Leopoldo Costa.
Veterinários examinando animais doentes |
Na cidade de Nova York no século XIX, depois de morto, o
cavalo se transformava também numa mercadoria. Quando os cavalos ficavam
doentes, aleijados, ou muito velhos para justificar o dinheiro gasto nos
estábulos e na sua alimentação, seus proprietários davam-lhe um tiro. Naquela
época relativamente poucos animais morriam de causas naturais, embora alguns caíssem
mortos nas ruas da cidade ou nos estábulos. Os proprietários faziam apólices de
seguros para seus animais, pois, era um grande investimento de capital, mas as
companhias seguradoras relutavam em permitir que estes abatessem a tiro seus
próprios cavalos, para reclamar a indenização, quando os animais ficassem
lerdos e tornassem menos lucrativos. Os veterinários, policiais e agentes de
grupos que combatiam a crueldade em animais, podiam matar os cavalos,
entretanto, só agiam assim, com os animais doentes, perigosos, ou incapazes de
trabalhar. Isso validava a reclamação de seguro. Entre 1887 e 1897, a ASPCA,
(Sociedade Americana para Prevenção de Crueldade com Animais) de Nova York, foi
a maior sacrificadora de animais da cidade, fuzilando entre 1.800 e 7.000
cavalos por ano. (Este é um paradoxo, pois que as sociedades humanitárias se tornariam nas principais
assassinas de animais nas cidades.).
Os veterinários do governo, admitiam que os proprietários de animais os
valorizassem quase que exclusivamente, levando em conta a sua capacidade
produtiva. Como se podia esperar, Nova York tinha o problema de maior
gravidade. Sete a oito mil cavalos morriam por ano em Manhattan na década de
1880, em comparação com apenas 1.500 por ano em Chicago. Cerca de 36 animais morreram
diariamente nas ruas de Manhattan, durante a Grande Epizootia de 1872. Um
escritor estimou que dois mil e quinhentos cavalos morreram em Nova York
durante a epizootia, sendo este dado exagerado e sem confirmação em outros
relatos da mesma época. Em 1910, provavelmente o ano de pico, a prefeitura
confirmou a remoção das ruas, do total de 20.595 cavalos mortos. Para melhor
aproveitamento do animal morto, era necessária a remoção imediata, uma vez que
a decomposição poderia estragar muitos subprodutos. Proprietários bem
estabelecidos,tinham contratos com graxarias para a remoção de animais mortos.
As prefeituras também tinham contratos com estas graxarias. Em Nova York, por exemplo, a Companhia de Graxaria de
Nova York tinha o monopólio da prestação
pública e privada deste serviço e garantia ao Conselho de Saúde a remoção dos animais,
no máximo em três horas. A prefeitura não precisava de muito esforço para
exigir o cumprimento desta norma. Depois
do 'rigor mortis', os couros
perderiam seu valor, assim, a coleta rápida também era importante para a
empresa, que afirmava que removia a maioria dos animais em quinze minutos. Os
agentes de saúde ou a polícia notificava a empresa sobre animais mortos, pelo
novo sistema de telégrafo da polícia. Nós não encontramos nenhuma reclamação
sobre a remoção demorada em relatórios do Departamento de Saúde ou em jornais
de Nova York, provavelmente porque os interesses da empresa de processamento e
do Departamento de Saúde coincidiam.
A imagem de um cavalo morto em uma calha que frequentemente
aparecia nos livros de história americana é uma anomalia. As carcaças eram
transportadas em vagões especiais com rampas inclinadas para a rua. Um guincho
puxava o animal morto para a plataforma do vagão, usando esta rampa. Uma lona
cobria o cavalo morto. Outros municípios tinham sistemas de remoção como o de
Nova York.
Este processo difere muito do adotado nos países da Europa
continental, onde o consumo de carne de cavalo (hipofagia) era comum. Em Paris, os proprietários raramente matavam
os cavalos, uma vez que as autoridades proibiam o processamento de animais
mortos ou doentes para alimentação humana. Os cavalos eram levados ao
matadouro, alguns coxeando em três pernas. Os proprietários cortavam o pelo e a
crina dos cavalos antes de enviá-los para o abate, para vender o cabelo, ao
invés de deixar os matadouros beneficiarem deste valioso subproduto. A
população parisiense achava muito ofensivo estes patéticos desfiles de cavalos
sem pelo. A maioria dos americanos seguiu
o costume britânico de não consumir carne de cavalo, assim não usavam o
processo parisiense. Havia alguns intelectuais americanos que defendiam a
hipofagia, entre eles Henry Bergh, o fundador da Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade contra os
Animais. Bergh acreditava que o abate em um matadouro era preferível à morte
sob chicote. Esta era uma posição bem invulgar, pois defendia o consumo de
carne equina não para o benefício da população humana, mas para os próprios
cavalos, uma espécie de eutanásia.
O primeiro reitor da Escola de Veterinária da Universidade
da Pensilvânia serviu a carne sem identificação, de Dora, seu cavalo de
estimação, a seus colegas em um jantar formal, apenas para mostrar que a
oposição à hipofagia era puramente cultural. O proeminente veterinário John S. Billings
argumentava que a carne equina era saudável, que a aversão a ela foi baseada em
"hábitos ignorantes", e que
muitos cavalos urbanos eram mais adaptados "para ser alimento do que para o trabalho." Algumas pessoas
americanas já comeram carne de cavalo, principalmente em bairros da cidade
habitados por imigrantes que já comiam no seu país de origem.
Clay McShane recordou de açougues em bairros de imigrantes
alemães de Nova York na década de 1950, que vendia carne de cavalo.
Evidentemente, o consumo da carne equina aumentou durante o período de
racionamento da Segunda Grande Guerra. Houve exemplos anteriores. Durante o
cerco de Vicksburg, bifes de carne equina custavam vinte dólares cada, e vários
soldados haviam consumido carne de cavalo durante a Guerra Civil.
A variedade de produtos obtidos de animais mortos era apreciável.
As indústrias raspavam o cabelo para ser usado como enchimento de almofadas,
"assim, os mortos ajudam a
proporcionar o conforto dos vivos." O pelo também era usado como reforçador
de gesso ou argamassa ou era transformado em cobertores. Operários removiam a
pele, cortando a parte traseira para a produção do valioso couro de Córdoba. Os
cascos eram fervidos para aproveitamento de óleo, fabricação de cola, como
também de gelatina. Numa caldeira de pressão era fervida a carcaça, sendo a
carne separada do osso. Da canela eram produzidos cabos para facas e pentes.
Costelas e cabeça eram tratadas para aproveitamento de óleo e depois queimadas
para obter uma substância usada em polimento e nos filtros das refinarias de
açúcar. Os vapores deste processo se transformavam na principal fonte de
carbonato de amônia e num inseticida importante. O fosfato de cálcio extraído
dos ossos era usado na fabricação de fósforos de segurança. A carne aproveitada
era usada na fabricação de ração para animais. O que sobrava era bombardeado
com potássio para produzir prussiato de potássio, usado em tintas e venenos. A
gordura concentrada na superfície da caldeira era coletada e usada na produção
de sabão ou velas. Uma graxaria de St. Louis informava que em 1896, obtinha um
lucro de 24 dólares em cada carcaça.
Antes do início do processo moderno de aproveitamento,
depois da retirada da pele e da gordura, as sobras eram cozidas e depois usadas
como fertilizante. Na década de 1820 era costume usar esta carne, e,
especialmente os ossos moídos e sangue seco, como fertilizante. A pesquisa pioneira realizada em 1840, pelo
químico alemão Justus von Liebig demonstrou o valor destes produtos, especialmente
dos dois últimos itens. Em 1851 D.J.Browne, sugeriu no seu livro 'American
Muck' que os resíduos ricos em nitrogênio obtidos da fabricação de sabão, poderiam
ser aplicados no solo, a uma taxa de duzentas libras por acre.
Apesar das possibilidades de reciclagem, no entanto, ainda
em 1880, o município de Charleston, na Carolina do Sul, se dispunha dos animais
mortos jogando-os num terreno baldio fora da cidade, enquanto Albany, Nova
York, costumava jogá-los no rio Hudson.
A partir de 1850, as novas graxarias associadas aos grandes
matadouros, começaram a não somente processar carcaças de cavalos, mas também
de porcos e bois. Dr. R.W. L Rasin, o químico de Baltimore de uma das empresas
de fertilizantes fosfatados, começou a fazer experiências com resíduos dos
matadouros, depois da retirada do sebo, agregado com fosfato de rocha, conseguindo
aumentar assim o nível de nitrogênio do fertilizante. Por volta de 1868 ele
estava comprando em tanques os resíduos do matadouro da grande Armour &
Company de Chicago que eram anteriormente despejados nos esgotos. Em 1871, uma
graxaria de Nova Iorque vendeu oitenta e três toneladas de resíduos da
fabricação de sabão a 38,21 dólares a tonelada. Apenas os gigantescos
matadouros novos ou, no caso de Boston, matadouros públicos com o modelo
europeu, tiveram economia de escala para a reciclagem de animais mortos.
A graxaria usava um processo que exalava um cheiro horrível.
Este era igual aos problemas que causavam as covas de estrume da NIMBY. ‘The New
York Times’ descreveu o ar em torno de uma fábrica como "venenoso". Mesmo no período
colonial, o processamento de sangue pela fervura, a fabricação de velas e de sabão
tinham sido regulamentados como atividades nocivas, geralmente obrigando-os a
funcionar na periferia das cidades. Isso foi muito mais difícil fazer com as
grandes fábricas processadoras de carne que apareceram na década de 1860. As
empresas processavam os resíduos em caldeiras gigantescas, por vezes, ao ar
livre, uma vez que não estavam dispostas a arcar com o custo das caldeiras
fechadas (autoclaves) e temiam que pudessem explodir. Um incômodo local que
expandiu por toda a cidade.
Em 21 de julho de 1873, a empresa abatedoura de John P.
Squire, em Cambridge, Massachusetts, exalou um mau cheiro intenso e trabalharam
até tarde da noite, provocando ao despertar, vômitos e náuseas nos moradores,
desde Radcliffe College à região sul de Boston (uma distância de cinco milhas).
Ironicamente, as condições ficaram piores nesta noite porque a fábrica havia
cometido um erro ao testar equipamentos de controle de poluição que passaram a
serem exigidos. Algum alívio veio com a imposição de medidas mais efetivas de
regulamentação sanitária na década de 1870, sendo uma das exigências que o
processamento dos resíduos fosse feito em autoclaves em ambientes fechados e
não em tanques.
O desenvolvimento de dispositivos de controle de poluição do
ar, que obrigava os resíduos a passarem por exaustores de vapor superaquecido, teve
o efeito de transformar por vezes, o fedor de toda a cidade para um cheiro
notado apenas pela vizinhança. As áreas em torno das fábricas tornaram-se
tipicamente bairros para pobres, de residência da classe trabalhadora provavelmente
disposta a trocar o ar puro por um emprego nos matadouros.
Tradução e adaptação de Leopoldo Costa de um capítulo (postado também em inglês), de autoria de Clay McShane and Joel A.
Tarr no livro 'The Horse in the City' - Living Machines in the Nineteenth
Century, The Johns Hopkins University Press, U.S. A, 2007, p.27-30.
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