos olhos porcinos, indecisos, olham para os acepipes presos firmemente entre seus dedos roliços. Ela é gorda, bela, voraz, gulosa e indecisa. Finalmente, trêmula e ofegante, numa antevisão gozosa dos prazeres que as ávidas papilas da sua língua sentiriam, a gorda atocha na boca o pedaço de torta. Mastiga e engole automaticamente, num movimento simultâneo aperfeiçoado por décadas de prática. Limpa a mão na saia cinza livrando-se dos restos do creme chantilly. As listas brancas sobre a saia formam a imagem grotesca de um quadro abstrato. Ela é gorda, bela, voraz, gulosa, indecisa e lambuzona.
A gorda chega à rua Primeiro de Março, agarrando o gigantesco éclair de chocolate com as duas mãos, como se fosse um imenso falo negro. Antes que desfira a primeira dentada na cobiçada iguaria, sua bisbilhotice é atiçada por um furgão branco fosco estacionado quase na esquina da rua. O que alerta a atenção da gorda são os diversos doces e bombons expostos numa grande prateleira que sai do veículo, e o cartaz empunhado por um homem ao lado onde se lê em letras garrafais:

DEGUSTAÇÃO GRÁTIS! PROVE OS SABOROSOS PETISCOS DA PÂTISSERIE DOCES FINOS E AJUDE-NOS A ESCOLHER. NENHUMA EXPERIÊNCIA NECESSÁRIA.

Ela enfia na boca o éclair de uma só vez e se aproxima daquele Eldorado gastronômico sem saber que se avizinha da sua última tentação.

O homem é magro. Mais do que magro. Esquálido, seco, macilento. Serviria perfeitamente de modelo para uma caricatura da Morte, porém sua ligação com Tânatos superava o traço de qualquer desenhista. Herdara do pai a funerária Estige, denominação do rio que separava os mortos dos vivos na mitologia grega. Sua mãe, Odília Barroso, possuidora de um senso de humor discutível, o batizara de Caronte, como o barqueiro encarregado da travessia das almas. O pai, Olavo Eusébio, concordara. Olavo sujeitava-se a todos os caprichos da mulher.
Localizada à rua Real Grandeza, perto do cemitério São João Batista, a Estige é, sem dúvida, a mais prestigiosa da cidade. Seus carros sofisticados e caixões de luxo conferem status a simples exéquias. As salas especiais para velórios rivalizam com os suntuosos salões de baile do Rio de Janeiro. Caronte é alto, muito alto. Vestido de negro, com cabelos longos e ralos, ele parece ainda mais emaciado. De uma palidez cadavérica, sua pele fenecida confunde-se com a dos defuntos que costuma transportar. Lavara e vestira seu primeiro cadáver aos treze anos.
Quando Caronte completou dezessete, o pai, contrariando a esposa pela única vez na vida, o enviou à Alemanha. Durante um ano, ele estudou com Friedrich Berminghaus, professor do Colégio Real de Química e diretor do Departamento de Anatomia da Universidade de Munique. Lá, aprendeu tudo sobre tanatopraxia, a moderna técnica de embalsamamento que preserva a aparência natural do corpo, minimiza as alterações fisionômicas e permite que o velório se estenda além das tradicionais vinte e quatro horas.
Berminghaus fora discípulo de August von Hofmann, descobridor do formaldeído. Esse aprendizado teve seu preço. Na ânsia de aperfeiçoar-se, Caronte se descuidava no uso do formol. Trabalhava horas a fio, obsessivamente, manipulando sem a proteção necessária os frascos. Os produtos causavam-lhe feridas na pele e provocavam um prurido intermitente. Berminghaus o prevenira amiúde do perigo:
— Vorsicht, Caronte! Das ist sehr gefährlich!
— Kein Problem, Herr Doktor...
Como desde a infância Caronte tinha dentes, cabelos e unhas frágeis, e manchas pardas espalhadas pelo corpo, as quais ocultava com o uso de camisas de gola alta e mangas longas, ele não dava muita atenção às alterações causadas pela química. Depois de terminar o curso, Caronte voltou para o Rio. Trouxe com ele as mazelas que o acompanhariam para sempre: chagas no corpo, irritação nas mucosas e distúrbios no sistema nervoso. Não se importava. Para ele, a morte era um meio de vida.
A funerária Estige passara de pai para filho desde a Guerra do Paraguai. Seu bisavô enriquecera devido a um contrato feito com o governo, sem licitação, intermediado pela namorada de um funcionário ligado ao gabinete do Ministério da Guerra. Tal contrato cedia exclusividade para o funeral dos soldados não identificados mortos no conflito. O escândalo da negociata fora abafado quando a imprensa descobriu que havia um número maior de enterros do que de combatentes mortos.
Olavo Eusébio Barroso se enforcou no lustre da sala de jantar no dia em que completou cinquenta anos. Envergava a mesma sobrecasaca antiga das cerimônias fúnebres. Não deixou carta ou bilhete, mas Caronte sabia que o suicídio era o resultado de anos sofrendo passivamente o domínio autoritário da mulher.
Caronte queria se livrar da funerária e ingressar no recém-fundado Conservatório Brasileiro de Música. Antes de ser obrigado a participar dos negócios da família, seu sonho de infância era ser maestro. Aprendeu a tocar piano de ouvido numa velha pianola encostada no porão de casa e sabia de cor a obra dos grandes clássicos. Na Alemanha, assistia a todos os concertos da Münchner Philharmoniker e adorava as óperas de Wagner no Festival de Bayreuth, cidade próxima a Munique. Quando participou sua intenção à mãe, Odília olhou-o com desprezo e respondeu lacônica: “Nem pensar. Gastamos muito dinheiro na sua educação”.
Caronte odiava a mãe. Destilava por ela um ódio figadal desde a sua festa de aniversário de dez anos, quando, em vez do bolo, ela pôs na sua frente um prato com meio mamão enfeitado com as velas. O menino famélico soprou e odiou. Ao contrário dele, Odília era gorda. Muito gorda. Imensa. Parou de se pesar quando sua compleição obesa, de um metro e setenta de altura, acusou cento e quarenta quilos numa balança de armazém. Seu rosto era lindo, de uma beleza clássica.
Começara a engordar depois da gravidez do único filho. Não fosse o excesso de peso, seu corpo suscitaria a inveja das antigas amigas do liceu. A mãe tinha medo de que seu filho engordasse. Um pânico desnecessário, porque Caronte herdara as características físicas do pai, magro como ele. O metabolismo acelerado do menino queimava as tortas e pastéis deglutidos às escondidas antes mesmo que ele terminasse de ingeri-los. Apesar dos apelos inúteis do pai, nada convencia Odília. Ela mantinha o filho sob dieta rigorosa. Cada prato minguado de legumes que a tirana lhe empurrava goela abaixo açulava o ódio que ele nutria pela mãe obesa. O que agravava essa tortura eram os cardápios portugueses que ela mesma planejava com esmero, usando receitas originais de sua avó natural da região do Minho. Odília costumava dizer ao prepará-los: “É o meu passatempo favorito. Melhor que fazê-los, só comê-los!”, e desfechava uma gargalhada assustadora, sacudindo seu triplo queixo em cascata.
Foi num desses dias, ao ver a mãe aprontando uma bacia de Ovos Moles d’Aveiro, que Caronte decidiu matá-la. A morte de Odília foi considerada acidental. Na verdade, o “acidente” havia sido provocado por um empurrão do filho. O corpo fora encontrado no chão liso da cozinha como se ela tivesse escorregado e batido com a base do crânio na quina do forno, quando preparava um imenso Pudim Abade de Priscos. Antes de chamar a polícia, Caronte debruçou-se sobre o fogão e sorveu avidamente a calda caramelada do pudim mesclada ao sangue da mãe. Um espasmo sacudiu todo o seu corpo e a nódoa escura que se alargava na frente das suas calças revelava o fruto de um orgasmo incontrolável.
Um dia, Caronte vê uma gorda na rua lambendo um cone de sorvete. O rosto lindo lembra-lhe a mãe. Servindo-se da ponta da língua como um lagarto, a gorda desempenha movimentos ágeis e lascivos em torno da bola gelada. Com perícia, ela evita que as gotas escorram pelos dedos gorduchos. É quando Caronte percebe que jamais se livrará da mãe, a não ser que a mate sempre, sempre. Resolve assassiná-la novamente em cada gorda que encontrar. A partir de então, ele só vive para vê-la morrer. Começa a temporada de caça às gordas.
Caronte é agora rico e independente. Pode fazer o que quiser do seu tempo. Descobre que é dotado de ouvido absoluto, a capacidade de identificar cada uma das notas da escala cromática. Estuda música e aprende a tocar, com facilidade, todos os instrumentos de corda. O piano é o seu predileto. Para que a chacina das vítimas relembrasse de forma indelével a morte de Odília, atrairia cada uma delas com as receitas portuguesas da mãe. Pratica intensamente, em segredo, até se transformar num confeiteiro e mestre-cuca melhor que muitos profissionais do ramo. Pela primeira vez na vida, come.
Um dos carros funerários exclusivos da sua agência é de 1931 e tem uma característica original. Caronte é o único no Brasil a ter esse modelo. A inovação consiste numa larga porta dupla lateral para a entrada do caixão, a qual não se dá mais pela porta traseira. Uma prancha móvel sobre trilhos gira para fora, fazendo uma curva em direção à calçada, o que facilita a colocação do ataúde sem expor os carregadores ao trânsito. É sobre essa prancha que Caronte dispõe as iscas irresistíveis.

Seu nome é Cordélia e não Gordélia, como a chamavam as coleguinhas do primário. Fartavam-se de rir do trocadilho com a crueldade inocente típica das crianças. Cordélia Casari tem trinta e cinco anos e é gulosa desde menina. Sua avó italiana costumava dizer durante as refeições, quando ela se empapuçava de nhoque: “Não seja esganada, menina! Che pecatto, così bella e così ghiottona...”. Cordélia vem correndo com a rapidez que seus passos curtos permitem. As coxas roliças roçam uma na outra prenunciando uma assadura incômoda. Ela não liga. Não é a primeira vez que isso acontece. Depois, em casa, tratará com unguento sua pele em carne viva.
O rosto habitualmente sisudo de Caronte se abre num largo sorriso. Parece o riso morto das máscaras de Carnaval. A boca se rasga de orelha a orelha, deixando à mostra dentes perfeitos e de uma alvura excessiva, características peculiares às falsas dentições. Sua voz é sedutora e aveludada quando ele convida: — Será que a senhorita nos daria a honra de submeter os nossos doces ao seu delicado paladar? É grátis, sirva-se à vontade...
A gorda, tomada por um fervor quase religioso, se acerca da prateleira de doces. Chega-se aos pulos, como um passarinho seduzido pela serpente. Sua indecisão se manifesta de novo:
— São tantos, meu Deus, e tão lindos!
Ela se inclina para cheirá-los, as narinas pulsando de prazer. A rua está deserta, não há por que se acanhar. Cordélia lambe o chantilly que cobre uma torteleta de morango. É nesse instante que Caronte a derruba sobre a prateleira esmigalhando os doces. Antes que ela se dê conta, ele tapa seu nariz repleto de creme com o lenço empapado em clorofórmio. Em segundos, ele cobre o corpo inerme com a mortalha que traz dobrada no banco da frente, guarda o cartaz na bolsa do carro e empurra a presa desmaiada para dentro do furgão. A carga gira nos trilhos como os bondes nos terminais. Ele senta-se ao volante e acelera a limusine mortuária, sinistro como o Caronte mitológico, singrando com sua carga pelo sombrio rio Estige.

Leia também:

AS ESGANADAS (CAPÍTULO 2)

São 33 capítulos e o Epílogo

Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 9-16. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.

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