A alimentação na Idade Medieval tem
sido alvo de estudo e reinterpretações. Tem sido abandonada a visão de uma
época marcada quase exclusivamente pela carência alimentar, para se ensaiarem
descrições mais elaboradas e que reflictam a variedade de condições e períodos
vividos por diferentes grupos. Este trabalho reúne informação acerca da
alimentação praticada em Portugal durante a Idade Média, visando uma
compreensão diferenciada das várias facetas por ela assumidas. Abordam-se
aspectos genéricos da alimentação na Europa nesse período, características
gerais da alimentação no Portugal Medieval, os alimentos mais utilizados e a
adequação nutricional, as técnicas culinárias, utensílios e instrumentos e as
características das refeições.
INTRODUÇÃO E
OBJECTIVOS
De entre os aspectos que caracterizam a cultura de um povo,
a alimentação é, seguramente, um dos que mais profundamente reflecte a sua
estrutura económica, política e social. As interacções de factores que a
determinam e que por ela são influenciados são vastas e o estudo da alimentação
em contextos espaciais e temporais específicos implica uma leitura integrada
com eles.
Ao longo das últimas décadas a alimentação na Idade Medieval
tem sido alvo de estudo e reinterpretações. Em particular no que concerne à
Europa, tem sido abandonada a visão de uma época marcada quase exclusivamente
pela carência alimentar, para se ensaiarem descrições mais elaboradas e que
reflictam a variedade de condições e períodos vividos por diferentes grupos.
Na sequência da crescente necessidade de especificidade
contextual e actualização na área da História da Alimentação, pretende-se com
este trabalho reunir informação acerca da alimentação praticada em Portugal
durante a Idade Média. Parte-se de uma breve abordagem a aspectos genéricos da
alimentação na Europa nesse período e prossegue-se com as características da
alimentação no Portugal Medieval. Após algumas considerações gerais, serão
abordados os alimentos mais utilizados e a adequação nutricional, as técnicas
culinárias, utensílios e instrumentos e as características das refeições.
Para que se compreenda a alimentação na Idade Medieval é
fundamental recuar ao Império Romano. Roma tinha ideologias universalistas e,
como tal, tentava uniformizar usos e costumes. Isto reflectia-se ao nível
alimentar: apesar de algumas variações locais na alimentação das regiões que
formavam o território do Império Romano, esta tendia para uma grande
uniformidade, marcada sobretudo pela trilogia clássica trigo-vinho-azeite.1,2
Os romanos orgulhavam-se da sua ligação à terra e seus
produtos. Opunham a sua alimentação, baseada nos cereais, legumes, leguminosas
e frutos, à dos povos bárbaros, que se alimentavam sobretudo de carne.1,2
Na passagem da Antiguidade para a Idade Média ocorreu um
fenómeno de integração entre estas duas culturas. Na alimentação, este processo
reflectiu-se sobretudo numa maior diversificação dos hábitos de consumo. Aos
produtos da agricultura habitualmente consumidos veio juntar-se a ingestão mais
frequente de carnes (tanto gado como caça) e peixes.1-3
É difícil proceder a uma caracterização global da
alimentação medieva, visto os regimes alimentares dos diversos grupos sociais
revelarem diferenças quantitativas e qualitativas2,3. Vão-se também registando
mudanças ao longo deste período, sendo de assinalar as diferenças nos modos de
produção e modelos de consumo antes e após os séculos X e XI, resultantes
sobretudo do forte crescimento demográfico e consequente desenvolvimento de uma
economia de mercado em substituição da anterior economia de subsistência4.
Apesar da população medieval ser fundamentalmente
constituída por camponeses, poucos registos existem acerca de como se
alimentavam. No entanto, como o consumo e a produção alimentares eram interdependentes
(o comércio dizia respeito sobretudo a produtos de luxo), os dados relativos à
produção permitem ter uma noção aproximada de como seria a alimentação desta
classe social.1,3,5
Pensa-se actualmente que, exceptuando alguns períodos de
maiores dificuldades, a alimentação da generalidade da população seria
satisfatória. Apesar da relativa pobreza alimentar se compararmos a ingestão
praticada com os padrões modernos, as quantidades de alimentos disponíveis
seriam bastantes para garantir um aporte energético adequado e a crescente
vulgarização de produtos animais à mesa dos populares serviu para minimizar
diferenças entre classes.2,3,6,7
A diversificação alimentar foi permitindo a generalização de
métodos de substituição de uns alimentos por outros, que ajudavam a dar
resposta aos frequentes períodos de dificuldades produtivas.1,2,8
Para proceder a uma caracterização e análise mais
pormenorizadas de como terá sido a alimentação durante a Idade Medieval,
centrar-nos-emos no caso de Portugal, onde, pela sua História, localização
geográfica, e características climáticas, se reúne um conjunto de factores que
tornam interessante esta particularização.
A ALIMENTAÇÃO NO
PORTUGAL MEDIEVAL – GENERALIDADES
A alimentação medieval em Portugal era, como no resto da
Europa, uma alimentação pobre e monótona. Embora as quantidades de alimentos
disponíveis fossem globalmente suficientes para suprir as necessidades
energéticas, até mesmo nas classes menos abastadas, a qualidade não era a
desejável e verificavam-se algumas diferenças entre classes sociais.6,7
Embora se refiram com frequência as dificuldades de produção
resultantes de variações climáticas como uma das causas da menor adequação da
alimentação dos camponeses no Portugal medieval, há que tê-las em consideração
em interacção com as estruturas social e económica da época. As repercussões do
clima nos preços dos alimentos e, consequentemente, no poder de compra
tornaram-se, em diversos períodos, a barreira mais impeditiva da diversificação
alimentar de vários grupos de trabalhadores, cujos reduzidos salários tornavam
proibitiva a compra de grande parte dos alimentos.6
Os camponeses lavravam e semeavam terras que não lhes
pertenciam, pagando aos senhores rendas e foros sob a forma de parte da
produção e guardando para si uma parte menor desta. As quantidades de cereais e
vinho com que ficavam eram habitualmente suficientes para lhes matar a fome; no
entanto, não bastavam para se converterem em carne, pescado ou iguarias com a
mesma frequência que acontecia à mesa dos senhores.9
Assim sendo, a alimentação da maioria da população era
baseada nos cereais e no vinho. A inclusão de outros alimentos, como por
exemplo as carnes e os peixes, estava dependente da sua abundância e preços;
simultaneamente, eram os défices de produção de alguns alimentos que aumentavam
a frequência de outros à mesa do camponês.6,7,9
OS ALIMENTOS MAIS
FREQUENTES E A ADEQUAÇÃO NUTRICIONAL
A alimentação na Idade Medieval baseava-se essencialmente
nos cereais, no vinho, nas carnes e no pescado. No entanto, existiam diferenças
entre classes sociais relativamente ao consumo destes alimentos.
A maioria da população, isto é, os camponeses, praticava uma
alimentação muito simples, baseada sobretudo nos cereais. Estes, juntamente com
o vinho com que habitualmente eram acompanhadas as refeições, proporcionavam
aos camponeses uma alimentação rica em energia.6,7
A riqueza da alimentação em proteínas dependia sobretudo da
presença de carne e pescado à mesa. Comparando os orçamentos alimentares dos
diferentes grupos sociais, verifica-se que quando mais se descia na classe
social maior era o dispêndio com o pão, isto é, com os cereais, e que quanto
mais se ascendia na hierarquia maior a importância do acompanhamento. Assim, e
apesar de a carne ser a base da alimentação nas classes mais abastadas, entre
os camponeses o seu consumo era raro, o que podia tornar insuficiente o aporte
proteico em determinados períodos.6,7,9
Também o consumo de legumes e fruta não seria adequado entre
as classes mais pobres. Este facto concorria para a pobreza da alimentação em
algumas vitaminas.7,9
Os Cereais, o Pão e
os Sucedâneos dos Cereais
Como já foi referido, a alimentação dos camponeses medievais
era baseada nos cereais. Aliás, tanto em Portugal como no resto da Europa medieval,
os cereais ocupavam a maior parte das áreas cultivadas.10
De entre os cereais cultivados em Portugal, salientam-se as
diversas variedades de trigo, visto ser este o mais produzido e mais consumido.
A sua importância está bem patente no facto de, em português medievo, todos os
restantes cereais receberem a designação de “segunda”. A seguir ao trigo, seria
o milho o cereal mais utilizado no fabrico do pão. Para além destes, eram ainda
produzidos e consumidos o centeio, a cevada e, menos, a aveia. O arroz já se
conhecia e consumia no século XIV, mas ainda não estava largamente
divulgado.7,10,11
Atentando em cálculos efectuados para os coutos de Alcobaça
e relativos ao ano de 1439, na produção global desse ano as percentagens dos
diversos cereais e leguminosas teriam sido as seguintes: 45% de trigo, 36% de
milho, 15% de cevada, 2% de centeio e 1% de leguminosas. Estes dados permitem
substanciar a supremacia do trigo (e do milho) sobre os restantes cereais.10,12
No entanto, é importante realçar a grande heterogeneidade na
produção cerealífera em Portugal. Na comarca de Entre-Douro-e-Minho ocorria
grande produção de cereais, predominando a cultura do milho-alvo, ao passo que
em Trás-os-Montes era o centeio o cereal mais cultivado, não sendo esta comarca
produtora de grandes quantidades de cereais. Nas Beiras e no Ribatejo a
produção cerealífera era abundante, sendo relativamente equilibrada nas Beiras
e sobretudo de trigo no Ribatejo, onde se podiam encontrar também cevada, milho
e até centeio. Também a Estremadura (nomeadamente os referidos coutos de
Alcobaça) e o Alentejo possuíam zonas com solos de elevada produtividade. Em
contraste, o Algarve tinha de recorrer com frequência à importação visto contar
com níveis de produção insuficientes.10,11
A farinha tinha diversas aplicações: podia ser consumida
como papas (misturada com água) ou sopas, servia para cozer biscoito para os
exércitos ou armada e era utilizada como polme para peixe ou carne ou até mesmo
para confeccionar pastéis e empadas (entre as classes mais ricas). No entanto,
os cereais eram consumidos sobretudo sob a forma de pão, sendo frequente
utilizar a designação “pão” referindo-se a estes.6,7 Diariamente, e em época de
produção regular, cada camponês consumia entre 1 e 2 kg de pão.9
A maioria da população fabricava o pão que consumia, nos
fornos de pão. Nas cidades o pão era cozido e vendido em tendas ou ao domicílio
por padeiras.7
Como se depreende com base nos dados relativos à produção, o
pão era essencialmente de trigo. Eram fabricados pães de forma circular e com
grandes dimensões (a maioria pesaria entre 150 e 750 gramas), que cresceriam
pouco com a cozedura. A sua forma e, sobretudo, as suas dimensões avantajadas
estariam certamente relacionadas não apenas com o facto de serem consumidos em
grandes quantidades, mas também com o de constituírem suporte para a
comida.7,10,11
Para além da designação de “pão”, usavam-se já na Idade
Média os termos “fogaça” e “broa” para designar, respectivamente, o pão
delgado, cozido debaixo das cinzas ou por rescaldo e o pão de milho.7
Os camponeses consumiam com maior frequência pão escuro,
produzido a partir de mistura de farinhas. O pão branco, fabricado apenas com
trigo, era mais consumido entre as classes mais abastadas, embora os camponeses
também o consumissem com alguma regularidade, provavelmente aos domingos e dias
santos.9,11
O pão de mistura poderia ser meado, terçado ou quartado,
conforme o número de cereais por que era composto. Como também se compreende
pela produção da época, o pão meado associava habitualmente as farinhas de
trigo e milho, juntando-se-lhes a de centeio para o pão terçado e ainda a de
cevada para o quartado. Estas combinações de farinhas não seriam as únicas
possíveis, mas parecem as mais frequentes. Nas Beiras interiores e em Trás-os-Montes,
por exemplo, seria o centeio a fornecer a base do pão para consumo normal,
embora o trigo se encontrasse sempre presente.7,9,11
Apesar de ser praticada uma alimentação baseada nos cereais,
nem todos os solos eram os mais adequados à sua produção. Algumas zonas
revelavam uma baixa produtividade, dependendo de outras para assegurarem a
satisfação das necessidades de consumo.10,11 Para além disso, as crises na
produção cerealífera eram frequentes, reflectindo-se principalmente nas zonas
mais populosas. A subida do preço do pão era problemática e levava à
necessidade de encontrar alimentos que o substituíssem.7
Tanto nestas situações de menor produção, como, de um modo
geral, nas regiões mais montanhosas (e, como tal, menos acessíveis) ou menos
propícias à cultura cerealífera, quando para além do trigo havia falta dos
outros cereais, o que foi frequente a partir de meados do século XIV, era
frequente a utilização da castanha, da bolota e das leguminosas como sucedâneos
do pão. Algumas populações de camponeses tinham até já enraizados hábitos com
os quais faziam face a estas adversidades: em algumas zonas do Norte e interior
de Portugal, nomeadamente nas Beiras e em Trás-os-Montes, comia-se castanha em
vez de pão durante cerca de metade do ano; noutras fabricava-se habitualmente
pão de lande ou de bolota. Nas zonas com mais população, chegavam-se a importar
favas do estrangeiro para fazer face à situação de crise. Esta necessidade de
importação demonstra que a produção de leguminosas não seria avultada, não
chegando a armazenagem para suprir as baixas na produção cerealífera. Para além
das favas, também as ervilhas, as lentilhas, o grão-de-bico, os chícharos, o
feijão e o tremoço eram leguminosas utilizadas como substitutos dos
cereais.7,10,11,13,14
Em última análise, este recurso aos sucedâneos do pão era a
melhor garantia de subsistência que possuíam os camponeses medievais. Este
facto verificava-se não só em Portugal como também no resto da Europa.11
A Vinha, o Vinho e as
Outras Bebidas
Para além da dos cereais, a vinha era a outra grande cultura
da Idade Média. Terá até chegado a ser a primeira, em determinadas épocas e
regiões. Ao contrário do que sucedia com os cereais, existiam em diversas zonas
do solo português áreas extensas adequadas a esta cultura. A adequação dos
solos, juntamente com a do clima, fez com que não ocorressem quebras
significativas na produção vinícola, como ocorreu com os cereais.7,10
Este facto terá servido para que o vinho assumisse uma
enorme importância na alimentação do Portugal medieval. Embora parte da
produção das vinhas se destinasse ao consumo de uvas como fruta de mesa, a
maioria era reservada para a produção de vinho. Para além do abundante consumo,
exportava-se ainda vinho português para o estrangeiro.10
Produziam-se diversas qualidades de vinhos, brancos e
tintos, que constituíam a bebida mais consumida por todas as classes sociais e
por todo o país. De facto, tanto à mesa dos camponeses como nos banquetes das
classes mais abastadas, fosse como acompanhamento das refeições ou simplesmente
para matar a sede, o vinho estava sempre presente. Para além disso, o vinho
servia também para as cerimónias do culto religioso.7,9,10
Quase se pode considerar que, durante a Idade Média, em
Portugal, quando se refere “beber” se adivinha “beber vinho”, pois raras seriam
as excepções. Um camponês consumiria cerca de 1 a 2 litros de vinho
diariamente; o consumo de outras bebidas era apenas ocasional e muito limitado.
Desconheciam-se o café, o chá ou o chocolate. No Norte da Europa o consumo de
cerveja era abundante, mas em Portugal o consumo deste produto nunca se terá
popularizado, não tendo a sua importação sido mais do que esporádica.7,9
Embora também se bebesse simples, o vinho era bebido
sobretudo misturado com água. Os camponeses mais afortunados fariam a mistura
com duas partes de vinho e uma de água; para os mais pobres, a vinho seria
meado de água. O vinho era bebido não apenas no seu estado natural (cru), como
também cozido.7,9
A Carne e o Pescado
Ao contrário do que sucedia relativamente ao consumo do pão
e do vinho, ambos consumidos com abundância por todas as classes sociais, a
ingestão de carne e pescado durante a Idade Média revelava fortes assimetrias
sociais. Eram essencialmente as classes mais ricas quem tinha acesso regular a
estes alimentos, restando aos menos abastados um consumo menos frequente, mais
escasso e não tão diversificado.6,7,9
Para além disso, e relativamente à carne, sabe-se que os
seus preços eram muito variáveis no Portugal medieval. Por exemplo, na Coimbra
do século XII, as carnes de porco e de carneiro eram as mais caras, sendo mais
acessíveis as de vaca e de cabrito, ao passo que em Évora, nos séculos XIII e
XIV, era a carne de vaca a mais cara, seguindo-se-lhe a de porco e sendo as de
carneiro e cabra consideravelmente mais baratas. Estas variações regionais de
preços, para além das que derivavam dos mecanismos de mercado, influenciavam
enormemente não só as quantidades como também os tipos de carne mais
consumidos.7
Esta influência fazia-se sentir sobretudo entre os menos
abastados, sendo difícil caracterizar o consumo de carne pelos camponeses
medievais. Pensa-se contudo que, globalmente, seriam as carnes de carneiro e de
porco as mais frequentes. O carneiro era, aliás, considerado a carne de melhor
nutrição, sendo provavelmente a mais comum.6,7,15
Entre as classes mais ricas, porém, o consumo de carne
caracterizava-se por uma enorme diversidade. Consumiam-se não só carnes de
matadouro ou carnes gordas, como a vaca, o porco, o carneiro, o cordeiro ou o
cabrito, como também carnes de caça compradas nos mercados e provenientes de
criação doméstica. Em mercado tabelavam-se carnes de gamo, zebro, cervo, corço,
lebre e até de urso, ao lado de grande quantidade de aves: pombas, perdizes,
galinhas, ansares, anas, abetardas, grous, túrtures, patos bravos, cercetas,
garças, maçaricos, fuselos, sisões, galeirões, calhandras. A criação doméstica
era sobretudo respeitante a galinhas, patos, gansos, pombos, faisões, pavões,
rolas e coelhos.7,9,16
A carne era habitualmente consumida fresca ou em conserva,
sob a forma de torresmos, presunto ou diversos enchidos, como os chouriços, as
linguiças, os paios ou os salpicões. A carne de vaca era muito usada em sopas,
enquanto a confecção de outros tipos de pratos utilizava sobretudo as carnes de
carneiro ou de aves.7,15
Em relação ao peixe, parece ter sido menos consumido do que
a carne na época medieval em Portugal, pelo menos se considerarmos
especificamente as classes mais abastadas, em que o consumo destes alimentos se
revela mais significativo. Apesar de se tratar uma publicação já dos finais do
século XVII, o livro de cozinha de Domingos Rodrigues16 apresenta-se como uma
boa referência para efeitos de caracterização da alimentação praticada pelas
classes abastadas, indo ao encontro dos manuscritos da época medieval. Assim, a
título de exemplo, refira-se que nesta obra 66% das receitas eram de carne,
enquanto pouco mais de 10% eram de peixe. Porém, o peixe tinha também alguma
importância no contexto da alimentação medieva em Portugal, sobretudo entre as
classes mais pobres.6,7
Entre as classes mais ricas, o consumo frequente de pescado
estava muito associado a prescrições religiosas. Estas prescrições, que
proibiam o consumo de carne por todos os católicos em cerca de sessenta e oito
dias por ano, levavam à sua substituição por pratos de peixe ou de marisco.
Nestes dias de jejum, para além de ser obrigatória a abstinência de carne,
estava também proibido o consumo de peixes gordos, ovos, queijo, manteiga,
banha e até de vinho.6,7
O peixe era consumido principalmente fresco ou salgado,
sendo por vezes também consumido seco ou defumado. Entre os camponeses o mais
consumido seria a sardinha, sendo também frequente a pescada (“peixota”). Entre
as classes mais abastadas, era habitual o consumo de outras espécies, tanto de
mar como de rio, entre as quais: lampreia, congro, linguado, sável, salmonete,
azevia, ruivo, pargo, solho, besugo, cação, rodovalho, truta e
goraz.6,7,9,13,17
Comiam-se ainda carnes de baleia e toninha e diversos
moluscos e crustáceos, salientando-se as amêijoas, o berbigão, a lagosta, o
caranguejo e as ostras 6,7.
Durante a Idade Média o consumo de hortaliças e legumes não
era muito frequente entre as classes mais ricas. O livro de cozinha de Domingos
Rodrigues16 conta com menos de 5% de receitas com estes alimentos. Os legumes
frescos seriam sobretudo apreciados pelos elementos das classes mais pobres.6,7
Eram conhecidos muitos hortícolas, sendo principalmente
utilizados vários tipos de couve: couve comum, couve murciana, couve tronchuda
e couve-flor. Para além da couve, eram consumidas diversas hortaliças ainda
hoje presentes na alimentação portuguesa, tais como espinafres, pepino, nabo,
cenoura, cebola, alho, brócolos, abóbora, espargos, rábanos, rabanetes, alface,
beringela, cogumelos e salsa.7,10,13,14
A alface era muito consumida durante o Verão sob a forma de
salada que acompanhava as refeições. Esta e outras formas de utilização de
legumes na alimentação quotidiana serviam para compensar parcialmente a
monotonia alimentar dos camponeses (e a consequente desadequação nutricional),
ressalvando-se, contudo, o facto de estarem dependentes quer de variações
climáticas e sazonais quer dos já mencionados condicionalismos de mercado e da
estrutura sócio-económica.13,14
A Fruta
Desde a Idade Média que a fruta tem um papel importante na
alimentação e economia portuguesas, sendo já conhecidas quase todas as frutas
consumidas actualmente.6,7,10
Tanto no interior como na periferia dos povoados
encontravam-se numerosas e diversas árvores de fruto, tais como: figueiras,
ameixieiras, macieiras, pereiras, pereiros, pessegueiros, cerejeiras,
cidreiras, nespereiras, marmeleiros, amoreiras, romãzeiras, nogueiras, castanheiros,
sorveiras, laranjeiras, limoeiros, alfarrobeiras, amendoeiras. Também a vinha e
a oliveira, para além de fundamentalmente ligadas à produção de,
respectivamente, vinho e azeite, produziam uvas e azeitonas para consumo de
mesa.10
Poucos são os frutos não conhecidos em Portugal durante a
Idade Média. A ausência mais relevante será decerto a da laranja doce, que
apenas viria a ser trazida do Oriente por Vasco da Gama. Era conhecida a
laranja azeda (hoje muito menos produzida), que, juntamente com o limão, era
sobretudo usada para tempero.6,7,18
Habitualmente, a fruta era ingerida acompanhada com vinho,
como refresco ou refeição ligeira, sobretudo à noite. Usava-se até a expressão
“vinho e frutas”, embora se pense que num sentido mais alargado, significando
“sobremesa”.6,7,19
É também importante referir que as frutas não eram todas
igualmente consideradas. Algumas, como por exemplo o pêssego, as cerejas ou o
limão, eram encaradas como pouco saudáveis, sendo desaconselhado o seu
consumo.7
Era também frequente produzir outros produtos a partir da
fruta fresca. Destacam-se os frutos secos e as conservas e doces de fruta.
Entre os frutos secos, seriam os figos e as passas de uvas os mais habituais.
No que respeita às conservas e doces, eram fabricados com grande variedade: de
cidra (“casquinhas”, “diacidrão”), pêssego (“pessegada”), limão, pêra
(“perinhas”, “perada”), abóbora e marmelo (“marmelada”, “bocados”, “almívar de
marmelo”). De laranja fazia-se a então famosa “flor de laranja”, utilizada não
só como tempero mas também como perfume e até a alface era utilizada para o
fabrico de uma conserva especial conhecida por “talos”.7
A produção abundante de frutos em Portugal durante a Idade
Média revela-se na exportação para o estrangeiro de figos secos e passas de uva
(principalmente provenientes do Algarve), bem como de frutas frescas de fácil
conservação10.
As Gorduras e os
Restantes Temperos
Durante a Idade Média, a condimentação era bastante simples.
Nas casas mais pobres, consistia essencialmente na adição de sal e gorduras aos
alimentos.6,7
Eram utilizadas diversas gorduras para condimentar os
alimentos. De todas, o azeite era a mais importante, sendo inclusivamente
considerado um dos produtos básicos da alimentação medieval portuguesa. A
oliveira era uma das árvores mais comuns, tendo a importância do azeite na
alimentação portuguesa aumentado principalmente com a expansão dos olivais para
Norte. A produção de azeite era muito abundante, permitindo não só suprir as
necessidades de consumo nacional como também a exportação para o
estrangeiro.6,7,10
Para além do azeite, eram utilizadas, não com a mesma
frequência ou abundância, mas ainda assim com alguma relevância, diversas
gorduras animais. Destas, destacam-se a manteiga, o toucinho e a banha. É de
referir, aliás, que a banha de porco era utilizada como tempero por todas as
classes sociais. Mais raramente, a gordura de vaca também era empregue na
preparação de refeições.6,7
O sal era amplamente utilizado como tempero. Para além
disso, usava-se para conservar carnes, peixes e outros alimentos quando se
pretendia proceder ao seu transporte ou armazenamento.7
A utilização de outros temperos ocorria quase exclusivamente
entre as classes sociais mais abastadas. Era habitual a utilização de ervas de
cheiro (coentros, salsa, hortelã), sumos (de limão, laranja azeda e agraço),
vinagre, cebola, alho e pinhões como tempero, o que conferia maior requinte e
palatibilidade às refeições nas casas mais ricas.7,14
Quanto mais elevado era o preço dos temperos, menos ampla
era a sua utilização. Alguns seriam quase exclusivos da casa real, como é o
caso de diversas especiarias, antes de ser vulgarizada a sua importação em
grandes quantidades a partir do Oriente. A pimenta, por exemplo, seria
frequente à mesa real mas rara nas restantes. Também o cravo, o açafrão, o
gengibre, a mostarda, os orégãos e os cominhos seriam, devido ao seu elevado
preço, pouco divulgados, apesar de já conhecidos e consumidos pelos mais
ricos.7,14
Os Lacticínios, os
Ovos e a Doçaria
O leite era pouco consumido directamente durante a Idade
Média. Os lacticínios, pelo contrário, eram muito frequentes na alimentação medieval portuguesa. Eram
chamados de “viandas de leite” e utilizados sobretudo como acompanhamentos ou
sobremesas. Os mais frequentes seriam o queijo, a nata, a manteiga e diversos
pratos confeccionados, especialmente doces.6,7
Os ovos, devido à abundância de criação de galinhas, patas,
gansas e pombas, eram utilizados em grande quantidade, entrando na confecção de
grande parte dos pratos mais elaborados.6,7
O fabrico de bolos no período medieval não era muito
habitual nem se encontrava muito desenvolvido. Para além das sobremesas feitas
com leite, a doçaria medieval portuguesa baseava-se nos biscoitos e pastéis
(como por exemplo os “biscoitos de flor de laranja” ou os “pastéis de leite”),
sendo também confeccionado “pão-de-ló”, bem como os “fartéis” (doces feitos à
base de mel, farinha e especiarias). Eram ainda produzidos alguns doces com
ovos, como os “canudos” e os “ovos de laços”. Devido ao elevado preço do
açúcar, o mel era o adoçante mais utilizado.6,7
AS TÉCNICAS
CULINÁRIAS MEDIEVAIS
As técnicas culinárias usadas na Idade Média
caracterizavam-se pela simplicidade. A maioria dos métodos de confecção mais
elaborados que eram utilizados no Império Romano foi-se perdendo, restando
apenas algumas formas mais elementares de preparação de alimentos.6,7
As principais técnicas utilizadas eram o assar, cozer,
fritar, estufar e “afogar”, sendo este último uma espécie de guisado. Usavam-se
também algumas técnicas de acabamento de refeição, como o corar, tostar ou
enxugar. Eram muito utilizados os refogados, feitos com cebola e azeite.6,7
As técnicas de preparação da carne, apesar de simples, eram
diversas. Dependendo do tipo de carne, esta poderia ser picada, trinchada ou
lardeada. Quanto às formas de a cozinhar, a mais habitual era o assado no
espeto, embora também fossem frequentes os cozidos, os “desfeitos” (preparados
com carne picada) e os estufados. Com carne de carneiro fazia-se nos finais da
Idade Média uma espécie de caldeirada chamada “badulaque”. Já o peixe era
consumido principalmente cozido, assado ou frito.5,6 Outras técnicas culinárias
aplicadas às carnes ou ao pescado eram raras; por vezes confeccionavam-se
empadas e pratos semelhantes, mas não com grande frequência e quase
exclusivamente nas classes sociais mais abastadas7.
Os ovos podiam fazer-se cozidos, escalfados, mexidos, fritos
ou recheados, sendo para além disso utilizados para coalhar os molhos6,7.
OS UTENSÍLIOS E
INSTRUMENTOS UTILIZADOS
Verificando-se assimetrias sociais já no que respeita ao
tipo, quantidade e frequência com que os alimentos eram ingeridos durante a
Idade Média, a tentativa de caracterizar os utensílios utilizados na preparação
e confecção das refeições revela-se ainda mais difícil. Apesar de a
simplicidade das técnicas culinárias medievais tornar desnecessária uma grande
diversidade de utensílios, são notórias diferenças na variedade que se poderia
encontrar numa cozinha, consoante a riqueza do seu proprietário.6,7
Nas habitações rurais seriam utilizados alguns utensílios
destinados a preparar os alimentos, como panelas, caldeiras ou amassadeiras.
Quanto mais elevado o nível sócio-económico, maior a especificidade dos
utensílios empregues. Nas casas mais ricas eram usados diversos utensílios,
habitualmente de cobre, para levar os ingredientes ao lume, tais como tigelas,
panelas, tachos, caços ou caçarolas. Também para cozinhar os alimentos eram
utilizadas bacias que serviam igualmente para os misturar. Usavam-se
“viradouros” ou frigideiras para fritar peixe ou para ir ao forno. Para
auxiliar à preparação e confecção eram ainda utilizados outros instrumentos:
facas (habitualmente de ferro), colheres, escumadeiras, escalfadeiras,
almofarizes e graais.6,7
No serviço à mesa, usavam-se alguns dos utensílios
utilizados para confeccionar as refeições (como por exemplo os viradouros e as
frigideiras), bem como outros especialmente concebidos para o efeito. Nas casas
mais abastadas já desde a Idade Média que se foi tornando comum a utilização de
salvas, pratos, talhadores (travessas de grandes dimensões), sopeiras, pires e
outros utensílios similares para levar a comida à mesa. Os materiais em que se
fabricavam estes utensílios também variavam, podendo ser de estanho, louça, ou
até mesmo de prata. O azeite e o vinagre serviam-se em “salseiros”.6,7
Durante muito tempo não se utilizaram pratos. A carne e o
peixe eram inicialmente comidos sobre grandes metades de pão colocadas no
início da refeição em frente a cada conviva. No final da refeição estas rodelas
de pão estavam embebidas em molhos, sucos e outros restos, sendo habitual nas
casas mais ricas distribui-las pela chamada “turba” dos mendigos ou, em
alternativa, atirá-las aos cães que rodeavam a mesa.6,7
Mais tarde, as metades de pão viriam a ser gradualmente
substituídas pelos “talhadores” (fabricados em madeira e distintos dos utilizados para servir à mesa).
Posteriormente, também os talhadores seriam substituídos por escudelas. Quer as
escudelas quer os talhadores não eram ainda individuais, destinando-se a ser
partilhados por duas pessoas sentadas lado a lado.6,7
Muito antes do início da sua utilização para os alimentos
sólidos, já as escudelas eram habitualmente usadas para comer sopa e outros
alimentos líquidos. Mais uma vez, o material em que se fabricavam estes
utensílios dependia da classe social, podendo ser fabricadas em prata, madeira
ou até mesmo barro (recebendo neste último caso a designação de “tigelas”).6,7
Os garfos eram desconhecidos e as colheres eram pouco
usadas, tendo utilidade quase exclusivamente durante a confecção. O instrumento
mais utilizado, tanto durante a preparação como já à refeição, era a faca. A
sua importância era tal, que era rara a distribuição de facas aos convidados a
um banquete, pois cada um transportaria sempre consigo a faca de que se servia
em todas as refeições.6,7
Para beber eram usados “vasos”, que mais não eram do que
copos, se bem que um tanto maiores e mais pesados do que os utilizados hoje em
dia. Também se usavam vasos para receber alimentos após a sua confecção. Os
“graais” e “tagras”, ambos vasos de dimensões particularmente grandes, tinham
também esta função. Os líquidos quentes eram frequentemente servidos em “copas”
tapadas por “sobrecopas”. Finalmente, usavam-se ainda para beber as chamadas
“púcaras” e “pucarinhas”, feitas de barro e munidas de asas.6,7
O RITUAL DAS
REFEIÇÕES MEDIEVAIS
No Portugal medieval existiam essencialmente duas refeições:
o jantar e a ceia. A principal seria o jantar, que, ao longo da Idade Média,
terá visto o seu horário mais habitual avançar das oito ou nove horas da manhã
para as dez ou onze. A ceia era tomada entre as seis e as sete horas da tarde.
Para além destas, o progressivo atraso na hora do jantar terá levado a que se
instituísse uma outra refeição, o almoço, tomado pouco depois do levantar.7
O número de pratos servidos a cada uma destas refeições
variava não apenas entre elas mas, e principalmente, entre classes sociais. À
mesa do rei, da nobreza e do alto clero seriam servidos três pratos ao jantar,
para além das sopas, acompanhamentos e sobremesas; quanto menor fosse o estatuto
social, menor o número de pratos, que seria de dois ou apenas um entre os mais
desfavorecidos. À ceia, os mais ricos veriam servidos dois pratos, enquanto os
menos abastados apenas um.7
Também relativamente ao decorrer das refeições se
verificavam diferenças entre classes e grupos sociais. Os camponeses faziam as
refeições de um modo mais simples, comparativamente às classes socialmente mais
elevadas, nas quais as práticas seriam mais elaboradas e protocoladas.
Um aspecto era comum a todos: a ausência de garfos levava a
que fosse imprescindível lavar as mãos antes e após cada refeição, devido ao
contacto destas com os alimentos. Nas casas mais ricas, servidores traziam à
mesa “justas” ou “gomis” (de prata ou de outro metal), bem como grandes bacias,
sobre as quais se colocavam as mãos. Por vezes, particularmente em banquetes
mais importantes e requintados, utilizava-se água de rosas ou de outro perfume
em substituição da água simples. Para limpar as mãos depois de as lavar eram
usadas “napeiras” ou pequenas toalhas.7
Desde a Idade Média que se usam nas mesas toalhas e
guardanapos. Esta prática, como se depreende, foi-se tornando hábito
inicialmente entre as classes mais ricas e só mais tardiamente na restante
população. Seria também costume entre as classes mais ricas portuguesas (mas
não o seria noutros pontos da Europa) introduzir sob a toalha uma espécie de
alcatifa (o chamado “bancal” ou “mantel”), que se usava também a cobrir os
bancos. Para além de servir para cobrir a mesa, a toalha (ou, em alternativa,
os toalhetes) era ainda utilizada para proceder à limpeza dos objectos no final
da refeição.6,7
Também nos banquetes das casas mais abastadas era habitual a
presença de peças de ourivesaria nas mesas, com fins não só utilitários como
também decorativos. Cada prato, bem como o vinho, era precedido por um porteiro
seguido por criados empunhando tochas. Os alimentos eram trazidos em terrinas
ou bacias, sendo estas de tamanho reduzido no nosso país, comparativamente a
outros locais da Europa. Pelo contrário, nas casas mais pobres encontravam-se
sobre a mesa apenas os utensílios essenciais para as refeições, sendo o
cerimonial em torno destas muito mais simples e informal.7,20
Se as práticas referidas são já suficientes para mostrar a
importância que as refeições assumiam no seio das classes sociais mais
elevadas, algumas outras se lhes podem acrescentar para demonstrar a
diversidade de ritos que envolviam estes momentos. Viviam-se tempos em que
abundavam as superstições; estas, em conjunto com o medo de envenenamentos por
parte dos mais poderosos levavam à utilização de “alfaias” usadas para detectar
os alimentos. Entre a enorme variedade destes objectos contam-se diversas
pedras
raras (ágata e pedra serpentina, entre outras), bicos de
aves e chifres de animais (a que, pomposamente, era dada a designação de
“chifres de unicórnio”) com acabamentos em ouro e prata e uma espécie de
suportes chamados “lingueiros” onde se suspendiam línguas de serpente ou dentes
e ossos de animais. A todos estes objectos eram atribuídas propriedades
mágicas: acreditava-se que quando contactassem com alimentos “impuros”, estes e
outros talismãs mudariam de cor, manchar-se-iam ou começariam até a sangrar.7
A partir dos finais do século XIV começaram a estabelecer-se
regras de colocação de lugares à mesa7.
Os Grandes Banquetes
Se ao nível do tipo e frequência de alimentos consumidos
eram já evidentes as diferenças entre as classes sociais do Portugal medieval,
e sendo estas discrepâncias ainda mais notórias durante as refeições e protocolos
que as envolviam, a distinção mais marcada surge, sem dúvida, em ocasiões
festivas. Isto não significa que as classes sociais mais pobres não festejassem
certos acontecimentos com alimentação mais abundante e diversificada. A
diferença era sobretudo marcada pela grandiosidade dos banquetes servidos pelos
nobres.
Seguidamente, transcrevem-se excertos da descrição feita por
Garcia de Resende de dois banquetes do casamento do príncipe D. Afonso com D.
Isabel, nos quais é manifesta não só a fartura de alimentos como o enorme
investimento no que diz respeito aos rituais e à cerimónia em si 21.
« [...] E a mesa de El-Rei com
tôdolos oficiais vestidos de brocados, e servida por moços fidalgos que serviam
de tochas e bacios, ricamente vestidos. E as outras mesas todas com trinchantes
e oficiais vestidos de ricas sedas e brocados e mui galantes, e assim os moços
da câmara ordenados a cada mesa, todos vestidos de veludo preto. No qual
banquete houve infinitas e diversas iguarias e manjares, e singular concerto e
abastança e muitas e assignadas cerimónias. E quando levaram à mesa de El-Rei
as iguarias principais e fruta primeira e derradeira, e de beber a ele e à
Rainha, e ao Príncipe e Princesa, íam sempre diante, dois e dois, muitos
porteiros de maça, reis de armas, arautos e passavantes, os porteiros-mores,
quatro mestres-salas, o veador, e os veadores da fazenda, e detrás de todos o
Mordomo-mor, e todos iam com os barretes na mão até o estrado, onde faziam suas
grandes mesuras, e os veadores da fazenda iam com os barretes na cabeça até o
meio da sala, e do meio por diante os levavam na mão, e o Mordomo-mor ia sempre
coberto até o fazer da mesura, que juntamente fazia e tirava o barrete. E era
tamanha cerimónia que durava muito cada vez que iam à mesa.
[...] E logo à entrada da mesa veio
uma grande carreta dourada, e traziam-na dois grandes bois assados inteiros,
com os cornos e mãos e pés dourados, e o carro vinha cheio de muitos carneiros
assados inteiros com os cornos dourados, e vinha tudo posto num cadafalso tão
baixo com rodetas por fundo dele, que não se viam, que os bois pareciam vivos e
que andavam.
E diante vinha um moço fidalgo com
uma aguilhada nas mãos picando os bois, que pareciam que andavam e levavam a
carreta, e vinha vestido como carreteiro com um pelote e um gabão de veludo
branco forrado de brocado, e assim a carapuça, que de longe parecia próprio
carreteiro, e assim foi oferecer os bois e carneiros à Princesa e feito o
serviço os tornou a virar com sua aguilhada por toda a sala até sair fora, e deixou
tudo ao povo, que com grande grita e prazer foram espedaçados, e levava cada um
quanto mais podia.
E assim vieram juntamente a tôdalas
mesas muitos pavões assados com os rabos inteiros, e os pescoços e cabeça com
toda a sua pena, que pareceram muito bem por serem muitos, e outras muitas
sortes de aves e caças, manjares e frutas, tudo em muito grande abundância e
grande perfeição».
« [...] E era cousa formosa para ver
as mesas como estavam ordenadas, que em cada uma havia três grandes bacios de
iguarias cobertos, e em cima dos dois dos cabos estavam tendas de damasco
branco e roxo, que eram as cores da Princesa; as tendas eram borladas e muito
galantes, com muitas bandeirinhas douradas, e eram grandes de dez côvados cada
uma. E na iguaria do meio estava um castelo de feição de tríbulo, feito de
madeira subtil, e pano de tafetá dourado, que era muito formosa cousa, e de
muito custo.
[...] E toda a gente da corte e da
cidade que estava em pé entre as grades, que era muita, todos comiam do que se
tirava das mesas, que era em tanta abundância que muito mais era o que sobejava
que o que se comia, e por isso não havia pessoa que deitasse mão de cousa
alguma, nem fizesse mau ensino, e também pelos muitos oficiais que nisso faziam
tento, e pelo castigo que sabiam que haviam de haver se o fizessem, e mais
sobejando tudo a todos; que certo foi em tanta abastança e tanta perfeição,
tanta honra, tanto estado, quanto no mundo podia ser».
CONCLUSÃO E
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A alimentação medieval portuguesa teve origem, tal como no
resto da Europa, na integração dos hábitos alimentares romanos e bárbaros.
Deste processo resultou uma alimentação baseada nos cereais e no vinho, mas com
uma tendência crescente para a inclusão de carnes e pescado.
De um modo geral, a quantidade de alimentos que a maioria da
população teria disponível seria suficiente do ponto de vista energético,
verificando-se no entanto diferenças substanciais entre os regimes alimentares
das diferentes classes sociais, sendo a alimentação dos camponeses
particularmente monótona e desadequada.
Comparativamente à nobreza e ao clero, o consumo de carne e
peixe seria marcadamente inferior nas classes sociais mais pobres, para as
quais a alimentação estaria mais dependente dos cereais (e seus substitutos, em
contextos de insuficiência) e de condicionalismos climáticos e,
consequentemente, de mercado. Também a utilização de outros alimentos, como os
legumes e a fruta, seria mais irregular entre os menos abastados.
Estas características seriam globalmente similares ao que se
verificava no resto da Europa, ocorrendo algumas divergências sobretudo devido
a diferenças nas capacidades de produção de alimentos específicos.
As técnicas culinárias empregues no Portugal medieval eram
simples e faziam uso de utensílios igualmente elementares.
Durante grande parte da Idade Média eram apenas duas as
refeições, tendo-se convertido em três já nos finais do período medieval.
Nota-se maior tendência para que as refeições se tornassem cada vez mais
ritualizadas e complexas, sobretudo nas classes mais elevadas, sendo nestas que
primeiramente eram adoptados novos costumes e protocolos.
No que concerne aos costumes que envolviam os banquetes nas
classes sociais mais ricas, parecem ter existido diferenças mais notórias
relativamente à restante Europa medieval. Tal é compreensível visto estes
costumes se afastarem mais da componente meramente biológica da alimentação,
estando mais relacionados com aspectos sociais e culturais.
Longe de pretender fazer uma abordagem exaustiva, o presente
trabalho visou compilar informações que caracterizem a alimentação no Portugal
medievo, bem como que facilitem uma compreensão diferenciada das várias facetas
por ela assumidas. Da globalidade dos aspectos considerados emerge a
importância de aprofundar o estudo de fontes primárias que salientem a
fecundidade da alimentação portuguesa na Idade Medieval, para que melhor se
compreendam a sua evolução e riqueza actual.
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Por Nuno P.S. Ferreira, publicado na
Revista do SPCNA, Lisboa, 2008, vol, 14, n. 3. pag. 105-113. Adaptado e ilustrado
para ser postado por Leopoldo Costa. (Mantivemos a
ortografia original)
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