12.29.2011

ZUMBI TINHA ESCRAVOS


Zumbi, o maior herói negro do Brasil, o homem em cuja data de morte se comemora em muitas cidades do país o Dia da Consciência Negra, mandava capturar escravos de fazendas vizinhas para que eles trabalhassem forçados no Quilombo dos Palmares. Também sequestrava mulheres, raras nas primeiras décadas do Brasil, e executava aqueles que quisessem fugir do quilombo.
Essa informação parece ofender algumas pessoas hoje em dia, a ponto de preferirem omiti-la ou censurá-la, mas na verdade trata-se de um dado óbvio. É claro que Zumbi tinha escravos. Sabe-se muito pouco sobre ele - cogita-se até que o nome mais correto seja Zambi -, mas é certo que viveu no século XVII. E quem viveu próximo do poder no século XVII tinha escravos, sobretudo quem liderava algum povo de influência africana.
Desde a Antiguidade, os humanos guerrearam, conquistaram escravos e muitas vezes venderam os que sobravam. Até o século XIX, em Angola e no Congo, de onde veio a maior parte dos africanos que povoaram Palmares, os sobás se valiam de escravos na corte e invadiam povoados vizinhos para capturar gente. O sistema escravocrata só começou a ruir quando o Iluminismo ganhou força na Europa e nos Estados Unidos. Com base na ideia de que todos as pessoas merecem direitos iguais, surgiu a Declaração dos Direitos da Virgínia, de 1776, e os primeiros protestos populares contra a escravidão, na Inglaterra. Os abolicionistas apareceram um século depois de Zumbi e a 7 mil quilômetros da região onde o Quilombo dos Palmares foi construído.
É difícil acreditar que, no meio das matas de Alagoas, Zumbi tenha se adiantado ao espírito humanista europeu ou previsto os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa. É ainda mais difícil quando consultamos os poucos relatos de testemunhas que conheceram Palmares. Elas indicam o esperado: o quilombo se parecia com um povoado africano, com hierarquia rígida entre reis e servos. Os moradores chamavam o lugar de Ngola Janga, em referência aos reinos que já existiam na região do Congo e de Angola. Significa ”novo reino” ou ”novo sobado”.
Ganga Zumba, tio de Zumbi e o primeiro líder do maior quilombo do Brasil, provavelmente descendia de imbangalas, os ”senhores da guerra” da África Centro-Ocidental. Os imbangalas viviam de um modo similar ao dos moradores do Quilombo dos Palmares. Guerreiros temidos, eles habitavam vilarejos fortificados, de onde partiam para saques e sequestros dos camponeses de regiões próximas. Durante o ataque a comunidades vizinhas, recrutavam garotos, que depois transformariam em guerreiros, e adultos para trocar por ferramentas e armas com os europeus.
Algumas mulheres conquistadas ficavam entre os guerreiros como esposas. ”As práticas dos imbangalas tinham o propósito de aterrorizar a população em geral e de encorajar as habilidades marciais - bravura na guerra, lealdade total ao líder militar e desprezo pelas relações de parentesco”, afirma o historiador Americano Paul Lovejoy. ” Essas práticas incluíam a morte de escravos antes da batalha, canibalismo e infanticídio.” Tanta dedicação a guerras e sequestros fez dos imbangalas grandes fornecedores de escravos para a América. Lovejoy estima que três quartos dos cerca de 1,7 milhão de escravos embarcados entre 1500 e 1700 vieram da África Centro-Ocidental, sobretudo do sul do Congo. Como a aliança com os portugueses às vezes se quebrava, os guerreiros também acabavam sendo escravizados.
Provavelmente foi assim que os pais ou avôs de Zumbi chegaram ao Brasil. Entre os soldados que lutaram para derrubar o Quilombo de Palmares, o que mais impressionava, além da força militar dos quilombolas, era o modo como eles se organizavam politicamente. Segundo o relato do capitão holandês João Blaer, que lutou contra o quilombo em 1645, todos os quilombolas eram [...] obedientes a um que se chama o Ganga Zumba, que quer dizer Senhor Grande; a este têm por seu rei e senhor todos os mais, assim naturais dos Palmares como vindos de fora; tem palácio, casas de sua família, é assistido de guardas e oficiais que costumam ter as casas reais. É tratado com todos os respeitos de rei e com todas as honras de senhor. Os que chegam à sua presença põem os joelhos no chão e batem palmas das mãos em sinal de reconhecimento e protestação de sua excelência; falam-lhe ”majestade”, obedecem-lhe por admiração.
Não há relatos de que os moradores de Palmares cometessem infanticídio ou canibalismo, mas diversos falam de ataques a camponeses, sequestros de homens e mulheres e ainda de vilarejos fortificados. Para obter escravos, os quilombolas faziam pequenos ataques a povoados próximos. ”Os escravos que, por sua própria indústria e valor, conseguiam chegar aos Palmares, eram considerados livres, mas os escravos raptados ou trazidos à força das vilas vizinhas continuavam escravos”, afirma Edison Carneiro no livro 'O Quilombo dos Palmares', de 1947.
Destruição do Quilombo de Palmares
No quilombo, os moradores deveriam ter mais liberdade que fora dele. Mas a escolha em viver ali deveria ser um caminho sem volta, o que lembra a máfia hoje em dia. ”Quando alguns negros fugiam, mandava-lhes crioulos no encalço e uma vez pegados, eram mortos, de sorte que entre eles reinava o temor”, afirma o capitão João Blaer. ”Consta mesmo que os palmaristas cobravam tributos - em mantimentos, dinheiro e armas - dos moradores das vilas e povoados. Quem não colaborasse poderia ver suas propriedades saqueadas, seus canaviais e plantações incendiados e seus escravos sequestrados”, afirma o historiador Flávio Gomes no livro 'Palmares'.
Não dá para ter certeza de que a vida no quilombo era assim mesmo, mas os vestígios e o pensamento da época levam a crer que sim. Apesar disso, Zumbi ganhou (um retrato muito diferente por historiadores marxistas das décadas de 1950 a 1980. Décio Freitas, Joel Rufino dos Santos e Clóvis Moura fizeram do líder negro do século XVII um representante comunista que dirigia uma sociedade igualitária. Para eles, enquanto fora do quilombo predominava a monocultura de cana-de-açúcar para exportação, faltava comida e havia classes sociais oprimidas e opressoras (tudo de ruim), em Palmares não existiam desníveis sociais, plantavam-se alimentos diversos e por isso havia abundância de comida (tudo de bom). ”Nesta bibliografia de viés marxista há um esforço em caracterizar Palmares como a primeira luta de classes na História do Brasil”, afirma a historiadora Andressa Barbosa dos Reis em um estudo de 2004.
A imaginação sobre Zumbi foi mais criativa na obra do jornalista gaúcho Décio Freitas, amigo de Leonel Brizola e do ex-presidente João Goulart. No livro 'Palmares: A Guerra dos Escravos', Décio afirma ter encontrado cartas mostrando que o herói cresceu num convento de Alagoas, onde recebeu o nome de Francisco e aprendeu a falar latim e português. Aos 15 anos, Atendendo ao chamado do seu povo, teria partido para o quilombo. As cartas sobre a infância de Zumbi teriam sido enviadas pelo padre Antônio Melo, da vila alagoana de Porto Calvo, para um padre de Portugal, onde Décio as teria encontrado. Ele nunca mostrou as mensagens para os historiadores que insistiram em ver o material.
A mesma suspeita recai sobre outro livro seu, 'O Maior Crime da Terra'. O historiador Cláudio Pereira Elmir procurou por cinco anos algum vestígio dos registros policiais que Décio cita. Não encontrou nenhum. ”Tenho razões para acreditar que ele inventou as fontes e que pode ter feito o mesmo em outras obras”, disse-me Cláudio no fim de 2008. O nome de Francisco, pura cascata de Décio Freitas, consta até hoje no Livro dos Heróis da Pátria da Presidência da República.
Também se deve à historiografia marxista o fato de Zumbi ser muito mais importante hoje em dia do que Ganga Zumba, seu antecessor. Enquanto o primeiro ficou para a história como herói da resistência do quilombo, seu tio faz o papel de traidor. Essa fama se deve ao acordo de paz que fez com os portugueses em 1678. Ganga Zumba, recebido em Recife quase como chefe de Estado, prometeu ao governador de Pernambuco mudar o quilombo para um lugar mais distante e devolver os moradores que não tivessem nascido em Palmares.
Em troca, os portugueses se comprometeriam a deixar de atacar o grupo. Os historiadores marxistas acharam a promessa de entregar os negros uma traição, que Zumbi teria se recusado a levar adiante. ”A ele [Zumbi] foram associados os valores da guerra, da coragem, do destemor e principalmente a postura de resistir continuamente às forças coloniais”, conta a historiadora Andressa dos Reis. ”Esta visão de Freitas foi a imagem do Quilombo e de Zumbi que se cristalizou nas décadas de 1980 e 1990.” Os poucos documentos do período não são o bastante para dizer que Zumbi agiu diferente de Ganga Zumba e foi mesmo contra o acordo de paz. Se foi, pode ter agido contra o próprio quilombo, provocando sua destruição. Acordos entre comunidades negras e os europeus eram comuns na América Latina - e nem sempre os quilombolas cumpriram a promessa de devolver escravos.
No Suriname, o quilombo dos negros chamados saramacás respeitou o acordo de paz com os holandeses. Esse grupo, que o historiador Americano Richard Price considera a ”experiência mais extraordinária de quilombos no Novo Mundo”, conseguiu manter o povoado protegido dos ataques europeus. Tem hoje 55 mil habitantes.
Em 1685, na tentativa de fazer um acordo de paz com o quilombo, o rei de Portugal mandou uma mensagem carinhosa para Zumbi. Um trecho: ”Convido-vos a assistir em qualquer estância que vos convier, com vossa mulher e vossos filhos, e todos os vossos capitães, livres de qualquer cativeiro ou sujeição, como meus leais e fiéis súditos, sob minha real proteção”.
Hoje em dia relacionamos negros e escravos porque a escravidão africana foi a última. Essa relação tem uma história muito recente. Houve um tempo em que escravos lembravam brancos de olhos azuis.

O SONHO DOS ESCRAVOS ERA TER ESCRAVOS

O livro 'Mulheres Negras do Brasil', de Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil, foi lançado em 2007 com patrocínio do Banco do Brasil e da Petrobras. Um capítulo da obra trata das mulheres negras livres de Minas Gerais do século XVIII. O livro reúne belas imagens da época, mas deixa de fora uma informação essencial. Nas vinte páginas sobre as negras mineiras, não há sequer uma menção ao fato mais corriqueiro daquela época: assim que conseguiam economizar para comprar a alforria, o próximo passo de muitas negras era adquirir escravos para si próprias.
A corrida do ouro de Minas Gerais do século XVII fez pequenas vilas rurais se transformarem em cidades efervescentes. Era um fenômeno poucas vezes visto no Brasil. Até então, mesmo as capitais das províncias eram povoados bucólicos que funcionavam como centros administrativos das colônias ao redor. Já as ruas de Mariana, Diamantina, Sabará e Vila Rica, atual Ouro Preto, ficaram de repente apinhadas de aventureiros e mineiros enriquecidos. Depois de duzentos anos procurando, Portugal tinha enfim encontrado ouro em larga escala no Brasil. Entre 1700 e 1760, um em cada quatro portugueses veio ao Brasil, quase todos para Minas Gerais.
O ouro que esses aventureiros descobriam fazia as cidades vibrar. Hospedarias lotadas, tabernas e armazéns se multiplicavam, vendedores disputavam espaço nas ruas oferecendo porcos, galinhas, frutas, doces e queijo. Sapateiros, ferreiros, alfaiates, tecelões e chapeleiros enriqueciam. As irmandades religiosas faziam festas e competiam para construir a igreja mais bonita. Nesse novo ambiente urbano, havia possibilidades para muita gente, inclusive escravos e escravas.
A mando de seus donos, as escravas costumavam vender doces e refeições nas lavras de ouro para os garimpeiros famintos. Quando ultrapassavam a venda que o senhor esperava, faziam uma caixinha para si próprias. Com alguns anos de economia, conseguiam juntar o suficiente para comprar a carta de alforria, tornando-se “forras”. Também acontecia de ganharem a liberdade por herança, quando o dono morria ou voltava para Portugal. Nessas ocasiões, eram ainda agraciadas com alguns bens do senhor falecido. Em 1731, a ex-escrava Lauriana ganhou do testamento do seu antigo dono o sítio onde moravam. A mesma coisa fez o português Antônio Ribeiro Vaz morto em 1760 na cidade de Sabará. Libertou seus sete escravos e legou a eles a casa e todos os bens que possuía.
Em liberdade, essas Chicas da Silva tinham muito mais tempo e ferramentas para ganhar dinheiro. Contando com escravos como mão de obra barata, algumas fizeram fortuna. A angola Isabel Pinheira morreu em 1741 deixando sete escravos no testamento, que deveriam ser todos alforriados quando ele morresse. Na década de 1760, a baiana Bárbara de Oliveira tinha vários imóveis, jóias, roupas de seda e nada menos que 22 escravos. Era uma fortuna para a época. Apesar de serem livres e ricas, as negras forras não viraram senhoras da elite: continuaram carregando o estigma da cor. Havia uma compensação. Elas desfrutavam de uma autonomia muito maior que as mulheres brancas. Enquanto as “donas” ficavam em casa debaixo das decisões do marido e cuidando de sua reputação, as negras circulavam na rua, nas lavras e pelas casas, conversando com quem quisessem e tocando a vida independentemente de maridos.
No livro 'Escravos e Libertos nas Minas Gerais do Século XVIII', o historiador Eduardo França Paiva mostra mais um caso interessante: o da negra Bárbara Gomes de Abreu e Lima. Dona de um casarão em frente à Igreja Matriz de Sabará, ela tinha sete escravos e parcerias comerciais com empresários e políticos. Seu testamento indica que ela revendia ouro e controlava negócios em diversas cidades de Minas e da Bahia. A herança incluía dezenas de jóias e artefatos de metais preciosos, com cordões, corações, argolas, brincos, ”tudo de ouro”, além de ”quatro colheres de prata pesando oito oitavas cada uma, quatro garfos de prata e uma faca com cabo de prata”, saias de seda e vestidos. Nem todas as negras tiveram tantas riquezas, direitos e relações quanto Bárbara. Mas, como diz o historiador Eduardo Paiva, ela ”representava, certamente, um modelo a ser seguido por outras escravas libertas”.
Donas de escravos como qualquer outro senhor colonial, essas negras forras também praticavam atos cruéis que marcaram a escravidão brasileira. Uma das piores coisas que poderia acontecer para escravos da mesma família era serem separados e vendidos para cidades diferentes. Essa prática frequentemente resultava em fugas e rebeliões nas senzalas. A negra forra Luísa Rodrigues não se importou com isso em seu testamento, de 1753. Consta ali sua decisão de vender dois dos quatro filhos de sua escrava Leonor. Também concedeu alforria para um dos outros dois filhos da escrava, provavelmente querendo compensar o fato de ter separado a família.
Negros agiam assim por todo o país, e não só as mulheres. ”Em Campos dos Goytacazes [Rio de Janeiro], no final do século XVIII, um terço da classe senhorial era ’de cor’. Isso acontecia na Bahia, em Pernambuco etc.”, escreveu o historiador José Roberto Pinto de Góes. O historiador norte americano Bert Barickman, analisando os registros de posses de escravos em vilas rurais ao redor de Salvador, descobriu que negros eram uma parcela considerável dos proprietários de escravos.
No vilarejo de São Gonçalo dos Campos, pardos e negros alforriados tinham 29,8 por cento de todos os cativos. Em Santiago do Iguape, 46,5 por cento dos escravos eram propriedade de negros, que, diante dos brancos, eram minoria da população livre. ”Embora possuíssem geralmente apenas um número reduzido de cativos, esses não brancos eram, ainda assim, senhores de escravos”, diz o historiador Barickman.
Também houve casos de escravos que se tornaram traficantes, como mostra Zé Alfaiate no começo deste capítulo. Entre os negros que depois de livres voltaram para a terra natal, formando a comunidade de ”brasileiros” no Daomé, hoje Benin, vários passaram a vender gente. O africano João de Oliveira voltou à África em 1733, depois de adquirir a liberdade na Bahia. Abriu dois portos de venda de escravos, pagando do próprio bolso o custo das instalações para o embarque dos negros capturados. O ex-escravo Joaquim d’Almeida tinha casa no Brasil e na África. Cristão e enriquecido pelo tráfico, financiou a construção de uma capela no centro da cidade de Aguê, no Benin.
Não há motivo para ativistas do movimento negro fechar os olhos aos escravos que viraram senhores. Ninguém hoje deve ser responsabilizado pelo que os antepassados distantes fizeram séculos atrás. Negras forras e ricas podem até ser consideradas heroínas do movimento negro, personagens que ativistas deveriam divulgar com esforço. Para um brasileiro descendente de africanos, é muito mais gratificante (além de correto) imaginar que seus ancestrais talvez não tenham sido vítimas que sofreram caladas.
Tratar os negros apenas como vítimas indefesas, como afirmou o historiador Manolo Florentino, ”dificulta o processo de identificação social das nossas crianças com aquela figura que está sendo maltratada o tempo todo, sempre faminta, maltrapilha”. É uma pena que historiadores comprometidos com a causa negra ou patrocinados por estatais escondam esses personagens.

Por Leandro Narloch no livro 'Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil',Editora Leya, São Paulo, 2009. p.45-56. Editado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.




Sobre o Livro:
É hora de jogar tomates na historiografia politicamente correta. Este guia reúne histórias que vão diretamente contra ela. Só erros das vítimas e dos heróis da bondade, só virtudes dos considerados vilões. Alguém poderá dizer que se trata do mesmo esforço dos historiadores militantes, só que na direção oposta. É verdade. Quer dizer, mais ou menos. Este livro não quer ser um falso estudo acadêmico, como o daqueles estudiosos, e sim uma provocação. Uma pequena coletânea de pesquisas históricas sérias, irritantes e desagradáveis, escolhidas com o objetivo de enfurecer um bom número de cidadãos.

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