1.18.2012

PRESENÇA ESCANDINAVA NO BRASIL ANTES DE CABRAL



Ao longo do século XVIII, em diversos países, intensificou-se a criação de academias, consagradas ao estudo da história nacional e ao desenvolvimento da cultura científica. Este movimento intelectual conheceu sua plenitude nos anos oitocentos, quando tais instituições começaram a se voltar para o exterior, trocando informações e publicações, atravessando fronteiras e até mesmo continentes. Entre algumas dessas sociedades científicas, entretanto, os contatos foram além do intercâmbio formal de conhecimentos, revelando a existência de interesses comuns mais abrangentes. Tal foi o caso do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a Sociedade Real dos Antiquários do Norte, da Dinamarca.
Entre ambas as entidades, além da troca de publicações, houve uma permuta contínua de correspondências e a divulgação, de fato, de trabalhos científicos traduzidos e impressos em revistas especializadas, tanto no Rio de Janeiro, quanto em Copenhagen. Afora isso, os monarcas dos dois países, pessoalmente empenhados na promoção das ciências, mostraram-se interessados em fomentar essa parceria intelectual. O Imperador D.Pedro II foi acolhido como Membro Fundador do grêmio dinamarquês. A associação carioca, por sua vez, retribuiu à deferência e fez do Rei Christian VIII um dos seus Presidentes de Honra. Mas que outros fatores teriam aproximado as duas agremiações, fisicamente tão distantes? Que objetivos comuns incrementaram esse relacionamento? Pretendemos, nas linhas que se seguem, recuperar as origens das relações entre o Instituto Histórico e a Sociedade Real, sua trajetória, bem como tecer algumas considerações acerca das possíveis afinidades que teriam contribuído para o seu estreitamento.
A Sociedade Real dos Antiquários do Norte foi instituída em 26 de janeiro de 1825. Segundo os seus estatutos, estava voltada para a descoberta e a divulgação de “...tudo que possa esclarecer a Antiguidade do Norte”. Seu fundador e principal mentor, Carl Christian Rafn, estabeleceu uma extensa rede de relações no mundo inteiro, voltado especialmente para as localidades onde se poderia pressupor uma antiga presença escandinava. Pioneiro no estudo da língua islandesa antiga e da História dos povos escandinavos, Rafn exerceu o cargo de Secretário da Sociedade desde a sua criação, desenvolvendo atividades muito abrangentes: desde a tradução e divulgação de vários manuscritos antigos, até o estabelecimento de contatos científicos internacionais. Ocupou-se, também, da correspondência e da redação de duas revistas especializadas: uma nacional e a outra internacional, esta última editada nas línguas francesa, alemã e inglesa.
A Sociedade Real patrocinou, ainda, uma série de publicações que ganharam grande repercussão no exterior demonstrando, pela primeira vez, a extensão geográfica dos antepassados nórdicos nas Américas, na Rússia e no Oriente. Após o desaparecimento de Carl Christian Rafn, em 1864, a entidade dinamarquesa passou a direcionar-se para os temas e problemas nacionais, deixando de lado a ênfase dada por seu idealizador nas relações culturais com o estrangeiro. Instituição longeva, mantém-se em funcionamento, entretando, até os nossos dias.
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - o IHGB - em 21 de outubro de 1838, no Rio de Janeiro, por um grupo de políticos e letrados, tendo como propósitos “... coligir, metodizar, publicar e arquivar os documentos necessários para a história e geografia do Brasil”. Em síntese, tratava-se de dotar o país de Memória e escrever a sua História. Atividades, aliás, a que o Instituto Histórico se dedicou integralmente, ao longo do século passado. Para divulgar suas pesquisas documentais e as obras dos associados, o Instituto, desde o seu primeiro ano de atividades, vem imprimindo um periódico especializado, a Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, doravante denominado simplesmente de Revista do IHGB. Esta publicação, que completou juntamente com o IHGB cento e cinquenta e oito anos de existência, é considerada uma das mais antigas revistas de História do ocidente, devido à sua periodicidade ininterrupta.
As primeiras décadas do século XIX constituíram um período difícil para ambos os países em questão. O Império brasileiro, independente de Portugal desde 1822, dava os seus primeiros passos, atravessando uma conjuntura adversa, governado por regentes, desde a abdicação do Pedro I em 1831. Neste contexto, a fundação do Instituto deve ser entendida como um acontecimento político e cultural da maior relevância, capaz de contribuir tanto para a preservação da unidade nacional, quanto para o fortalecimento do regime. No que se refere à Dinamarca, a sua participação desastrada nas Guerras Napoleônicas, ao lado da França, acarretara todas as conseqüências políticas e econômicas da derrota, salientando-se a perda da Noruega em 1814, o efeito mais duramente lamentado. Além dos esforços, comuns a todos os países naquela época, de estabelecer as raizes nacionais, os letrados dinamarqueses tiveram, ainda, uma problemática particular: a tentativa de resgatar a grandeza anterior do reino.
Tomando de empréstimo a expressão cunhada por Pierre Nora, podemos afirmar que tanto o Instituto Histórico quanto a Sociedade Real seriam, por excelência, “lieux de mémoire”. Nos dois casos, as entidades surgiram em momentos de crise institucional. Melhor dizendo, em situações de redefinição nacional. Enquanto no Brasil, havia a necessidade de construir uma Memória Nacional, que minimizasse um legado colonial desagregador e fosse capaz contribuir para a união das Províncias do Império, na Dinamarca, a preocupação era de encontrar um paliativo para compensar as perdas territoriais e econômicas recentes, recuperando a Memória dos tempos idos. Mas, além desses propósitos afins, o que mais teria favorecido a aproximação dos dois redutos intelectuais?
Duas circunstâncias foram fundamentais para o estreitamento dos vínculos entre o Instituto Histórico e a Sociedade Real. Em primeiro lugar existia uma relação a nível pessoal, na figura do naturalista dinamarquês, o Dr. Peter Wilhelm Lund, membro das duas entidades. Em segundo lugar, havia um interesse afim: o de encontrar provas de um passado comum, anterior a 1500. Ou seja, de demonstrar que os vikings da Escandinâvia haviam chegado ou, até mesmo povoado, o Brasil muito antes da chegada dos portugueses.
Peter Wilhelm Lund esteve no Brasil, pela primeira vez, nos anos 1820. Veio com duas finalidades: pesquisar a flora e a fauna brasileiras e, ao mesmo tempo, desfrutar das amenidades do clima tropical, devido a uma doença pulmonar. Uma vez na Terra de Santa Cruz, Lund sentiu o efeito da “atração mágica da natureza tropical”. Após uma última visita ao seu país e à Europa, retornou definitivamente ao Brasil em 1833, embrenhando-se pelo sertão de Minas Gerais. A princípio, travou contato com um conterrâneo ali estabelecido: Peter Claussen, conhecido como “Pedro, o dinamarquês”. Proprietário na localidade de Curvelo, interessado em botânica e mineralogia, Claussen havia encontrado ossos de animais préhistóricos numa gruta de sua fazenda.
Entusiasmado com tais achados, Lund terminou por se fixar em Lagoa Santa, Minas Gerais, onde permaneceu até a sua morte em 1880. A descoberta de ossadas de homens pré-históricos enterradas juntos com ossos de animais da fauna extinta o tornaram conhecido internacionalmente, valendo-lhe o cognome de “Pai da Paleontologia do Brasil”. Os dois dinamarqueses foram admitidos no Instituto Histórico em 1839. Claussen, sócio correspondente, foi freqüentador assíduo da associação, até retornar de vez para a Europa, no final da década de 1840. Lund, que era membro honorário, nunca participou das sessões. Fazia-se presente, no entanto, através de volumosa correspondência, repleta de sugestões, relatos e remessas de material, coletado nas suas investigações de campo.
P.W. Lund doou ao Instituto, ainda naquele mesmo ano de 1839, um exemplar do trabalho de C.C. Rafn: “Antiquitatis Americanae - Memoire sur la découverte de l’Amérique au dizième siècle”, que foi vertido para a língua portuguesa e publicado na Revista do IHGB. O texto, que narrava a história da descobrimento da América do Norte pelos dinamarqueses, no século X, causou grande impacto entre os letrados brasileiros, como veremos adiante. Ao mesmo tempo, Lund instigou a agremiação carioca a estabelecer contato com a Sociedade Real dos Antiquários do Norte, fornecendo ao Côneco Januário Barboza uma carta de apresentação dirigida a associação dinamarquesa. Neste documento, redigido em francês, Lund salientaria as suas intenções:
“(...) pour ne rien négliger de ma part qui pût contribuer à serrer les liens, qui doivent unir tous les vrais amis des sciences, convaincu que je suis, d’ainsi promouvoir les intérêts communs de deux corps savants, qui m’ont fait l’insigne honneur de m’adopter au nombre de leurs membres”.

Entretanto, a iniciativa do Cônego Cunha Barboza foi antecipada por Carl Christian Rafn, que remeteu à entidade do Rio de Janeiro uma espécie de carta de intenções, acompanhada de exemplares do seu já mencionado artigo e dos últimos relatórios das sessões anuais da Sociedade Real. A partir daí, manteve-se o intercâmbio até o desaparecimento de Rafn, em 1864.
Preocupados em construir a Memória de um país há pouco independente, os membros do Instituto Histórico voltaram-se para o problema das origens da nação brasileira. Do ponto de vista político, o Estado brasileiro seria concebido como o herdeiro legítimo do império ultramarino português. Legado que se sustentava, inclusive, pela presença de um representante da dinastia de Bragança no Trono. A questão se tornava mais complexa, à medida em que se tentava estabelecer as “raízes” étnico-culturais da Nação. Num país mestiço e cheio de contrastes, que rumos seguir para “inventar suas tradições”? Diferentes atalhos foram tomados. Explorações nem sempre bem sucedidas, como os levantamentos acerca da existência de inscrições antigas na Pedra da Gávea, no litoral sul da Cidade do Rio de Janeiro.

Desde o tempo colonial corria, entre os cariocas, a versão de que as tais marcas seriam testemunhos da presença de fenícios em território brasileiro. Uma das primeiras iniciativas do Instituto Histórico foi, justamente, a de promover uma pesquisa naquele sítio. O entusiasmo, porém, não foi longe. A comissão do IHGB encarregada das investigações concluiu que as ditas marcas não passavam de “acaso da natureza”. Veredicto, aliás, que não encerrou a questão. A Pedra da Gávea voltaria a ser assunto nas sessões do Instituto, devido à intervenção de um outro estudioso, o Dr. Roque Schüch. Alemão de nascimento, mineralogista e, segundo se dizia, “versado em línguas orientais”. Radicado no Brasil, exercia os cargos de bibliotecário particular de D. Pedro II e diretor do Gabinete Mineralógico da Sua Majestade. Encarregado de examinar outros pretensos vestígios da nossa antiguidade, Schüch apontaria para um novo caminho, ao afirmar que:
“(...)Pela comparação de inscrições que se acham na Encyclopedia Methodica, nas viagens de Ollafens pela Islândia e na obra moderna intitulada “Antiquitatis Americanae” achei duas ou três letras que se assemelham às da ponta da Gávea, e que tem alguma probabilidade de pertencerem aos runos”.

Influenciado pela leitura das sagas escandinavas, o bibliotecário real iria mais longe... Conjecturava que se os povos do Norte chegaram até a costa leste dos Estados Unidos no século X, certamente o litoral brasileiro não lhes seria desconhecido. Reforçando a suposição, argumentava, ainda, que “... o dualismo dos índios manáos, da Província do Pará tem uma formidável semelhança com o dualismo dos antigos habitantes da Escandinávia”. Embora recomendasse o envio do material analisado para os especialistas do Museu Imperial de Viena, Roque Schüch parecia confiante nas suas “descobertas”. Não tardou a estabelecer contato com o autor de “Antiquitatis Americanae”. Indicou-o para integrar o IHGB, onde o antiquário nórdico foi acolhido como membro correspondente, em 1840.
Dois anos mais tarde, C.C. Rafn galgaria a posição de sócio honorário. O dirigente da Sociedade Real, por sua vez, valeu-se dos bons ofícios de Schüch. Convidou, pelo seu intermediário, o jovem monarca brasileiro para fazer parte da entidade dinamarquesa, na qualidade de Membro fundador. Categoria onde já se encontravam o Czar da Rússia e o Rei da Prússia, o último indicado pelo conhecido cientista, o Barão Alexander Humboldt. Schüch e Rafn se corresponderam com certa regularidade até 1843, quando o primeiro faleceu.
Esta documentação encontra-se disponível no acervo do Instituto Histórico, no Rio de Janeiro. Todavia, na Biblioteca Real em Copenhague, nos sessenta volumes dos documentos manuscritos de Rafn, não existe nenhum vestígio da correspondência com Roque Schüch. Isso chama a atenção. Sobretudo porque o antiquário parece ter arquivado tudo o que o interessava: desde rascunhos de cartas, até anotações em pedacinhos de papel. Este absenteímo nos induz a suspeitar de que para Rafn as ditas “runas” da Gávea não passavam de especulação.
Seja como for, embora essa primeira tentativa não fosse bem sucedida, a “Mémoire sur la découverte de l’Amérique au dizième siècle”” continuaria alimentando as conjecturas dos associados do Instituto Histórico, fascinados com a argumentação de que a Groenlândia havia sido habitada por uma população européia, de origem nórdica, antes que os esquimós ali se fixassem. Daquela ilha, tal qual cabeça de ponte, os escandinavos teriam partido para o estabelecimento de colônias, na costa leste dos Estados Unidos. Tese que fundamentava-se nas sagas nórdicas, e que mais tarde foi abandonada, devido à falta de evidências arqueológicas. Os vikings da Groenlândia visitaram a América, por certo, mas não chegaram a se estabelecer na margem ocidental do Oceano Atlântico.
A primeira parte dessa teoria teve grande repercussão no círculo letrado do Rio de Janeiro. Apesar das concepções evolucionistas vigentes, por essa linha de raciocínio seria viável supor que uma população de civilização mais elevada pudesse anteceder a outra, considerada culturalmente atrazada, e que esta última terminasse por prevalecer sobre a primeira, com o passar do tempo. Tais idéias vinham de encontro a hipóteses, desenvolvidas por cientistas europeus e divulgadas no Brasil, sobre as origens da nossa população autóctone. O naturalista alemão Karl Friedrich Philipp von Martius, por exemplo, sustentava, baseando-se nos estudos de Humboldt que:
“(...) toda a população primitiva das Américas viveu em tempos remotíssimos em um estado muito mais civilizado qo aquele em que achamos tanto os mexicanos do nosso tempo, ou os povos montanheses, como os índios selvagens do Brasil. Toda esta povoação, sem dúvida muito mais numerosa, caiu de uma posição muito mais nobrepor diversas causas... Os meus estudos apontam para o Brasil o lugar onde residem ainda as maiores lembranças do tempo antigo, e vem a ser os matos ricos entre os rios Xingu, Tocantins e Araguaia”.

Martius, no âmbito do Instituto Histórico, era considerado uma “valiosa autoridade” em assuntos brasileiros. Conhecimento de causa, aparentemente não lhe faltava. Patrocinado pela Imperatriz D. Leopoldina, realizara, nos anos 1817-20, diversas viagens de estudo pelo território brasileiro. Além de prever a localização dos vestígios de tais povos, ele ainda arriscava orientar para futuras investigações. Aconselhava o estudo das línguas indígenas, especialmente o idioma tupi. Suas conjecturas apontavam os tupis, habitantes antigos daquelas regiões, como os “depositários” das mitologias e tradições das pretensas civilizações extintas. O caminho que indicava, como se percebe, guardava grande semelhança com o que fora trilhado por Carl Christian Rafn.
Nessas circunstâncias, a troca de informações com a Sociedade Real dos Antiquários do Norte parecia bastante proveitosa. As relações entre as duas entidades se intensificaram no decorrer dos anos 1840. Notícias provenientes de Copenhague ganharam as páginas da Revista do IHGB, que em 1845 anunciava a criação do Museu das Antiguidades Americanas, outro projeto encabeçado por Rafn. Revistas e outras publicações foram trocadas pelas entidades congêneres.
Do Brasil veio a coleção completa da Revista do IHGB, e da Dinamarca uma das publicações da Sociedade Real, Mémoires de la Société Royale des Antiquaires du Nord ou seja, a revista internacional da sociedade, impressa nas línguas francesa e alemã. Nas Mémoires apareceriam os nomes dos sócios brasileiros admitidos no grêmio escandinavo: os Viscondes de São Leopoldo, de Jequitinhonha e de Maranguape; o Marquês de Olinda; o Ministro Francisco de Paula Almeida e Albuquerque; o Arcebispo Metropolitano Dom Romualdo de Seixas; o diplomata José de Araújo Ribeiro e o arqueólogo Frei Camilo de Montserrat - então Diretor da Biblioteca Nacional.
Vários artigos daquelas revistas foram traduzidos e divulgados em ambos os países. Dentre as contribuições dinamarquesas que alcançaram grande repercussão no Brasil, além da já citada monografia de Rafn, salientava-se uma narrativa do Rei Frederik VII, sobre as câmaras mortuárias ditas “dos gigantes”, da pré-história da Dinamarca. Do periódico brasileiro, por sua vez, chamaram a atenção dos estudiosos escandinavos dois trabalhos, que foram editados na revista nacional da Sociedade Real, Antiquarisk Tidsskrift, 1843-45. Traduzidos e apresentados pelo Dr Peter Wilhelm Lund, ambos os textos tratavam de uma cidade antiga e abandonada no interior da Bahia. Esse material fora recebido com grande interesse em Copenhagen, pois esperava-se que a redescoberta da tal cidade pudesse fornecer a prova da presença dos povos nórdicos no Brasil, em tempos remotos.
No seu primeiro número, a Revista do IHGB divulgou um relato sobre o pretenso descobrimento de uma antiguíssima cidade abandonada, no interior da Bahia. Tratava-se de uma transcrição de um documento descoberto na Livraria Publica da Côrte, por um dos sócios do Instituto. O referido testemunho, datado de 1754, encontrava-se bastante danificada por cupim, o que provocara várias lacunas no corpo do texto, inclusive o nome do seu autor. A fonte narrava que em 1753 um pequeno grupo de aventureiros vagava pelos sertões da Bahia quando, “(...) incitados da insaciável cobiça do ouro”, chegou a uma cordilheira de cristal. Após haverem tentado, em vão, de escalá-la, encontraram, finalmente, um caminho entre duas serras que “(...) pareciam cortadas por artificio, e não pela Natureza”.
Subindo, avistaram uma grande povoação no meio de um planalto. Aproximaram-se com cautela, porém sem “(...) achar, nem descobrir rastro de pessoa alguma”. Tratava-se de cidade grande, com sobrados bem construidos, protegida por uma grande muralha e um portão de entrada com três arcos grandes e uma inscrição misteriosa. Além das casas, de um palácio, de um grande templo, no meio da cidade, os aventureiros encontraram “(...) huma praça regular, e no meio d’ella huma columna de pedra preta de grandeza extraordinária, e sobre ella huma estatua de homem ordinario, com huma mão na ilharga esquerda, e o braço direito estendido, mostrando com o dedo index ao Pólo Norte”.
Naquele templo e em outras localidades dentro e fora da cidade, os aventureiros encontraram uma série de inscrições indecifráveis, reproduzidas, com esmero, no relato. Havia, ainda, um rio grande e profundo dentro da cidade. Mais distante, descobriram lagoas cheias de plantas, de arroz e povoadas por  “... inumeraveis bandos de patos...”. Na beira do rio, encontraram, sem dificuldade, ouro e prata, bem como vestígios de antigas minas de prata, em toda a região.
Dois anos depois da publicação desse relatório, em 1841, patrocinado pelo IHGB o associado, o Cônego Benigno José de Carvalho e Cunha partiu para os sertões da Bahia em busca daquele sítio. No Rio de Janeiro, aguardava-se, com ansiedade, as notícias dessas explorações. A Revista do IHGB chegou, mesmo, a anunciar uma eminente descoberta do Cônego. Nas especulações sobre o suposto “achado”, mais uma vez, seriam lembrados os sucessos dos Antiquários do Norte, nas investigações acerca da presença escandinava na América, antes de Cristóvão Colombo. Tudo em vão. A cidade abandonada nunca foi reencontrada e as ilusões acabaram se desfazendo com o tempo.
O documento original do relato da primeira expedição do Cônego Benigno, entretanto, foi traduzido e publicado no Antiquarisk Tidsskrift . À princípio, no seu diário de viagem, ele narrava, com muitos detalhes, o trabalho desenvolvido para determinar a localização provavel do procurado sítio, partindo das indicações do documento original, uma mapa detalhado da América Latina e entrevistas com pessoas que supostamente conheciam a região. Mais tarde, o Cônego mencionava as dificuldades da expedição, que acabaria interrompida antes da chegada ao lugar previsto, devido à falta de tempo, às chuvas intensas e ao fato de que a distância a percorrer se revelava muito maior do que esperado.
P.W. Lund traduziu esses dois relatórios e os remeteu à Sociedade Real, acompanhando-os de minuciosas análises críticas. A propósito da acidentada expedição de Benigno José de Carvalho e Cunha, o naturalista nórdico havia tecido os seguintes comentários:
“(...) huma descoberta de mais alta importancia para a historia antiga do Brasil, e a qual para ser convenientemente elucidada achara differentemente hum Tribunal mais competente do que a esta sociedade, mormente em caso se verificar a hypothese de hum illustre membro do Instituto que derivou esses monumentos dos antigos Scandinavos, hypothese que, devo confessar, me parece pouco confirmado pela conformação dos caracteres das inscripções...”.

Lund revelava um certo entusiasmo, em relação ao relato sobre a pretensa cidade abandonada, mesmo com a ressalva de que as supostas inscrições, não lhe pareciam runicas. Num outro documento, uma carta dirigida a C.C. Rafn, o paleontólogo salientaria a história do referido sítio arqueológico, sobretudo a parte referente à estátua do homem apontando para o Norte. Fazia, também, menção a um artigo de jornal, anexado à carta, contando a descoberta de uma estátua, semelhante àquela da “cidade abandonada”, descoberta na deserta Ilha do Corvo, no Arquipélago dos Açores, em 1431.
Nas observações que foram anexadas à tradução, Peter Lund demonstraria, entretanto, que o seu entusiasmo inicial não resistia à falta de provas materiais. Não apenas em relação às tentativas frustradas de reencontrar a cidade, mas também acerca das inúmeras incoerências que percebera no relato original, que suscitara as explorações no sertão da Bahia. Ele começaria por admitir que também se havia deixado seduzir pelo romantismo da história, chegando a acreditar que poderiam existir vestígios de uma civilização antiga, talvez até de orígem nórdica, no interior do Brasil.
Com o tempo, porém, estudando melhor o texto original havia chegado à conclusão contrária: apontava na sua análise críteriosa todas as passagens onde o viajante antigo transgredia os conhecimentos científicos, sobretudo no que tange à descrição dos animais da região e seu comportamento (galinhas selvagens, por exemplo, não poderiam sobreviver num planalto, já que são aves da floresta; ratos salteadores com pernas curtas, outra incoerência, uma vez que animais que saltam necessitam ter pernas compridas; cervos brancos seriam bichos típicos de fábulas, enquanto que patos em profusão e raposas enormes também não existiriam na região). Outro aspecto salientado era a insistência da notícia de ocorrências de minas de prata, numa região onde este metal não existe. Mencionava-se, também, a descrição de supostas inscrições assemelhadas, em grande parte, com os caracteres gregos.
Peter W. Lund, em contrapartida, procurava oferecer a sua visão científica e antropológica da pré-história brasileira, contrastando com a visão literária e romântica dos seus interlocutores. Já que não podemos confiar naquele relato, dizia ele em suas observações, devemos estudar os homens primitivos do Brasil a partir dos testemunhos que eles mesmo deixaram, ou seja, os restos mortais achados nas grutas calcárias nas redondezas de Lagoa Santa.
Essa hipótese seria desenvolvida numa outra série de cartas, dirigidas tanto para os intelectuais de Copenhagen, quanto para os do Rio de Janeiro. Evidência de que para Lund não seria uma tarefa fácil frear as espectaculações dos seus correspondentes, entusiasmados com a idéia da participação dos vikings na pré-história brasileira. Duas dessas cartas, uma dirigida ao Cônego Barboza e outra a Christian Rafn, merecem um tratamento mais a fundo.
A correspondência para o dirigente do Instituto Histórico datava de 1842. Nela o paleontólogo discutia um problema de grande interesse: a eventual coexistência do homem com alguma espécie de animal hoje extinta. Esta questão seria fundamental para toda a interpretação da evolução do Mundo junto aos cientistas, numa época onde Darwin ainda não havia lançado a sua teoria revolucionária e a interpretação que prevalecia era a de Cuvier sobre as revoluções terrestres. A discussão era relevante, e os estudiosos da Europa ainda não havia conseguido encontrar uma resposta. O próprio Lund trabalhara com essa problemática durante anos, também sem chegar a um resultado definitivo.
As grutas calcárias brasileiras onde os restos humanos se encontravam misturados com restos de animais extintos seriam - segundo a expressão bela e precisa usada por Lund - “os arquivos onde essa pesquisa deveria ser executada”. Ele já havia examinado cerca de 200 grutas e encontrado 115 espécies de animais, ou seja, 27 a mais do que atualmente existem na região. Entre a fauna extinta, algumas espécies eram de grande porte, outras constituídas por animais carnívores grandes. Tais evidências o levaram a formular uma outra questão complexa: quais as razões que levaram à extinção os animais maiores e mais perigosos, enquanto as espécies mais fracas sobreviviam?
O paleontólogo dinamarquês encontrara ossos humanos somente em uma das inúmeras grutas que pesquisara, na Lapa do Sumidouro, frequentemente inundada. Tais vestígios, porém, achavam-se misturados pela águas aos ossos de animais, tanto extintos quanto ainda existentes. Por isso, nem mesmo após essa significativa constatação, foi possível chegar a um resultado sobre a questão da co-existência do homem e dos animais extintos.
O achado de ossos humanos constituiu-se numa descoberta de extrema importância, já que eles estavam entre os mais antigos testemunhos da presença do homem, conhecidos no Brasil, naquela época. O próprio Lund atribuiu-lhes uma idade superior a três milênios. Tais ossadas encontram-se hoje no Museu Zoológico de Copenhagen e, dentre os paleontólogos, aceita-se a hipótese de que sua idade atinja cerca de dez mil anos, embora o material não tenha sido submetido a uma datação mais precisa.
Num outro documento encaminhado a Rafn, em 1844, Lund desenvolveria as suas idéias sobre a origem dos homens pré-históricos brasileiros, chegando a conclusões novas. Inicialmente, parece que ele aceitava como pertinente a idéia da co-existência do homem com animais extintos, questão que não havia resolvido dois anos antes. O povoamento da América do Sul, no seu entender, seria muito antigo, datando do chamado tempo geológico, já que “... várias espécies animais parecem ter desaparecido da criação viva desde o tempo do aparecimento do homem aqui”. Concluiria, em seguida, que a raça humana que vivia no Brasil em tempos remotos seria a mesma que habitava a região no momento da chegada dos europeus.
Esses resultados não reforçavam a idéia de que o povoamento das Américas efetuara-se em função de imigração do mundo europeu antigo. As características dos homens da antiguidade brasileira contra-indicavam que seus ascendentes fossem provenientes do Velho Continente, como seria o caso dos vikings. Em contrapartida, existiria um parentesco estreito entre as raças mongolóides e americanas. O problema, por conseguinte, era de identificar o berço desta raça. E Lund arriscava a hipótese de que ela era originária das Américas, e que depois se espalhara para a Ásia, apesar de hoje existirem provas de que o caminho teria sido justamente o inverso. A pesquisa científica dos vestígios materiais, coletados pelo naturalista dinamarquês em Lagoa Santa, destruiu o encanto das versões literárias sobre a pré-história brasileira.
As motivações científicas que contribuíram para estreitar os laços de amizade entre o Instituto Histórico e a Sociedade Real não corresponderam, portanto, às espectativas dos letrados brasileiros. Nem às teses desenvolvidas por seus confrades na Escandinávia. Os vínculos entre a associação do Rio de Janeiro e a entidade congênere de Copenhagen começaram a se afrouxar ao final dos anos 1850. A troca de publicações ainda permaneceria por alguns anos.
Faltava-lhe, contudo, aquele entusiasmo dos primeiros tempos. A correspondências cessou, de vez, no início da década seguinte, coincidindo com o falecimento de Carl Christian Rafn, em 1864. A partir daí, não houve mais intercâmbio entre o Instituto Histórico e a Sociedade Real. Dissolveram-se os laços intelectuais, levando consigo a perspectiva de encontrar os vestígios de antepassados comuns.

Por Lucia Maria Paschoal Guimarães (Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e Birgitte Holten (Instituto de História da Universidade de Copenhagen) como 'A Suposta Presença Escandinava na Terra de Santa Cruz e a ciência'. Disponível em http://www.ufjf.br/locus/files/2010/01/32.pdf. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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