3.23.2012

MERCANTILIZAÇÃO DO CAVALO MORTO EM NOVA YORK


Leopoldo Costa.

Veterinários examinando animais doentes
Na cidade de Nova York no século XIX, depois de morto, o cavalo se  transformava também numa mercadoria. Quando os cavalos ficavam doentes, aleijados, ou muito velhos para justificar o dinheiro gasto nos estábulos e na sua alimentação, seus proprietários davam-lhe um tiro. Naquela época relativamente poucos animais morriam de causas naturais, embora alguns caíssem mortos nas ruas da cidade ou nos estábulos. Os proprietários faziam apólices de seguros para seus animais, pois, era um grande investimento de capital, mas as companhias seguradoras relutavam em permitir que estes abatessem a tiro seus próprios cavalos, para reclamar a indenização, quando os animais ficassem lerdos e tornassem menos lucrativos. Os veterinários, policiais e agentes de grupos que combatiam a crueldade em animais, podiam matar os cavalos, entretanto, só agiam assim, com os animais doentes, perigosos, ou incapazes de trabalhar. Isso validava a reclamação de seguro. Entre 1887 e 1897, a ASPCA, (Sociedade Americana para Prevenção de Crueldade com Animais) de Nova York, foi a maior sacrificadora de animais da cidade, fuzilando entre 1.800 e 7.000 cavalos por ano.  (Este é um paradoxo, pois que as sociedades humanitárias se tornariam nas principais assassinas de animais nas cidades.).
Os veterinários do governo, admitiam que os proprietários de animais os valorizassem quase que exclusivamente, levando em conta a sua capacidade produtiva. Como se podia esperar, Nova York tinha o problema de maior gravidade. Sete a oito mil cavalos morriam por ano em Manhattan na década de 1880, em comparação com apenas 1.500 por ano em Chicago. Cerca de 36 animais morreram diariamente nas ruas de Manhattan, durante a Grande Epizootia de 1872. Um escritor estimou que dois mil e quinhentos cavalos morreram em Nova York durante a epizootia, sendo este dado exagerado e sem confirmação em outros relatos da mesma época. Em 1910, provavelmente o ano de pico, a prefeitura confirmou a remoção das ruas, do total de 20.595 cavalos mortos. Para melhor aproveitamento do animal morto, era necessária a remoção imediata, uma vez que a decomposição poderia estragar muitos subprodutos. Proprietários bem estabelecidos,​​tinham contratos com graxarias para a remoção de animais mortos. As prefeituras também tinham contratos com estas graxarias. Em Nova  York, por exemplo, a Companhia de Graxaria de Nova York tinha o monopólio da  prestação pública e privada deste serviço e garantia ao Conselho de Saúde a remoção dos animais, no máximo em três horas. A prefeitura não precisava de muito esforço para exigir o cumprimento desta norma.  Depois do 'rigor mortis', os couros perderiam seu valor, assim, a coleta rápida também era importante para a empresa, que afirmava que removia a maioria dos animais em quinze minutos. Os agentes de saúde ou a polícia notificava a empresa sobre animais mortos, pelo novo sistema de telégrafo da polícia. Nós não encontramos nenhuma reclamação sobre a remoção demorada em relatórios do Departamento de Saúde ou em jornais de Nova York, provavelmente porque os interesses da empresa de processamento e do Departamento de Saúde coincidiam.
A imagem de um cavalo morto em uma calha que frequentemente aparecia nos livros de história americana é uma anomalia. As carcaças eram transportadas em vagões especiais com rampas inclinadas para a rua. Um guincho puxava o animal morto para a plataforma do vagão, usando esta rampa. Uma lona cobria o cavalo morto. Outros municípios tinham sistemas de remoção como o de Nova York.
Este processo difere muito do adotado nos países da Europa continental, onde o consumo de carne de cavalo (hipofagia) era comum.  Em Paris, os proprietários raramente matavam os cavalos, uma vez que as autoridades proibiam o processamento de animais mortos ou doentes para alimentação humana. Os cavalos eram levados ao matadouro, alguns coxeando em três pernas. Os proprietários cortavam o pelo e a crina dos cavalos antes de enviá-los para o abate, para vender o cabelo, ao invés de deixar os matadouros beneficiarem deste valioso subproduto. A população parisiense achava muito ofensivo estes patéticos desfiles de cavalos sem pelo.  A maioria dos americanos seguiu o costume britânico de não consumir carne de cavalo, assim não usavam o processo parisiense. Havia alguns intelectuais americanos que defendiam a hipofagia, entre eles Henry Bergh, o fundador da Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade contra os Animais. Bergh acreditava que o abate em um matadouro era preferível à morte sob chicote. Esta era uma posição bem invulgar, pois defendia o consumo de carne equina não para o benefício da população humana, mas para os próprios cavalos, uma espécie de eutanásia. 
O primeiro reitor da Escola de Veterinária da Universidade da Pensilvânia serviu a carne sem identificação, de Dora, seu cavalo de estimação, a seus colegas em um jantar formal, apenas para mostrar que a oposição à hipofagia era puramente cultural. O proeminente veterinário John S. Billings argumentava que a carne equina era saudável, que a aversão a ela foi baseada em "hábitos ignorantes", e que muitos cavalos urbanos eram mais adaptados "para ser alimento do que para o trabalho." Algumas pessoas americanas já comeram carne de cavalo, principalmente em bairros da cidade habitados por imigrantes que já comiam no seu país de origem.  
Clay McShane recordou de açougues em bairros de imigrantes alemães de Nova York na década de 1950, que vendia carne de cavalo. Evidentemente, o consumo da carne equina aumentou durante o período de racionamento da Segunda Grande Guerra. Houve exemplos anteriores. Durante o cerco de Vicksburg, bifes de carne equina custavam vinte dólares cada, e vários soldados haviam consumido carne de cavalo durante a Guerra Civil.
A variedade de produtos obtidos de animais mortos era apreciável. As indústrias raspavam o cabelo para ser usado como enchimento de almofadas, "assim, os mortos ajudam a proporcionar o conforto dos vivos." O pelo também era usado como reforçador de gesso ou argamassa ou era transformado em cobertores. Operários removiam a pele, cortando a parte traseira para a produção do valioso couro de Córdoba. Os cascos eram fervidos para aproveitamento de óleo, fabricação de cola, como também de gelatina. Numa caldeira de pressão era fervida a carcaça, sendo a carne separada do osso. Da canela eram produzidos cabos para facas e pentes. Costelas e cabeça eram tratadas para aproveitamento de óleo e depois queimadas para obter uma substância usada em polimento e nos filtros das refinarias de açúcar. Os vapores deste processo se transformavam na principal fonte de carbonato de amônia e num inseticida importante. O fosfato de cálcio extraído dos ossos era usado na fabricação de fósforos de segurança. A carne aproveitada era usada na fabricação de ração para animais. O que sobrava era bombardeado com potássio para produzir prussiato de potássio, usado em tintas e venenos. A gordura concentrada na superfície da caldeira era coletada e usada na produção de sabão ou velas. Uma graxaria de St. Louis informava que em 1896, obtinha um lucro de 24 dólares em cada carcaça.
Antes do início do processo moderno de aproveitamento, depois da retirada da pele e da gordura, as sobras eram cozidas e depois usadas como fertilizante. Na década de 1820 era costume usar esta carne, e, especialmente os ossos moídos e sangue seco, como fertilizante.  A pesquisa pioneira realizada em 1840, pelo químico alemão Justus von Liebig demonstrou o valor destes produtos, especialmente dos dois últimos itens. Em 1851 D.J.Browne, sugeriu no seu livro 'American Muck' que os resíduos ricos em nitrogênio obtidos da fabricação de sabão, poderiam ser aplicados no solo, a uma taxa de duzentas libras por acre.
Apesar das possibilidades de reciclagem, no entanto, ainda em 1880, o município de Charleston, na Carolina do Sul, se dispunha dos animais mortos jogando-os num terreno baldio fora da cidade, enquanto Albany, Nova York, costumava jogá-los no rio Hudson.
A partir de 1850, as novas graxarias associadas aos grandes matadouros, começaram a não somente processar carcaças de cavalos, mas também de porcos e bois. Dr. R.W. L Rasin, o químico de Baltimore de uma das empresas de fertilizantes fosfatados, começou a fazer experiências com resíduos dos matadouros, depois da retirada do sebo, agregado com fosfato de rocha, conseguindo aumentar assim o nível de nitrogênio do fertilizante. Por volta de 1868 ele estava comprando em tanques os resíduos do matadouro da grande Armour & Company de Chicago que eram anteriormente despejados nos esgotos. Em 1871, uma graxaria de Nova Iorque vendeu oitenta e três toneladas de resíduos da fabricação de sabão a 38,21 dólares a tonelada. Apenas os gigantescos matadouros novos ou, no caso de Boston, matadouros públicos com o modelo europeu, tiveram economia de escala para a reciclagem de animais mortos.
A graxaria usava um processo que exalava um cheiro horrível. Este era igual aos problemas que causavam as covas de estrume da NIMBY. ‘The New York Times’ descreveu o ar em torno de uma fábrica como "venenoso". Mesmo no período colonial, o processamento de sangue pela fervura, a fabricação de velas e de sabão tinham sido regulamentados como atividades nocivas, geralmente obrigando-os a funcionar na periferia das cidades. Isso foi muito mais difícil fazer com as grandes fábricas processadoras de carne que apareceram na década de 1860. As empresas processavam os resíduos em caldeiras gigantescas, por vezes, ao ar livre, uma vez que não estavam dispostas a arcar com o custo das caldeiras fechadas (autoclaves) e temiam que pudessem explodir. Um incômodo local que expandiu por toda a cidade.
Em 21 de julho de 1873, a empresa abatedoura de John P. Squire, em Cambridge, Massachusetts, exalou um mau cheiro intenso e trabalharam até tarde da noite, provocando ao despertar, vômitos e náuseas nos moradores, desde Radcliffe College à região sul de Boston (uma distância de cinco milhas). Ironicamente, as condições ficaram piores nesta noite porque a fábrica havia cometido um erro ao testar equipamentos de controle de poluição que passaram a serem exigidos. Algum alívio veio com a imposição de medidas mais efetivas de regulamentação sanitária na década de 1870, sendo uma das exigências que o processamento dos resíduos fosse feito em autoclaves em ambientes fechados e não em tanques. 
O desenvolvimento de dispositivos de controle de poluição do ar, que obrigava os resíduos a passarem por exaustores de vapor superaquecido, teve o efeito de transformar por vezes, o fedor de toda a cidade para um cheiro notado apenas pela vizinhança. As áreas em torno das fábricas tornaram-se tipicamente bairros para pobres, de residência da classe trabalhadora provavelmente disposta a trocar o ar puro por um emprego nos matadouros.

Tradução e adaptação de Leopoldo Costa de um capítulo (postado também em inglês), de autoria de Clay McShane and Joel A. Tarr no livro 'The Horse in the City' - Living Machines in the Nineteenth Century, The Johns Hopkins University Press, U.S. A, 2007, p.27-30.

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